Entrevista realizada por Evgeny Morozov e publicada originalmente no The Crypto Syllabus
Muito do que ouvimos sobre criptomoedas vem do Norte Global ou de algumas pequenas nações insulares do Pacífico ou do Caribe (qualquer território que ganhe na loteria para se tornar a próxima Cryptolândia ). É por isso que achei que seria uma boa ideia falar com Edemilson Paraná , sociólogo brasileiro que pesquisa a ascensão das finanças digitalizadas, com foco particular em como as tecnologias digitais transformam o setor financeiro brasileiro.
Tendo lido o livro de Paraná de 2016 sobre o assunto, fiquei agradavelmente surpreso ao descobrir que ele também publicou recentemente um livro sobre Bitcoin e como devemos pensar sobre as criptomoedas à luz de seu surgimento após a crise financeira de 2008. Chamado Bitcoin: a utopia tecnocrática do dinheiro apolítico, saiu no Brasil em 2020. Meu português é bom o suficiente, então gostei de ler no original. Para quem não lê português, será preciso esperar pela tradução em inglês pela editora Brill.
Nossa conversa começa com Paraná articulando sua teoria mais abrangente de como as tecnologias digitais e as finanças modernas se relacionam. Em seguida, passamos a discutir as origens ideológicas do Bitcoin; como as criptomoedas mobilizam o digital para “desvirtualizar” o dinheiro; por que o Brasil provavelmente introduzirá sua própria moeda digital de Banco Central, mas também por que ela pode não ser tão progressista quanto se poderia pensar; e, por fim, a composição dos cripto-boosters no país.
~Evgeny Morozov
EVGENY MOROZOV: Antes de chegarmos à criptografia, vamos descrever algumas de suas visões gerais sobre finanças, tecnologia e capitalismo. Por exemplo, suas pesquisas anteriores discutem uma ampla mudança do regime de acumulação do pós-guerra que conhecemos como fordismo-keynesianismo para o regime de acumulação contemporâneo dominado pelas finanças. Você identifica as tecnologias digitais como um dos principais fatores por trás dessa mudança. Como exatamente as tecnologias digitais se encaixam no novo capitalismo liderado pelas finanças? É proporcionando estabilidade ou, antes, criando novas oportunidades para extrair lucro, ou, talvez, de alguma outra forma?
EDEMILSON PARANÁ: Há certamente uma causalidade estrutural entre o desenvolvimento das tecnologias digitais e o novo domínio exercido pelas finanças. Em certo aspecto, sem essas tecnologias, o tipo especial de financeirização que se instalou na década de 1980 e continua até hoje simplesmente não seria possível. E a própria financeirização evoluiu nessa direção. Agora é cada vez mais centrada em dados e algoritmos. Sem tecnologias digitais, alguns dos instrumentos financeiros de hoje simplesmente não existiriam.
É por isso que o meu trabalho se refere à “finança digitalizada”. O conceito procura descrever o novo sistema de gestão sociotécnica para a valorização do capital financeiro. Essa valorização ocorre com a implantação de tecnologias automatizadas de ponta, que aceleram a compressão dos fluxos espaço-temporais para obter ganhos financeiros líquidos de curto prazo em escala global.
Parafraseando nossos camaradas chineses, pode-se dizer que se trata de uma “financeirização com características digitais” ou uma “digitalização com características financeiras”. Sua lógica é a de criar novas oportunidades de extração de lucro e, definitivamente, não a de proporcionar transparência e estabilidade.
MOROZOV: Em seu livro anterior, em que você discutiu o surgimento de dark pools e negociações de alta frequência, você escreveu que a penetração da tecnologia no sistema financeiro leva à proliferação de novos riscos e instabilidades. Como exatamente isso acontece?
PARANÁ: Em meu estudo de diferentes mercados financeiros, observei a recorrência de um certo padrão que descrevi como “a espiral de complexidade das finanças digitalizadas”. Essa espiral é um processo de feedback que alimenta a crescente complexidade dos mercados financeiros. Como resultado, muitos dos próprios operadores financeiros – para não mencionar os reguladores – não sabem exatamente o que está acontecendo nos mercados. Os chamados “flash crashes”, em que os mercados se comportam de maneira estranha e inesperada, são um bom exemplo.
A espiral da complexidade das finanças digitalizadas
Essa espiral ilustra como decisões individuais completamente racionais podem produzir resultados sociais irracionais. Há três passos básicos para isso.
