Marisol Sandoval é professora da City University of London e possui pesquisas nas áreas de trabalho digital (outro texto aqui), mídia alternativa e mídias sociais para além das mídias sociais corporativas.
Nos últimos anos, tem investigado as cooperativas na área de cultura. Um de seus textos, “Enfrentando a precariedade com cooperação”, foi traduzido para o português. Outros textos podem ser lidos aqui e aqui. Em seu texto mais recente, Sandoval trata do cooperativismo de plataforma entre a subversão e a cooptação, com o risco de reproduzir um “ativismo empreendedor”.
Em entrevista à DigiLabour, Marisol Sandoval analisa o cooperativismo e o cooperativismo de plataforma, com potencialidades, limites e contradições, principalmente a partir de sua pesquisa no setor de cultura. Também reflete sobre como sua investigação acabou se tornando uma espécie de pesquisa-ação, com impactos para além do universo acadêmico.
DIGILABOUR: Quais os desafios de compreender as cooperativas de um ponto de vista marxista?
MARISOL SANDOVAL: Eu acredito que Marx era bem complacente à ideia de cooperativa. Existem limitações. Para ele, as cooperativas realmente eram uma forma de produzir fora do sistema de trabalho assalariado, fora da divisão entre proprietários e trabalhadores, que isso era possível. Contudo, também sabia que, a partir do momento em que as cooperativas vivem e operam dentro do capitalismo, isso necessariamente reproduz os problemas que existem no sistema. É bem óbvio quais são esses problemas: internamente, cooperativas talvez sejam democráticas e apaguem divisões entre proprietários e não-proprietários, mas elas ainda têm que operar em uma economia de mercado capitalista, tendo que competir com outros negócios. Elas são negócios, afinal de contas, e encaram o constante desafio de garantir renda o suficiente para que possam efetivamente pagar seus membros. Ao mesmo tempo, é um modelo bem interessante em termos de se pensar sobre como ocorrem as mudanças sociais. É um modelo que está propondo mudança social por meio de um tipo de transformação gradual, opondo-se à luta de classes radical. Desta forma, isso tudo remonta a Robert Owen, considerado frequentemente como o pai do movimento cooperativista no Reino Unido, que era um um reformista social, por causa da ideia de criar vilas cooperativas, expandi-las e transformar o capitalismo a partir de dentro. Então, isso é bem diferente de dizer que nós precisamos de uma luta de classes revolucionária para transformar o capitalismo. Muitos marxistas também criticaram cooperativas, e uma das principais vertentes de crítica é a chamada crise degenerativa, formulada por Rosa Luxemburgo, em que argumenta que, a longo prazo, ou as cooperativas se inserem nos termos do capitalismo – meio que perdendo seus valores e ambições políticas, tornando-se efetivamente empresas capitalistas, no fim das contas – ou, se elas não se tornarem economicamente bem-sucedidas, eventualmente irão acabar se dissolvendo, pois não terão recursos o suficiente para suas operações, pagar seus membros, e acabarão quebrando. É uma crise degenerativa que coloca que ou você é radical politicamente – e então não será capaz de obter sucesso dentro do mercado capitalista – ou você tem sucesso no mercado capitalista, mas não pode mais ser politicamente radical. Eu acredito que essa seja uma crítica bastante válida e que isso é de fato uma luta que envolve as cooperativas, mas, obviamente, não é tão preto no branco assim. Há muitas cooperativas que efetivamente dão certo e conseguem manter suas ambições políticas ao mesmo tempo em que são capazes de sustentar suas operações. Então, é possível, mas é um desafio constante. Em minhas entrevistas, por exemplo, eu conversei com membros de cooperativas que afirmaram ter relutado em ponderar algumas coisas: quando alguém os procura para fazer vídeos para eles, se eles trabalham com essa pessoa com base em sua orientação política ou não. Eles talvez recusem trabalho pelo fato de o pensamento do cliente não ser compatível com os valores da cooperativa, e isso reverbera, claro. Há consequências negativas para a renda deles, mas estão dispostos a isso, a aceitar essas consequências. Nós poderíamos dizer, então, que as cooperativas, de forma geral, são bem ambivalentes. São potencialmente radicais politicamente, mas não necessariamente. Não são automaticamente anticapitalistas, e sequer automaticamente políticas. Há um vasto espectro de Cooperativas por aí. Marx, novamente, expressa esse tipo de ambivalência que encontramos nas cooperativas quando diz que elas significam que os trabalhadores estão se tornando seus próprios capitalistas. Por um lado, os trabalhadores superam esse tipo de cadeia do trabalho assalariado, mas eles também não podem realmente escapar do paradigma capitalista, e então se tornam seus próprios capitalistas. Isso é bem ambivalente. E então, sim, cooperativas podem existir dentro do capitalismo, que é o que as torna tão apelativas como projeto prefigurativo, como política prefigurativa, pois são passíveis de realização aqui e agora. Mas esse é também um problema, pois as torna muito suscetíveis à cooptação.
