A uberização é só um dos aspectos do trabalho em plataformas: entrevista com Antonio Casilli

Antonio Casilli, professor da Paris School of Telecommunications (Télécom Paris), lançou em 2019 o livro En Attendant Les Robots: enquete sur le travail du clic, sobre o qual comentamos aqui e aqui e pode ser lido parcialmente em espanhol aqui.

Em entrevista à DigiLabour, Casilli comenta sua nova pesquisa sobre microtrabalho na França, já com alguns resultados publicados. O autor prefere falar em “plataformização” em vez de “uberização” do trabalho, por envolver diferentes maneiras de extração do valor a partir das distintas plataformas de trabalho digital (este argumento também pode ser conferido aqui).

Além disso, Casilli analisa alternativas ao cenário do trabalho digital, como o cooperativismo de plataforma e plataformas baseadas no comum, além das responsabilidades dos pesquisadores em relação a esse contexto.

 

DIGILABOUR: Por que você prefere falar em plataformização do trabalho em vez de uberização?

ANTONIO CASILLI: Primeiramente, eu não me sinto muito confortável com o termo uberização. A expressão, na verdade, foi introduzida por um jornalista e homem de negócios na França, que cunhou “uberisation”. Agora eu descubro que no Brasil vocês também tem a “uberização”. Mas na verdade, a questão é que esta não é uma noção compreensiva, foca apenas um aspecto da economia de plataforma, que é o mais visível. Quando se fala em uberização, na verdade também se está falando de trabalho sob demanda, que é, em primeiro lugar, um trabalho localizado: é algo que está baseado em uma cidade, um bairro, uma região. Por exemplo, você não pode pedir uma corrida em São Paulo se estiver em outra cidade ou em outro país. Então, a uberização foca apenas neste trabalho localizado ou sob demanda. Mas existem várias outras formas de trabalho em plataformas digitais e trabalho digital de maneira geral. Uma dessas é o microtrabalho, o trabalho de dados que é necessário para a inteligência artificial. E aí tem a forma de trabalho mais controversa – e também a mais estabelecida – que é o trabalho do usuário, o trabalho que cada um de nós faz online toda vez que nos tornamos usuários de uma plataforma, sempre que estou compartilhando algo ou colocando algum conteúdo no Facebook. Se estou clicando no reCAPTACHA do Google, eu estou, na verdade, produzindo valor para essas plataformas, e essas formas de produção de valor têm sido interpretadas por muitos pesquisadores, inclusive eu, como uma forma de trabalho, apesar de o trabalho ser pago algumas vezes e outras não. Esse é o meu modo de dizer que a uberização é apenas um aspecto, uma faceta, deste fenômeno multifacetado que é o trabalho digital e o trabalho em plataformas.

 

DIGILABOUR: Qual tem sido o cenário das plataformas de microtrabalho na França?

CASILLI: Em primeiro lugar, tenho que reforçar que não há muita pesquisa sendo feita sobre microtrabalho. É um objeto que está ganhando corpo e desenvolvimento, e nós só temos algumas evidências esparsas sobre como os microtrabalhadores trabalham e quem eles são. Já há dez anos, um pesquisador da New York University chamado Panos Ipeirotis formulou um censo sobre a Amazon Mechanical Turk. Aí outros colegas meus tentaram elaborar o perfil sociodemográfico dos trabalhadores. Mais recentemente, em 2018, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) publicou um relatório extenso sobre plataformas de trabalho online focado em microtrabalho. A questão é que essa literatura que existe sobre o assunto tende a focar em plataformas centradas no inglês, mas quando se trata de países como França ou mesmo o Brasil ou países que falam espanhol, há praticamente nada sobre as estruturas e os padrões sociais que caracterizam essa força de microtrabalho. Esse é o motivo de termos decidido focar na França em particular. Na verdade, nós focamos o país França e não todos os países que falam francês, pois isso envolveria abordar muitos países, como Madagascar, Tunísia ou Senegal. Então decidimos começar com a França e depois iremos para outros países de língua francesa. E nós tivemos algumas surpresas, pois alguns dos resultados desse relatório que nós publicamos em 24 de maio de 2019 é que nós temos algumas características que são típicas dos microtrabalhadores franceses. Em primeiro lugar, é uma força de trabalho de tamanho considerável: estamos falando de algo que envolve cerca de 260 mil pessoas, o que é alguma coisa, visto que a França tem uma população de aproximadamente 60 milhões de pessoas. Isso também se deve ao fato desses 260 mil não serem todos usuários tão ativos: estamos falando sobre todos os usuários, até pessoas que apenas se inscreveram e fizeram esse tipo de trabalho uma ou duas vezes. Essa é, na verdade, uma força de trabalho de tamanho considerável devido ao fato da França ter investido pesadamente em inteligência artificial nos últimos anos. Então, quem diz IA também diz microtrabalho, pois microtrabalho é necessário para treinar e, em alguns casos, validar a inteligência artificial. Quando se trata das características de gênero e idade, estamos olhando para uma população que é pesadamente caracterizada por uma questão de gênero: 56% desses microtrabalhadores se identificam como mulheres, o que é coerente com alguns dos resultados de pesquisas sobre usuários da Amazon Mechanical Turk nos Estados Unidos. No caso da França, 63% tem entre 25 e 44 anos de idade, e esses microtrabalhadores têm, geralmente, mais formação que o resto da nação, pois eles geralmente têm pelo menos um diploma, o que significa que eles cursaram pelo menos dois anos da faculdade, como dizem. Quando se trata da distribuição geográfica, tendem a se concentrar ao redor de cidades grandes como Marseille, Lyon e também Paris – embora, surpreendentemente, Paris não seja a primeira das cidades. Estamos olhando para uma população que está concentrada em lugares com muitas pessoas vivendo. Isso significa que esse microtrabalho, na verdade, não representa uma oportunidade de trabalho para a população rural ou pessoas que vivem na periferia de grandes cidades. Aliás, não são empregos per se, são trabalhos fora do padrão – não apenas não-convencionais, na verdade são piecework (trabalho por peça). Essas pessoas são pagas apenas alguns cents ou, em alguns casos, euros, para executar tarefas bem fragmentadas, que, geralmente, são extremamente úteis para treinar e calibrar algoritmos e inteligências artificiais.