Em primeiro lugar, nas finanças altamente digitalizadas, a busca de ganhos financeiros inexplorados incentiva os principais atores a inventar, implantar e refinar os meios necessários para superar os obstáculos tecnológicos ou regulatórios que impedem a especulação. Em segundo lugar, a ampla adoção dessas novas tecnologias leva ao surgimento de novas configurações institucionais, novos modos de ação e novas dinâmicas operacionais. Como resultado, os mercados são reconfigurados, em parte em resposta aos conflitos políticos e sociais que surgem. Finalmente, a consequente emergência de um novo ambiente institucional e tecnológico incentiva o desenvolvimento e implementação de outras e novas soluções técnicas. Esse ciclo de complexidade crescente envolve investidores, reguladores, empresas de tecnologia e outros (muitas vezes relutantes) participantes .
MOROZOV: Você também argumentou que as tecnologias digitais realmente ajudam a consolidar o domínio das finanças modernas sobre nossas vidas. Você poderia explicar um pouco como exatamente isso acontece?
PARANÁ: Talvez eu possa invocar outro conceito para explicar a dinâmica envolvida: o “ciclo de operações das finanças digitalizadas”. Como já disse, o principal impacto que as tecnologias digitais têm no mercado é encurtar os fluxos espaço-temporais, ou seja, tornam tudo mais rápido e mais próximo. Isso faz aumentar o número e o volume de operações e transações de mercado. Os sistemas digitais por trás desses negócios e transações são imensamente complexos, operam em enorme velocidade e possuem tremendas habilidades de aprendizado e adaptação. Assim, eles tornam o trabalho de regulação dos mercados muito mais desafiador. Há muita opacidade e incerteza envolvidas. Neste cenário, em que os reguladores se encontram em desvantagem, aprofunda-se a concentração e centralização de capitais dentro e entre mercados: aqueles no controle das tecnologias mais avançadas tendem a obter maiores lucros, o que termina por reforçar essa centralização. Isso contribui, enfim, para consolidar a hegemonia do capitalismo financeiro.
MOROZOV: Em seu livro anterior, você já fez alusão às condições de possibilidade por trás da ascensão das criptomoedas: à medida que o sistema financeiro global se tornou mais instável, opaco e imprevisível – principalmente por causa das negociações de alta frequência e outras inovações –, de alguma forma, ele precisava ancorar suas operações em algo que prometia certeza, transparência e previsibilidade… Bitcoin e blockchain forneceram exatamente isso. Você poderia falar mais sobre isso?
PARANÁ: Em certo sentido, é a atualização de um velho paradoxo. Enquanto os capitalistas precisam acumular informações para domar a incerteza, eles próprios querem viver em um ambiente de baixa informação, evitando o escrutínio de consumidores, cidadãos, governos e mídia, pelo menos no que diz respeito às suas próprias estratégias de lucro. Portanto, as empresas sempre querem transparência quase total para todos, menos para si mesmas. Seus concorrentes – assim como governos e tecnocratas – têm objetivos semelhantes, produzindo cenários incertos, arriscados e bastante “opacos”.
Assim, a luta entre essas duas tendências – sua combinação particular em diferentes contextos – é, a meu ver, a chave para entender a governança da informação dentro do capitalismo. Ela expressa a contradição capitalista fundamental, ou seja, a de que a produção é um processo social coletivo que, no entanto, é conduzido e controlado de forma privada. As disputas sobre o controle das informações precisam ser abordadas dessa maneira. Uma vez que a contradição subjacente nunca pode ser resolvida adequadamente, tudo o que essas disputas podem fazer é acomodar precariamente essas tendências de autocancelamento.
Um exemplo óbvio é a “espiral da complexidade” que já mencionei. Ela é marcada não apenas por uma dinâmica caótica e incontrolável, mas também por uma dinâmica altamente confusa: poucos especialistas e operadores podem realmente navegar bem. Essa crescente opacidade dos mercados torna-se um elemento de controle, deixando a gestão das informações estratégicas nas mãos de uma elite fechada de investidores.
Governos e reguladores, mas também pequenos investidores, aqueles que atuam nas bordas, tornam-se cada vez mais dependentes de grandes fundos, corretoras e instituições financeiras para administrar seus investimentos. Isso geralmente é feito com muito pouca transparência. E tudo isso em nome de eficiência, estabilidade e previsibilidade. A opacidade é o “outro”, a verdade da transparência capitalista.
