A desinformação não é uma anomalia: implicações para o contexto eleitoral

Thales Lelo

Apesar da diversidade de linhas de pesquisa desenvolvidas nos últimos anos dedicadas ao estudo da desinformação, sobretudo em reação à ascensão do populismo de extrema-direita no mundo todo, fato é que a esmagadora maioria da literatura produzida recentemente, indo da epistemologia social, passando pela psicologia política e pelos estudos de mídia, fia-se a uma noção de desinformação como anomalia ou ruído capaz de perturbar o bom funcionamento da comunicação.

Tais trabalhos se fundamentam no ideal de que interagimos uns com os outros de modo estritamente racional, compartilhando intencionalmente informações e extraindo delas conhecimento verdadeiro sobre o mundo à nossa volta. Assim, a desinformação seria um tipo de ruído criado deliberadamente por alguém para enganar um interlocutor, gerando nele falsas crenças sobre a realidade que o cerca. Em termos macrossociais, alega-se que, na era das plataformas digitais, estaríamos em maus lençóis devido à produção e distribuição em escala industrial de desinformação por agentes políticos e oportunistas de todo tipo. Parte-se da premissa de que, se individualmente precisamos ser nutridos de boas informações para tomarmos as melhores decisões sobre a nossa vida e a vida daqueles que nos importam, em aspecto coletivo é primordial que em um governo democrático os cidadãos estejam devidamente informados sobre os fatos públicos para julgarem racionalmente as ações de seus governantes. Consequentemente, uma democracia sitiada por desinformação seria uma democracia fragilizada. 

O problema desta definição dominante é que ela pressupõe que, no dia-a-dia, agimos como processadores desencarnados de informação motivados por critérios de racionalidade excessivamente exigentes e que não são aplicáveis por vezes nem mesmo à produção científica. Informações não fazem sentido a não ser quando atreladas a um contexto situado e socialmente determinado que sirva de pano de fundo a elas. Este contexto inclui não só os fatos disponíveis à percepção individual, mas também as histórias que contamos uns para os outros e que se enraízam em nosso imaginário comum, independentemente de sua correspondência à realidade “pura e simples”. Por meio dessas histórias carregadas que são de valores sobre as pessoas e o mundo que nos rodeia, conseguimos conferir sentido a uma vida social absolutamente complexa. O engano potencial de uma mensagem desinformativa pode ser estimado menos em função do seu distanciamento dos fatos do que em quão capaz esta mensagem é de evocar as expectativas comuns que nos garantem um senso de estabilidade em nosso cotidiano. Em termos políticos, esta constatação nos leva a admitir que os cidadãos se importam com dados concretos sobre questões de interesse público em igual medida que se interessam pelo apelo narrativo das histórias que impregnam os principais acontecimentos de sua localidade.

Para ser mais objetivo, sugiro que a eficácia limitada de uma série de medidas de enfrentamento à desinformação propostas nos últimos anos, indo do fact-checking às iniciativas de letramento midiático, se deve ao fato de elas se arvorarem em uma concepção da racionalidade humana pouco sensível aos seus fundamentos práticos. Gostaria de listar, a seguir, algumas das consequências do meu argumento para o tipo de trabalho desenvolvido por estes empreendimentos:

Não basta desmentir inverdades: Diversos estudos têm evidenciado que não basta simplesmente corrigir uma desinformação sem oferecer ao leitor uma interpretação alternativa e mais convincente da história evocada por meio dela. Sobretudo em se tratando de declarações completamente descoladas das evidências disponíveis, é ingênuo presumir que as pessoas deixarão de considerar o “pano de fundo” suscitado por determinada mensagem só porque os eventos retratados não correspondem à realidade. Esta observação vale, em particular, para histórias falsas que despertam valores sensíveis a uma dada comunidade, a exemplo das relações familiares, religiosas, étnicas, raciais, de gênero e sexualidade.

Campanhas políticas não são só sobre fatos: Cidadãos não tomam suas decisões de voto contabilizando o número de mentiras ou verdades contadas por um candidato. Checar em tempo real as declarações feitas em um debate, por exemplo, não muda esta situação, sobretudo em disputas que envolvem sabotadores que parasitam as instituições democráticas, a exemplo de figuras como Donald Trump, Marine Le Pen, Jair Bolsonaro e Giorgia Meloni. Por esta razão, as iniciativas de combate à desinformação precisam reconhecer a indissociabilidade entre fatos e valores na esfera pública, endereçando também as interpretações do mundo social impregnadas em uma declaração factualmente distorcida.  

É preciso discernir graus de imprecisão: Populistas autoritários no mundo todo têm atuado para corroer internamente as expectativas de confiança que são depositadas sobre suas declarações enquanto porta-vozes de um governo democraticamente eleito. Há uma diferença importante entre declarações factualmente imprecisas em termos estatísticos ou cronológicos, habituais em campanhas políticas, e alegações que dobram a realidade em benefício da reiteração de um imaginário comum. Ao não explicitar estas dessemelhanças, iniciativas de combate à desinformação correm o risco de insinuar equivalências descabidas entre trapaceiros e estadistas. 

Não é possível erradicar a desinformação da esfera pública: Histórias falsas antecedem a era das plataformas digitais e irão perdurar ao fim dela. Não sendo a desinformação uma anomalia ou um ruído, o ecossistema informativo não será “higienizado” a despeito do espírito altruísta de jornalistas, fact-checkers, legisladorese educadores. Não regressaremos a uma época em que as pessoas tomavam suas decisões com base nas melhores evidências porque este período histórico nunca existiu. Na melhor das hipóteses, as iniciativas de combate à desinformação continuarão sendo reativas à agenda de histórias falsas que circulam socialmente. Contudo, podem ser mais cuidadosas visando não amplificar os imaginários evocados por meio de fake news e rumores aparentemente absurdos em aspecto estritamente factual.

Em síntese, enquanto continuarmos a respaldar um entendimento de desinformação como anomalia, não só estaremos condenados a reiterar um modelo de racionalidade insensível aos fundamentos práticos da ação humana, mas também a reproduzir um elitismo intelectual que trata os cidadãos como ingênuos, manipuláveis, ignorantes ou cínicos.

Thales Lelo é pesquisador de Pós-Doutorado na USP com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). É membro do Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho (CPCT/USP) e autor do livro “Jornalismo em Transformação: Relatos de uma Profissão em Crise” (Mercado de Letras).

Este texto faz parte do projeto “Global Democracy Frontliners: Transnational Research Coalition for Tech Accountability and Democratic Innovations Centering Communities in the Margins” financiado pela Luminate.

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