 

DIGILABOUR: Em seu livro Em Attendant Les Robots, você descreve muito bem o cenário atual do trabalho digital, mas só fala de outras possibilidades mais para o fim da obra. Quais alternativas você tem enxergado em relação ao trabalho digital?

CASILLI: Antes de tudo, gostaria de dizer que a maior parte do meu livro se deve mesmo à descrição de um fenômeno que está tomando conta de nós e, de certa maneira, eu queria apontar, no último capítulo, algumas experimentações que estão acontecendo. Mas eu também tinha a total consciência do fato de que essa é uma situação em desenvolvimento e que esses experimentos tendem a ficar maiores e em alguns casos mudar, ou até mesmo desaparecer. Então eu apontei três possíveis cenários. O primeiro seria que o trabalho digital e o trabalho de plataforma eventualmente voltarão sob a forma de emprego tradicional. Em vários países, há muitos trabalhadores das plataformas que apontam para essa direção, com ajuda, em alguns casos, de sindicatos tradicionais. Estou pensando na Itália, em alguns casos até nos Estados Unidos e na América do Norte de forma geral.  Há também o que pode ser descrito como cooperativismo de plataforma, que é um novo movimento, e é algo muito interessante, de fato. É também um movimento ambíguo pois, de certa forma, você tem plataformas que querem se tornar cooperativas e garantir acesso de seus algoritmos e dados aos usuários efetivos. E do outro lado você tem cooperativas tradicionais que querem se tornar plataformas. O fato dessas duas direções tenderem a se entrelaçar e a criar novas e excitantes possibilidades é, claro, um pouco arriscado também. Nós talvez nos deparemos com um cenário no qual o cooperativismo de plataforma simplesmente pode não funcionar. Então, finalmente, tem um terceiro cenário, que é o das plataformas baseadas no comum, sendo basicamente a ideia de que nós poderíamos voltar para as próprias raízes da ideia de plataformas. As plataformas, como expliquei em meu livro, começaram em uma fase particular da História ocidental, basicamente por volta do século XVII, em que movimentos utópicos começaram a tomar forma e, é claro, movimentos revolucionários também, e eles insistiam em três ideias principais: a superação das propriedades privadas, a superação do trabalho – no sentido de trabalho assalariado – e a criação de um Tesouro comum a todos. Essa era a ideia, e foi estruturado em um programa político que foi chamado de plataforma. Agora existe a possibilidade de imaginar as plataformas digitais dos dias de hoje como estruturas que poderiam evoluir em direção a uma estrutura baseada em bens comuns a todos, e isso pode, por um lado, criar acesso comum aos dados, porque os dados que todos estamos produzindo todos os dias nessas plataformas hoje são apropriados por capitalistas e investidores, mas seria possível imaginar novas formas de acessar e usar esses dados como algo comum, com novos modos de governança e novos modos de criação e distribuição de valor. Na parte final do livro, eu tento e discorro com bastante precisão sobre como nós poderíamos abordar isso. Também há o fato de, para criar plataformas baseadas no comum, é preciso conectar-se a outras experiências. Na verdade, estou pensando sobre algo que está acontecendo próximo ao Brasil – na Bolívia, por exemplo – onde há um movimento acerca de acesso a, de fato, bens comuns relacionados ao meio-ambiente, como o Salar de Uyuni, um dos maiores lagos de sal na América do Sul. Esses sais são cruciais para a produção de lítio. E o lítio, por sua vez, é crucial para a produção de baterias de todos os equipamentos. De certa forma, é impossível compreender o comum digital (digital commons) se nós não criarmos conexões globais entre esses tipos de bens comuns físicos e do meio-ambiente, como o Salar de Uyuni e, os bens comuns de dados, o que muitas pessoas – eu inclusive – estão tentando criar nessas partes do mundo. É uma situação em desenvolvimento, e algo que abordo rapidamente em meu livro. Eu descrevo brevemente as possibilidades, mas eu realmente espero no futuro ter a oportunidade de escrever uma segunda edição do livro e eventualmente elaborar novas ideias, ou, pelo menos, ser a testemunha de novas e excitantes possibilidades e experimentações políticas.