MOROZOV: Em seu livro mais recente, você apresenta o Bitcoin como uma estranha consequência da crise financeira de 2008, com sua dinâmica contraditória. De que maneira essa crise financeira moldou a recepção inicial do Bitcoin, bem como seu desenvolvimento subsequente? Afinal, ele mal floresceu como o meio de pagamento que Nakamoto queria que fosse, desencadeando uma enorme “bolha de ativos” – não muito diferente daqueles culpados por desencadear muitas das crises financeiras anteriores…
PARANÁ: Atingindo o radar público após a crise de 2008 – em um momento em que o neoliberalismo “realmente existente” lutava com uma grave crise – o libertarianismo “anti-establishment” das criptomoedas atesta a intensificação da ideologia neoliberal, ao mesmo tempo em que ilustra seus muitos problemas, limitações e contradições como prática de governo. O Bitcoin, assim, aparece como mais um aspecto do rastejante neoliberalismo zumbi em que vivemos, como um estridente “sintoma mórbido” de alta tecnologia de nossos tempos.
No livro, defino o Bitcoin como um “filho rebelde do neoliberalismo”. É bem conhecido que muitos dentro da comunidade Bitcoin defendem as ideias centrais do neoliberalismo (monetarismo de Milton Friedman, catalaxia de Friedrich Hayek, etc.). Ao mesmo tempo, o Bitcoin – e a retórica antiestatista, radical e abertamente confrontadora em torno dele – confunde muitos dentro do establishment neoliberal “realmente existente”, com sua solução “pragmática” de problemas.
Créditos: Gabriel Marques
É verdade que a ascensão do Bitcoin – e o ressurgimento mais amplo da Escola Austríaca – fala muito sobre o clima político da era pós-2008. Apresentando-se em oposição ao establishment político amplamente percebido como autorreferencial, corrupto e antidemocrático, o Bitcoin afirma representar uma forma de dinheiro supostamente “apolítica” e “honesta”. Ironicamente, criptomoedas como o Bitcoin também vêm exacerbar, de inúmeras maneiras, os próprios princípios da era neoliberal, turbinando o processo de assetização especulativa de tudo.
Esta é a tragédia de Édipo tediosamente óbvia em torno do Bitcoin. É como se esse “filho rebelde” histriônico do neoliberalismo de repente começasse a exigir coerência de seu pai, o establishment neoliberal. Após a crise financeira, esse pai foi exposto como um velho perverso e hipócrita, pregando uma coisa, mas, ao socorrer os bancos, fazendo exatamente o oposto.
Assim, o radicalismo libertário do Bitcoin ganha espaço justamente por exigir, de forma tecnocrática, que o neoliberalismo cumpra suas promessas iniciais: promover a competição generalizada como forma de gerar “inovação”, defender a propriedade individual, avançar os projetos de mercantilização e privatização, etc. O Bitcoin, apesar de seus aspectos tecnicamente inovadores, não é muito mais do que a transmutação dessa mesma agenda para o campo da gestão monetária.
MOROZOV: Sua análise sobre o Bitcoin o apresenta como uma combinação de três correntes ideológicas: neoliberalismo, populismo anti-establishment e utopismo tecnológico. Todas essas três ideologias se somam a um projeto comum coerente e, em caso afirmativo, qual é?
PARANÁ: A meu ver, o núcleo estrutural da ideologia em torno do Bitcoin é representado pelo princípio teórico, tão importante para a ortodoxia econômica, de que o dinheiro é e deve ser neutro. A mesma ideologia sustenta que o dinheiro, como uma criatura do mercado, é apenas um véu, um lubrificante, um capacitador técnico e um veículo para troca de mercadorias. Nessa visão, o dinheiro é uma “coisa” que, por suas qualidades particulares, passa a desempenhar suas funções específicas no mercado. O dinheiro, nessa visão, deve ser regulado – ou melhor, autorregulado – pelo próprio mercado.
Assim, algo como a inflação é reformulada como uma forma tirânica de erodir a propriedade individual para promover a servidão. A inflação é sempre vista como um fenômeno puramente monetário, que surge, em grande parte, da intervenção externa na esfera monetária pela – quem mais? – figura aterrorizante do Estado. Este último representa, por fim, o coletivismo autoritário: uma invasão política sempre viciosa e ineficiente no que de outra forma seria a existência puramente técnica e funcional do dinheiro. Essa é a fantasia que une muitos neoliberais, os populistas anti-establishment e os utópicos tecnológicos associados ao Bitcoin.