DIGILABOUR: Trabalhar sempre envolve, dialeticamente, expressão e expropriação. Quais potencialidades e limites você tem observado nas cooperativas do setor cultural?
SANDOVAL: Vou mencionar três questões. A primeira, definitivamente, é que existe um risco de autoexploração, como poderíamos nomear, ou talvez, não necessariamente isso, mas, o fato de ainda permanecer atado às estruturas competitivas do mercado, o que frequentemente leva as pessoas a terem que trabalhar por uma remuneração menor do que gostariam. Eu observei que, em muitas cooperativas, especialmente no início, os membros têm que fazer bastante trabalho não remunerado, trabalhar em jornadas bem longas, o que é muito estressante e exaustivo. Então, não é como se cooperativas fossem essa solução mágica na qual você apenas inicia uma e está tudo ótimo. Acho que a questão de como assegurar que as condições de trabalho sejam realmente boas é, de fato, ativamente, um ponto de reflexão para as cooperativas, e acredito que em muitas delas isso já seja recorrente em suas discussões. Os membros querem ter boas condições de trabalho, mas isso nem sempre é tão fácil de se conquistar por causa de restrições e dependências da competividade de mercado, entre outros. Então, definitivamente, o risco de autoexploração é um problema potencial e central. A segunda questão é o que a mídia chama de “risco de um gueto alternativo”. São as cooperativas que operam em pequenos nichos e segmentos, e o fazem de maneira bem-sucedida, mas não são capazes de expandir a ideia da cooperativa e torná-la disponível para um número maior de pessoas. Um problema é que, às vezes, essas cooperativas que prosperam são tanto politicamente radicais quanto economicamente bem-sucedidas, operando em mercados de nicho. E são capazes de fazer isso pois não há outras cooperativas em volta naquela mesma área. É isso o que lhes dá oportunidade de preencher uma lacuna na qual você pode ser politicamente radical e economicamente bem-sucedido. Eu sou bem cética quanto à ideia da possibilidade de escalada da economia cooperativista, de expandir cooperativas, e mais e mais cooperativas, e só, transformando o capitalismo de dentro pra fora. Acho que há vários problemas nessa ideia. A terceira questão é um risco grande de cooperativas se tornarem apolíticas e empresariais, o que é um risco não apenas para as cooperativas na área de cultura, mas para todas elas. Um pouco alinhando-se à crise degenerativa e seu argumento, acabam deixando de lado suas visões políticas, e ficam felizes e satisfeitas apenas com os benefícios que o modelo cooperativo pode trazer para os membros individuais. Claro que é muito bom se algumas pessoas tiverem condições de trabalho melhores por estarem empregadas em cooperativas, mas eu acho que, nesse sentido, o potencial político das cooperativas não está totalmente desenvolvido. Eu acredito que as cooperativas podem ir muito além disso se elas adotarem uma instância politicamente ativa relacionada ao fato de serem uma cooperativa em si, ou seja, ser uma cooperativa como um projeto político, conectando-se também com outras cooperativas, outras lutas, outros movimentos, grupos, sindicatos, e por aí vai. Há um tensionamento entre cooperativas como apenas um projeto – bem problemático – de melhoria de condições de condição para membros individuais e, por outro lado, cooperativas sendo marcadamente um projeto político que busca realizar transformação social. Para expandir o seu potencial político, elas precisam colaborar entre si e também formular demandas políticas para que elas se conectem e, juntas, formem um tipo de plataforma que advoga e argumenta por mudanças. Isso iria melhorar condições de trabalho não apenas para os membros, claro, mas para todos. Inclusive melhoraria as condições que permitem que as pessoas criem novas cooperativas. Eu acho, por exemplo, que um modelo de renda básica poderia ajudar as pessoas a ter mais tempo livre, a partir do qual elas podem, por exemplo, criar cooperativas e apreender o trabalho socialmente necessário pelo qual você geralmente não é pago no início. Esse é um exemplo de política pública que talvez poderia ajudar na criação de mais cooperativas, tornando-as um modelo acessível para um número maior de pessoas. Eu acho que é realmente importante efetivar as conexões entre cooperativas e outros grupos que lutam por mudança social. Movimentos sociais, sindicatos, entre outros. Acredito que criar uma coalizão e um movimento mais amplo é realmente importante nesse cenário.
