Amellal: “A economia digital também é responsável pelo agravamento das desigualdades”

Karim Amellal, nascido na Algéria, é escritor e professor da Science Po, em Paris, autor de livros como Discriminez-moi, sobre desigualdades. Ano passado, ele lançou o livro La Révolution de la Servitude: porquoi l’ubérisation est l’ennemie du progrès social, denunciando o comportamento predatório de plataformas digitais e defendendo sua regulação. Amellal foi um dos pesquisadores convidados pelo presidente francês, Emmanuel Macron, para propor políticas contra o ódio online. Confira entrevista exclusiva do DigiLabour com Amellal:

DIGILABOUR: Por que, em sua visão, a uberização e a gig economy são novas formas de servidão? 

KARIM AMELLAL: A gig economy é a economia dos bicos: tarefas mal pagas, trabalhadores precários e muito pouco protegidos. Essa gig economy é uma das consequências do que é chamado de uberização, ou seja, o relacionamento direto, via aplicativos e algoritmos, entre vendedores e clientes – mas também inteligência artificial (microtrabalho) e, de forma mais geral, a economia das plataformas (Amazon, Uber, AirBnb, etc.). Essa “nova” economia simplifica a vida de muitos consumidores e aumenta suas possibilidades de escolha, mas levanta questões para aqueles que fazem os algoritmos funcionar, os que administram as plataformas, todos os trabalhadores que escapam da regulamentação normal do trabalho. As condições de trabalho remetem às dos proletários do século XIX, menos consciência política. A dependência de algoritmos – quem decide quando você trabalha ou quando você não deve trabalhar, quem pode “desconectar” no momento, como em aplicativos de mobilidade -, a solidão e o isolamento que caracterizam estes tipos de trabalho (o motorista, sozinho em seu carro, o “microtrabalhador” que faz microtarefas para alimentar a inteligência artificial), a precariedade de seu trabalho, o fato de não se beneficiar das principais realizações do direito do trabalho (licença remunerada, seguridade social, direito de organização…), tudo isso produz uma condição de servidão. Obviamente, quem são os trabalhadores que fazem esses trabalhos ingratos? São sempre os mesmos: os pobres, aqueles que já estão marginalizados no mercado de trabalho, aqueles que não podem fazer outra coisa, que não encontram outros empregos ditos “normais” no mercado de trabalho primário, os imigrantes, etc. A economia digital, se traz em muitos aspectos muitas coisas positivas, também é responsável pelo agravamento das desigualdades e pela intensificação da dinâmica desigual do capitalismo.

DIGILABOUR: Quais podem ser alternativas ao cenário da economia digital em relação à organização do trabalho? 

AMELLAL: Há uma questão real, legítima, sobre o futuro do trabalho. Não podemos trabalhar hoje como vinte anos atrás, antes da disseminação das tecnologias digitais. Há uma demanda por autonomia, por maior liberdade, que deve ser entendida. Mas isso não significa criar empregos que façam retroceder mais de um século de progresso social. É o que acontece com a uberização e com a inteligência artificial. Isso provoca muitas resistências, como vimos em muitos países com movimentos grevistas, motoristas contra o Uber, ou municípios que se rebelam contra o Airbnb como em Barcelona, ​​ou em menor medida em Paris. Então, eu acho que, antes de tudo, há uma necessidade de regular mais essa economia. Cabe ao poder público fazê-lo (países, estados e municípios). Tanto na tributação quanto na legislação trabalhista, as regras do direito também devem prevalecer na internet, especialmente para essas grandes plataformas predatórias cujo crescimento, para a maioria, resulta da sua capacidade de escapar às regras, contorná-las (no plano fiscal inclusive). Isso é óbvio na legislação trabalhista, por exemplo: Uber ou Lyft ou outros estão lutando para explorar brechas na regulamentação para pagar menos impostos, menos impostos sobre folha de pagamento. Devemos, portanto, regulamentar, ou seja, adaptar a lei aos desenvolvimentos digitais atuais e futuros, levar em conta as mudanças no trabalho e no emprego e oferecer proteções aos trabalhadores. E então, paralelamente, os trabalhadores também devem se organizar diante das plataformas, defender seus direitos e pressionar as autoridades, os políticos, para que algo novo aconteça. Há algumas coisas muito interessantes acontecendo com os sindicatos, com novos coletivos de trabalhadores que têm surgido. E, em seguida, os trabalhadores digitais estão cada vez mais se agrupando em cooperativas, o que garante uma base mínima de direitos para os trabalhadores, enquanto se beneficiam das oportunidades de trabalho relacionadas à economia digital.

DIGILABOUR: Você coordenou uma grande pesquisa sobre ódio na internet na França, com implicações acadêmicas e políticas. Quais as principais propostas que essa investigação trouxe?

AMELLAL: A missão confiada a nós pelo presidente Emmanuel Macron, foi propor melhorias na lei para tentar reduzir os discursos de ódio online, especialmente nas redes sociais, para ajudar as vítimas, não para deixá-los sozinhos diante do ódio. Então trabalhamos muito, consultamos muito, para escrever um relatório que entregamos ao Primeiro Ministro em setembro de 2018 e que inclui 20 recomendações, que formam a base da lei que acaba de ser adotada na Assembléia Nacional para lutar contra o ódio online. A ideia não é reduzir a liberdade de expressão ou, como frequentemente ouvimos, confiar às plataformas, isto é, os operadores privados, o cuidado de “censurar” o conteúdo! Partimos de uma simples observação: as plataformas, pelos seus algoritmos, pela amplitude dos conteúdos que produzem, pela sua tecnologia, aumentam maciçamente o volume de conteúdos que, ao abrigo da lei francesa, são ilegais: conteúdos racistas, antissemitas, xenofóbicos, homofóbicos. A lei francesa, desde 1789, considera que isso tudo não é liberdade de expressão, mas que “abusos” dessa liberdade, que são prejudiciais ao debate democrático. Esta lei aplica-se muito bem no espaço público tradicional, na rua, mas muito pouco na internet e nas redes sociais. Por isso, tentamos encontrar soluções que não questionem a liberdade de expressão, mas que obriguem as plataformas a eliminar conteúdo. Como são as plataformas que criam esse problema, que estão na origem das perturbações, cabe a elas colocar os meios necessários para reparar alguns dos danos que causam. Daí a nossa proposta de uma obrigação de retirar dentro de 24 horas palavras que são obviamente ilegais, sob pena de penalidades financeiras muito significativas. Nós também propusemos a criação de um único botão para isso, porque denunciar um conteúdo, quando alguém é uma vítima, é um problema: é longo, complicado e, especialmente, praticamente não há retorno algum. Esta proposta foi adotada e aparecerá na lei. Também propusemos obrigações de transparência muito mais fortes para as plataformas, que hoje funcionam e agem de forma totalmente opaca, em termos de discurso de ódio e de forma mais geral. Finalmente, propusemos medidas para melhor prevenir o discurso do ódio, particularmente por meio de educação e conscientização, bem como medidas para melhor ajudar e apoiar as vítimas.

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