MOROZOV: Outra observação muito astuta em sua análise sobre os defensores das criptomoedas tem a ver com a insistência deles de que o político e o econômico podem ser claramente separados, de modo que o econômico seria gerenciado pelos sistemas algorítmicos que dependem das leis da matemática e da física, em vez de serem sobre confiança e política e todo esse negócio humano sujo. Você acha que essa tendência de ver os dois como separados se origina no pensamento neoliberal ou tecnocrático? Suponho que alguém como Hayek, com sua insistência em “destronar a política”, pode muito bem concordar com a necessidade de manter o político fora do econômico tanto quanto possível. Mas alguém como Thorstein Veblen, com sua crença no poder dos engenheiros, pode realmente acreditar nisso também…
PARANÁ: O determinismo tecnológico e o liberalismo econômico tendem a caminhar juntos, embora não sejam a mesma coisa. Podemos traçar isso até David Ricardo e seus contemporâneos: mercados e dinheiro são uma questão de auto-regulação, é uma questão técnica que não deve ser corroída por políticas e valores; devemos resolvê-la sem discutir crenças, cultura, história, instituições, objetivos e entendimentos comuns, necessidades sociais e assim por diante. Tudo o que importa são os mercados e os indivíduos trans-históricos, com suas tecnologias autônomas magicamente neutras. Apenas eles constituem o caminho para a liberdade e a prosperidade.
Claro, existem todos os tipos de nuances em termos de como esses princípios são combinados em várias formas de liberalismo, mas, em vários graus, eles estão sempre presentes. O político deve ficar de fora, não tem nada a ver com o econômico. Eles têm de ser claramente separados e a fronteira entre eles tem de ser policiada. Aliás, é aí que a tecnologia entra em cena. Não apenas em termos de possibilitar a “inovação” e a “destruição criativa”, mas também como forma de materializar a paranóia colonial proprietária contra o social, contra tudo o que não pode ser encapsulado em termos de mercado e sua racionalidade.
Não é coincidência que o próprio Milton Friedman tenha sugerido, no início da década de 1990, que o Sistema de Reserva Federal dos Estados Unidos fosse substituído por um computador, programado para aumentar automaticamente a oferta monetária com base em projeções de crescimento populacional. Dessa forma, a necessidade de política monetária seria extinta – junto com a necessidade de manter algo como um Banco Central.
Bem, em certo sentido, é exatamente o que o Bitcoin tentou realizar em sua utopia em torno de um dinheiro programável. No entanto, ao contrário das crenças de neoliberais como Friedman, o dinheiro é uma relação social, não uma coisa. Assim, não importa se é físico ou não, se é papel, prata ou dígitos na tela: em certo sentido, ele já é “virtual” – caso contrário, não poderia funcionar propriamente como dinheiro. A “virtualidade” do dinheiro não tem nada a ver com sua “digitalidade”.
O que o Bitcoin tenta fazer é implantar tecnologias digitais para “desvirtualizar” o dinheiro, ou seja, transformá-lo de uma “relação social” em uma “coisa”. O fato de essa coisa ser “digital” não deve nos distrair da compreensão do objetivo subjacente. Nesse sentido, a ideologia do Bitcoin não é tão diferente do imaginário que nos trouxe aos aficionados pelo ouro, aos metalistas monetários. Novamente, não é coincidência que bastante de sua linguagem técnica seja baseada em metáforas fisicalistas relacionadas ao ouro: minerar, cunhar, cavar, etc. O bitcoin é um metalismo digital.
MOROZOV: Com base em seu argumento anterior sobre criptomoedas também servindo a uma certa função legitimadora para o capitalismo global, pode-se dizer que, em retrospecto, a principal contribuição do Bitcoin nos últimos 13 anos foi manter a crítica dominante do capitalismo – e do Banco Central – que floresceu no ambiente pós-2008 estritamente dentro de contornos sistêmicos, ou seja, sem realmente desafiar o capitalismo como tal? É difícil ver Wall Street e o sistema financeiro se sentindo particularmente ansiosos quando toda a raiva antissistêmica é desabafada através de comunidades do Reddit, como WallStreetBets, com dinheiro fluindo para Robin Hood e vários aplicativos chamados DeFi? Como você vê isso acontecendo no Brasil?
PARANÁ: Sim, é verdade. E é muito impressionante ver isso acontecendo no Brasil, um país enorme e complexo cheio de contradições muito interessantes, mas também trágicas. Quando lancei meu primeiro livro sobre Finanças Digitalizadas, em 2016, fiz eventos de lançamento por várias cidades brasileiras. Dada a natureza do assunto, a maioria dessas conferências foi nas escolas de economia e administração de importantes universidades.