DIGILABOUR: Como, em sua visão, o cooperativismo de plataforma aprofunda as tensões e contradições do cooperativismo? E como oferecer uma crítica solidária?
SANDOVAL: O cooperativismo de plataforma é um modelo muito interessante e com apelo, resgatando a chamada “economia do compartilhamento” e transformando-a, de fato, em partilha. Pegar as grandes plataformas e dar realmente para as pessoas é modelo muito interessante, mas acho que sabemos muito pouco sobre isso, e é necessário muito mais pesquisas. Nem sempre fica claro o que cooperativas de plataforma, de fato, são, tanto em teoria quanto na prática. O que conta para ser uma cooperativa de plataforma? Quais as fronteiras? Eu acho também que há poucos exemplos de cooperativas de plataforma que realmente existem. Muitas que eu conheço existem na maioria das vezes como uma ideia, uma visão, um projeto, em vez de uma cooperativa funcionando ativamente, como aquelas que eu entrevistei na área de cultura, por exemplo, que, de fato, existem para beneficiar seus membros e suas condições de trabalho. Eu penso que no reino das cooperativas de plataforma isso tudo é muito mais fluido e ainda não está claro o que elas são e o que podem fazer. Eu acho que são necessárias muito mais pesquisas para descobrir mais sobre esses projetos. Acho que há mais pesquisas prestes a sair e é um conceito ainda debatido há pouco tempo. Politicamente, eu acho que há uma grande variedade e um espectro muito amplo no cooperativismo de plataforma. Algumas dessas cooperativas tem em seu cerne a ideia de aprimorar condições de trabalho. Outras possuem foco em transformar o capitalismo de forma geral. Há também as que talvez sejam completamente apolíticas, entre outras. O que eu tenho observado com bastante frequência em debates sobre o tema é, algumas vezes, uma afinidade com o empreendedorismo. Há uma linguagem similar às de startups. Há também uma grande euforia em relação às possibilidades deste modelo. Acho que nós precisamos ser realmente bem críticos em relação a essa linguagem do empreendedorismo. Não basta, por exemplo, ser crítico das Big Tech, mas aceitar o empreendedorismo. Acho que essas ideias empreendedoras devem ser examinadas de maneira bem crítica. Também nas autodescrições das cooperativas de plataformas em seus sites, que eu analisei recentemente, descobri que há, geralmente, uma adesão muito acrítica dos termos que vêm do vocabulário da área de negócios e do empreendedorismo, tais como lucro, acionista, investimento, retorno sob investimento (ROI), esse tipo de vocabulário, e eu acredito que isso seja bem problemático. Eu não quero entrar muito nos detalhes do motivo do empreendedorismo ser problemático, mas acredito que uma justificativa específica, que está relacionada à minha pesquisa, é que o empreendedorismo carrega um modo de trabalho que é voltado à competição, é altamente baseado no mito individualizado do criativo-empreendedor genial, que é muito trabalhador, com ritmo acelerado, sempre a postos para o trabalho, sendo flexível, e por aí vai. Eu acho que são todas essas qualidades laborais que precisam ser criticadas. Então, se cooperativas querem ser uma alternativa a isso, elas também precisam pensar em modos alternativos de trabalho que não reproduzam esses padrões, mas que tirem parte da velocidade e das pressões das nossas vidas no trabalho. Não é suficiente somente substituir uma economia empreendedora individualizada por uma empreendedora cooperativista. Isso é muito simples: tem a ver com questionar de que modo podemos nos engajar no trabalho. É sobre questionar o papel que ele desempenha em nossas vidas e o quanto nós trabalhamos. Acho que essas são as questões que devem ser consideradas. Precisamos encontrar uma alternativa ao vocabulário que usamos para falar sobre trabalho, à nossa maneira de abordá-lo, e à função que o trabalho desempenha em nossas vidas. Eu acho, de verdade, que o empreendedorismo não nos leva a nenhum lugar que seja perto disso, então, creio que ele deve ser rejeitado e criticado, e que precisamos desenvolver ideias alternativas.