O ambiente universitário brasileiro, especialmente o das universidades públicas, foi, por décadas, mesmo nos tempos difíceis da ditadura, tradicionalmente progressista. Embora estas tendam a ser mais conservadoras, isso também se aplica a algumas escolas de economia proeminentes, pois temos uma forte tradição de economistas heterodoxos influentes no país. E aqui estou eu, debatendo sobre financeirização digital com acadêmicos maduros que eram muito mais progressistas em conteúdo do que seus jovens alunos (ao menos na aparência) rebeldes. Os últimos, com seus olhos brilhantes de calouros, sempre me perguntavam, em todos os lugares, sobre Bitcoin, criptomoedas e afins. Alguns iam mais longe, debatendo Hayek, Mises e outros. Pior que isso, ao dar palestras para sindicatos e organizações políticas de esquerda, muitas vezes presenciei pessoas fazendo o mesmo.
Ficou claro para mim que algo sério estava acontecendo, então decidi me dedicar a explicar isso. Não à toa, 2016 é o ano, como muitos apontam, da estreia de Jair Bolsonaro como candidato à presidência, durante o impeachment da presidenta Dilma, quando, ao anunciar seu voto a favor do impeachment no Parlamento, saudou o torturador de Dilma nos anos da ditadura. Não foi muito difícil ligar os pontos.
Grande parte das pessoas do mercado financeiro no Brasil logo o abraçaram de braços abertos, especialmente a nova geração de economistas que trabalham na tradição da economia austríaca – eles foram os primeiros! – e os entusiastas de criptomoedas. Sua retórica lunática era bastante familiar: tudo era culpa do governo; todos, exceto os neoliberais hardcore, eram comunistas; o país estava à beira do socialismo pleno. Alguns deles seriam posteriormente convidados para o governo pelo novo ministro da Economia de Bolsonaro, Paulo Guedes, um financista dos Chicago Boys que trabalhou com Pinochet no Chile.
Diante disso, o hype das criptomoedas no Brasil é quase totalmente impulsionado pelos direitistas hardcore. Muitos deles, é claro, contam com generoso apoio ideológico, logístico e financeiro de think-tanks conservadores estadunidenses e organizações libertárias, como está muito bem documentado a essa altura. Dito isso, também é verdade que o Bitcoin apresenta alguns desafios interessantes e às vezes intransponíveis para grandes bancos, governos e instituições financeiras internacionais. E esse paradoxo precisa ser levado a sério.
MOROZOV: O Brasil, sob Bolsonaro, provou ser particularmente receptivo ao Instituto Mises e várias outras instituições de livre mercado; parece haver muitas dessas comunidades online. Quanto eles estão em criptografia? Eles conseguiram apresentar argumentos verdadeiramente novos contra os Bancos Centrais (e o governo em geral) ou se apegaram aos pontos de discussão convencionais? Quais são suas principais demandas políticas quando se trata de regulamentação de criptomoedas, tanto em termos de investimentos quanto de operações de mineração? Quem são seus principais apoiadores no governo Bolsonaro?
PARANÁ: Eu diria que existem duas camadas de entusiastas de criptomoedas no Brasil. O primeiro inclui jovens geeks, aficionados por tecnologia e ativistas de mídias sociais, engenheiros e programadores, pessoal de tecnologia e assim por diante. Isso não é exclusivo do Brasil, encontramos esses tipos em todos os lugares. Eles tendem a ser mais idealistas e de alguma forma ingênuos; são geralmente homens de classe média alta, em sua maioria brancos, na casa dos trinta – geralmente investidores e desenvolvedores.
A outra camada é composta por pessoas que estão ganhando, de diferentes maneiras, quantias significativas de dinheiro com criptomoedas. Essas pessoas estão em fintechs e instituições financeiras emergentes, algumas delas enormes, propagando o criptoevangelismo vendendo livros e “cursos de investimento” e, mais comumente, investindo ou vendendo algum tipo de produto criptográfico ou esquema criptográfico. E aqui, nesta segunda camada, você tem uma subdivisão: aqueles que são abertamente criminosos, construindo vários esquemas de pirâmide; e aqueles que são legítimos, trabalhando para corretores, exchanges, produtores de aplicativos, cobradores de taxas de qualquer tipo, como parte desse crescente ecossistema criptográfico no Brasil. Alguns representantes desse ramo, digamos, legítimo do negócio fazem parte da porta giratória que liga o Ministério da Economia de Bolsonaro às grandes instituições financeiras do país.
Essa segunda camada ataca principalmente uma massa crescente de pessoas, expostas a anos de reformas neoliberais, que estão desesperadas para ganhar algum dinheiro com suas economias pessoais em declínio em tempos de crise. Essas pessoas, muitas delas desempregadas recentemente, nutrem o sonho de se tornar subitamente ricas especulando com criptomoedas, muitas vezes para complementar suas rendas em declínio.
Todo esse ambiente não abre muito espaço para argumentos verdadeiramente novos contra bancos centrais e governos, pois eles não estão muito interessados nisso em primeiro lugar. Eles querem, acima de tudo, ganhar dinheiro. Então, eles reproduzem principalmente aqueles pontos de discussão já bastante conhecidos. Não há um único, se bem me lembro, economista ou intelectual austríaco ilustre que seja academicamente reconhecido no Brasil, embora, com a ajuda de organizações estadunidenses, alguns possam surgir em breve. Suas principais demandas políticas são construídas em torno de algo como “deixe-me em paz e deixe-me ganhar meu dinheiro”, tentando sempre que possível obter algum privilégio ou apoio – até mesmo do governo – para sua agenda e seus negócios.
MOROZOV: Seguindo o exemplo de El Salvador, alguns políticos no Brasil querem que o Bitcoin tenha curso legal. Usar bitcoins para “comprar uma casa, um carro, ir ao McDonald’s comprar um hambúrguer”, citando um deputado federal, Aureo Ribeiro. Este é um debate marginal no país ou é algo que vale a pena levar a sério? Que lições se pode tirar da experiência de El Salvador para o caso brasileiro? Existem elementos valiosos que você vê lá – como a carteira Chivo , por exemplo?
PARANÁ: Acho que não vale a pena levar a sério, pelo menos neste momento. Alguns fatores estruturais explicam isso. A primeira, e a mais importante, é que o Brasil possui um sistema financeiro complexo, forte, capitalizado e tecnologicamente avançado, ainda relativamente bem regulado e, sobretudo, estruturado por alguns dos maiores bancos da América Latina, dois deles parcialmente controlados pelo Estado. Esses bancos, especialmente os totalmente privados, controlam politicamente o Banco Central do país e a política monetária do país.
Isso, é claro, é um problema, mas, quando se trata de criptomoeda, paradoxalmente oferece uma forma de defesa. Esse ambiente financeiro oligopolista tem se mostrado desafiador até mesmo para grandes bancos internacionais e Big Techs; eles têm dificuldade em montar operações financeiras no país. Então, embora a carteira Chivo de El Salvador seja certamente um experimento interessante em certos aspectos, não vejo isso acontecendo da mesma forma no Brasil. Eu acho, no entanto, que algum tipo de carteira digital pode eventualmente ser lançada, como um esforço conjunto de empresas privadas de pagamento, grandes bancos e o banco central. É assim que as coisas tendem a acontecer no sistema financeiro brasileiro.
Além disso, ainda temos uma burocracia estatal muito bem equipada, que vem se mostrando contra fazer do Bitcoin uma moeda de curso legal. Finalmente, temos também economistas bem formados e influentes, tanto à esquerda quanto à direita, que oferecem resistência diária a tais propostas. Adicionalmente, a grande mídia – e, com ela, a opinião pública – também se conscientizou de como esse espaço está sendo utilizado para favorecer práticas ilícitas. Então, a principal tendência agora é deixar o jogo continuar do jeito que está e ver o que acontece depois. O que alguns representantes da grande finança no país realmente desejam – como sugere Paulo Guedes, ministro da Economia – é dolarizar a economia brasileira (o que certamente seria uma tragédia), mas mesmo isso encontra resistência importante.
Resumindo, eu diria que o Brasil está mais perto de ter sua própria Moeda Digital de Banco Central do que fazer do Bitcoin moeda de curso legal. Isso, claro, não contradiz o fato de que este é um negócio em rápido crescimento no Brasil.
MOROZOV: Após o lançamento de seu último livro, você foi duramente atacado nas redes sociais por vários militantes anarcocapitalistas. Você poderia explicar como o debate público evoluiu desde suas primeiras intervenções? Você acompanhou as discussões e desenvolvimentos dentro das comunidades online que defendem as tecnologias criptográficas da direita? Relacionado a isso, existem comunidades online no Brasil que defendem as criptomoedas desde a esquerda? É uma indústria em crescimento, por razões desconhecidas, pelo menos no mundo anglo-saxão…
PARANÁ: A relação do mundo criptográfico, sejam eles técnicos ou financistas, com as comunidades digitais de direita tem contribuído para enfraquecer um pouco o engajamento organizado da esquerda com cripto, embora ainda haja algum envolvimento com iniciativas de blockchain, pessoas experimentando com plataformas cooperativas e afins. O ambiente está mudando porque, por muitas razões, o clima político geral está mudando no país. De alguma forma, as reações positivas e negativas ao livro relacionam-se com isso.