DIGILABOUR: Como tem sido sua experiência na comunicação com públicos não acadêmicos? A sua pesquisa tem algo de pesquisa-ação?
SANDOVAL: Minha experiência tem sido principalmente nas entrevistas com membros de cooperativas do setor cultural. Eu definitivamente não comecei com o intuito de fazer uma pesquisa-ação. Iniciei com a intenção de descobrir mais sobre o modelo de cooperativas e ver como ele poderia ser, talvez, uma solução para os problemas das condições precárias e de exploração do trabalho individual no setor cultural. Ao fazer isso, conversei com pessoas de diversas partes do Reino Unido que, de fato, trabalham em cooperativas na área de cultura e, por meio desses contatos, de certa forma, eu estabeleci uma relação de trabalho mais próxima com essas pessoas e poderia dizer que isso acabou se tornando, em alguma medida, uma pesquisa-ação. Eu colaborei, por exemplo, com a cooperativa Blakehouse, produtora de filmes. Eles me ajudaram a criar dois vídeos, que evidenciam um trabalho em conjunto com outras duas cooperativas do setor cultural, Calverts Printers e Ceramic Studio, que é um pequeno estúdio de cerâmica no sul de Londres. Eles me ajudaram a criar o site com resultados da pesquisa, Cultural.Coop., e também me auxiliaram na organização de um dia de network para as cooperativas. Juntamos membros de cooperativas de cultura de todo o país com a ideia de reuni-los para refletir como seria um movimento de cooperativas na área de cultura. De que forma elas poderiam apoiar umas às outras para que não tivessem que trabalhar de maneira individual lidando com complicações do dia-a-dia? Talvez criar um senso de comunidade, o que poderia se tornar demandas políticas para um movimento de cooperativas de cultura. Isto é, como elas poderiam trabalhar em conjunto e juntar forças em prol do poder coletivo. A ideia deste projeto, então, acabou se transformando em uma pesquisa-ação. Como podemos criar recursos? Como algo pode ser feito a partir da pesquisa que, de fato, dê suporte ao movimento, que não seja conhecimento acadêmico, mas que realmente ajude a fortalecer as cooperativas de cultura? Que seja algo que realmente evidencie esse modelo como uma alternativa ao trabalho em um emprego cooperativo ou individualmente como freelancer. A ideia do site é inspirar estudantes e outras pessoas da área que estejam procurando por alternativas, no sentido de mostrar que, de fato, esse é um modelo viável, que existe e que pode fazer uma diferença significativa. Foi realmente prazeroso conhecer essas jovens pessoas inspiradoras, criativas e talentosas que trabalham em cooperativas de cultura, e que basicamente fizeram desta pesquisa ser o que ela é. Foi um processo incrível! Eu nunca tinha experenciado nada assim antes na pesquisa, em que as pessoas simplesmente se juntavam e estavam ávidas para ajudar e dar ideias para o projeto. Foi uma experiência realmente única!
DIGILABOUR: Quais as próximas etapas da sua pesquisa?
SANDOVAL: Em termos de cooperativas, eu tenho colaborado com um grupo de pesquisadoras que têm movimentado o projeto Cultural Workers Organize. Atualmente estamos trabalhando em uma pesquisa sobre cooperativas de cultura no Reino Unido, no Canadá e nos Estados Unidos. Para além das entrevistas já realizadas, essa pesquisa é realmente voltada para o mapeamento do setor cooperativista nas indústrias culturais, quantos membros têm, como realmente são as condições de trabalho, quais os benefícios e os problemas do setor. Esperamos apresentar alguns resultados iniciais desta investigação até o fim do ano. Espero que esse projeto ajude a revigorar um pouco o meu site Cultural.Coop. Eu também vou colaborar novamente com a cooperativa de audiovisual Blakehouse para criar outro curta sobre cooperativas, e tudo estará no site.