Quando o livro foi publicado, fui atacado não apenas pelos anarco-capitalistas e cripto-evangelistas, mas também por “laicos” que colocam sua esperança desesperada de ganhar algum dinheiro com isso, pessoas que investem, pessoas que trabalham nesta indústria, pessoas que dependem disso. Desde então, muitos esquemas de criptomoedas estão recebendo cobertura midiática e prendendo pessoas no Brasil e, também, um número significativo desses pequenos investidores perdeu seu dinheiro ou pelo menos não ganhou o que foi prometido a eles. O aprofundamento da crise epidêmica, econômica e política está, em parte, abrindo o debate para perspectivas mais críticas. Dito isso, o Brasil ainda é um terreno muito fértil para criptomoedas e cripto-negócios, e a narrativa ainda é amplamente dominada por entusiastas e propagandistas que certamente estão sendo bem-sucedidos em seu trabalho.
MOROZOV: Você vê algum valor em governos de esquerda – digamos, se Lula for eleito novamente no Brasil ainda este ano – realmente adotando as chamadas Moedas Digitais de Banco Central? Eles seriam capazes de implantar algum tipo de agenda progressista, ou isso seria muito difícil, dada a reorientação neoliberal do Banco Central sob Bolsonaro?
PARANÁ: O Brasil se revelou nas últimas décadas como um país muito aberto à transformação digital de seus sistemas bancário e financeiro, como discuto em meu livro anterior. Os bancos comerciais brasileiros são conhecidos por terem feito avanços muito efetivos nessa área, anos à frente de grande parte dos países desenvolvidos. O mesmo tem ocorrido em seus mercados de capitais, que se situam regularmente entre alguns dos mais avançados tecnologicamente do mundo. E essa também é uma realidade para instituições públicas como o Banco Central e a Receita Federal, que são totalmente integradas digitalmente. O Brasil implementou recentemente seu próprio sistema de pagamento digital do Banco Central chamado PIX, uma iniciativa pioneira nessa área.
Em suma, temos engenheiros muito bem formados, muito know-how, os recursos necessários e um ambiente político e econômico que acolhe essas iniciativas para controlá-las em seus próprios termos. E aqui reside a questão: controle. Como essas iniciativas estão sendo conduzidas de forma centralizada, em plena aliança com os interesses dos grandes bancos privados, vemos muita mudança cosmética que existe apenas para manter o status quo. No meu entender, algum tipo de implementação de moeda digital de Banco Central é apenas uma questão de tempo no Brasil. Infelizmente, é provável que isso caminhe nessa mesma direção, ou seja, respeitando a tradição brasileira de “modernização conservadora”.
Estou convencido de que as moedas digitais de Banco Central representam uma oportunidade interessante para uma agenda progressista de várias maneiras. Mas suas configurações técnicas e práticas teriam de ser desenhadas para atender a conteúdos políticos alternativos e uma orientação diferente de política monetária e macrogestão. Este é o desafio crucial aqui. Certamente é possível, mas exigirá um esforço político gigantesco, algo que contraria o que vem acontecendo há décadas no país.
MOROZOV: Você escreveu, de forma um tanto crítica, sobre Assange e Snowden por estes reforçarem a parte utópica tecnológica do Bitcoin. Não posso dizer que concordo totalmente com sua caracterização deles no livro, mas é difícil negar que, pelo menos no caso de Assange, há um resíduo da ideologia cypherpunk anterior que baseou suas primeiras opiniões sobre o Bitcoin. Mas também é difícil não simpatizar um pouco com sua posição: dado o bloqueio liderado pelos EUA nas finanças do WikiLeaks, o Bitcoin ofereceu a possibilidade de a organização continuar operando. Isso não justificaria um pouco desse utopismo? Também estou curioso para saber se você leu o ensaio recente de Edward Snowden sobre moedas digitais do Banco Central? O que você acha dos argumentos nele?
PARANÁ: Em minha defesa, digo no livro que o Bitcoin, entre outras coisas, foi e continuará sendo usado para esses fins. Isso, com certeza, é algo que deve ser considerado.
No entanto, o convite político que ofereço ao leitor no capítulo final é o seguinte: como manter os aspectos positivos e promissores do Bitcoin e do blockchain e ao mesmo tempo nos libertar de sua previsão distópica de um dinheiro tecnocrático apolítico, de uma forma individualista de governança baseada no mercado? Não estou dizendo que isso é impossível, estou dizendo que isso é muito desafiador e precisa ser abordado como tal.
O Bitcoin e as criptomoedas já vão ao encontro de um conjunto de “necessidades sociais” a serem atendidas no mundo capitalista atual; tem suas próprias funções sociais, seu próprio valor de uso, por assim dizer, embora diferente daqueles desejados por seus entusiastas. Nesse sentido, vieram para ficar. Além disso, a existência do Bitcoin está, por si só, promovendo muitas mudanças, a maior parte em direções imprevistas, e estas são realmente relevantes, sendo o surgimento das moedas digitais de Banco Central, em certo aspecto, uma delas.
Isso nos leva aos argumentos de Snowden sobre a questão. Mais do que equivocado e míope, é ao mesmo tempo impressionantemente ingênuo sobre a geopolítica, o papel complexo e contraditório dos Estados, os aspectos autocráticos das forças do mercado e das grandes empresas, bem como o campo da luta política concreta, marcada por consequências inesperadas emergentes de múltiplos conflitos em diferentes direções. Com certeza as moedas digitais de Banco Central podem tomar a direção “criptofascista” que ele denuncia, mas também podem ser desenvolvidas de maneira diferente, a depender de um equilíbrio de forças alternativo.
Um ponto de vista baseado no determinismo tecnológico e no liberalismo individualista como este é, não é capaz de processar adequadamente essas nuances e complexidades. É o paraíso criptoanarquista ou nada; isso ou o Inferno estatal totalitário digital como seu oposto. O admirável fato de Assange e Snowden terem sacrificado heroicamente suas próprias liberdades à causa da liberdade pública – e realmente os vejo a partir dessa lente– não os torna corretos neste tópico. Ter Snowdens e Assanges libertários por aí é realmente muito bom, mas seria ainda melhor ter seus equivalentes progressistas, socialistas democráticos.
MOROZOV: Soubemos recentemente sobre os contatos secretos, ocorrendo desde a década de 1950 até recentemente, entre a CIA e a Crypto AG, uma fornecedora suíça líder em equipamentos criptográficos. Isso concedeu aos americanos acesso a comunicações internas de muitos governos, com o Brasil continuando a comprar equipamentos da Crypto AG para suas Forças Armadas até 2019. Durante a gestão de Dilma Rousseff, muito se falou em soberania tecnológica e na necessidade de diminuir a dependência do Brasil em relação aos EUA – um discurso que não é novo para o Brasil, pois permitiu ao país, mesmo durante a era da ditadura, fazer alguns avanços em computação e manufatura. Quanto resta desse discurso de soberania? Ou a “soberania tecnológica” dos Estados-nação foi superada pelo discurso da “auto-soberania” dos indivíduos cripto-armados?
PARANÁ: Tenho que admitir que, infelizmente, esse discurso simplesmente desapareceu dos espaços de poder proeminentes no Brasil nos últimos anos, mesmo que a grande mídia não estivesse muito propensa a apresentá-lo em primeiro lugar. É claro que ainda ressoa em espaços de esquerda e em alguns setores da intelectualidade, embora não com força suficiente, especialmente considerando tudo o que aconteceu durante esses anos.
A política de alinhamento geopolítico total e subjugado de Bolsonaro com os EUA é uma vergonha para um país que tem tradição de alguma independência diplomática e um papel muito importante a desempenhar nos assuntos internacionais. O que é pior é que este é um presidente que construiu seu capital político por meio do nacionalismo chauvinista. Isso certamente forneceu as bases, pelo menos até certo ponto, para o discurso de auto-soberania de indivíduos cripto-armados, embora eu não veja isso como a tendência mais relevante a esse respeito.
Afinal, o Brasil tem uma comunidade forte e vibrante em torno de temas como privacidade digital, direitos digitais e software livre. Essas pessoas ainda estão vivas e tentando fazer o seu melhor, dada a situação. É impressionante, no entanto, que, ao lado dessa rendição quase completa da soberania do Estado-nação, os brasileiros também tenham aceitado passivamente serem privados de controle sobre seus dados, sua privacidade e seus direitos. Claro, isso é uma questão de ação coletiva – não individual. Espero que eventualmente acordemos antes que seja tarde demais.
Edemilson Paraná é professor de Sociologia Econômica e Sociologia do Trabalho do Departamento de Ciências Sociais/Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará, e professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados das Américas da Universidade de Brasília. Publicou nas áreas de Sociologia Econômica, Economia Política e Teoria Social, e também é autor dos livros Digitalized Finance: Financial Capitalism and Informational Revolution (Brill, 2019/Haymarket, 2020) e Bitcoin: a utopia tecnocrática do dinheiro apolítico (Autonomia Literária, 2020).
Crédito da foto de capa: Gabriel Marques