 

DIGILABOUR: Para você, quais são as responsabilidades de um pesquisador crítico em relação ao cenário concreto do trabalho digital?

CASILLI: Eu não costumo me descrever como um pesquisador crítico, e isso talvez te surpreenda, mas eu considero que estou trabalhando em direção a tecnologias, inovações e inteligências artificiais que sejam “responsáveis”. E essa também é uma maneira de dizer que, quando eu critico, eu o faço pois assumo responsabilidade em relação a essas tecnologias. Aliás, eu também sou um tecnoentusiasta: eu não quero criticar essas tecnologias para destruí-las ou para me livrar delas – ao contrário, eu queria que elas fossem melhores. E a responsabilidade que nós temos também é de uma natureza performativa. Com isso quero dizer que, ao apontar situações de exploração, ou poluição de dados, ou apropriação de dados e predações capitalistas, nós estamos, de certa forma, criando também uma consciência social acerca desses tópicos. Nós estamos ajudando sindicatos, organizações de trabalhadores, poderes políticos e governos a estarem cientes disso, e provavelmente a criar melhores políticas e regulamentações. Nos últimos anos em que estou trabalhando em cima desses assuntos, eu vi muitas coisas novas e animadoras acontecendo. Pelo menos aqui na Europa, nós agora temos sindicatos que estão cientes de exploração em plataformas de microtrabalho e no trabalho digital. Eu mesmo tenho trabalhado com sindicatos na Itália e na França. Eles financiaram nossa pesquisa sobre microtrabalho na França. Foi um sindicato francês chamado Force Ouvrière. Além disso, há esse exemplo esplêndido do sindicato alemão IG Metall, que é de trabalhadores dos setores metalúrgicos e automobilísticos. Eles são o sindicato mais tradicional e foi um dos primeiros a fazer coisas experimentais para organizar esses trabalhadores. Então, nós temos essa responsabilidade de ser não apenas os analistas dessa nova situação, não apenas os críticos, mas também aqueles que ajudam os outros – sejam sindicatos, organizações da sociedade civil, governos – a assumir responsabilidades pelo o que está acontecendo, e tomar alguma medida quanto a isso.

 

DIGILABOUR: Para encerrar, gostaria que você explicasse três noções que você trata no livro: valor de qualificação, valor de monetização e valor de automação.

CASILLI: A questão é que não se pode falar em economia das plataformas digitais sem ao menos atentar-se para uma nova estrutura de criação de valor. Isso, por um lado, se relaciona à controvérsia de séculos sobre trabalho e valor, especialmente em uma perspectiva marxista. Para ser justo, apesar do fato de, por formação, eu ser marxista, e eu costumava ser um, atualmente eu estou extremamente cansado e desconfortável com a teoria do valor transmitida pelo marxismo. A ideia é que, se olharmos para as plataformas digitais, elas tendem a criar um triplo valor.  O primeiro é o valor que é necessário para que elas funcionem de fato. Por exemplo, se olharmos para o Uber ou o Facebook, esses serviços são baseados em algoritmos. No Uber, tem o algoritmo relacionado ao preço, no Facebook tem o algoritmo de ad rank (que classifica e ranqueia informações no seu feed). Esses algoritmos precisam de dados para funcionar, para trabalhar. E esses dados são produzidos por nós, usuários – no caso do Uber pelos passageiros e pelos motoristas, no caso do Facebook, é claro, por qualquer usuário. Então, isso é o que eu chamo de valor de qualificação. Nós precisamos qualificar informação, nós precisamos criar informação para que essas plataformas possam funcionar. Então, há o valor de monetização, o que basicamente significa que esses mesmos dados que nós criamos e colocamos online também são, às vezes, transformados em valor monetário por essas mesmas plataformas, e isso cria o fluxo de dinheiro para elas. Pense, por exemplo, no caso do Facebook, no valor que eles podem criar ao conceder acesso aos seus dados a parceiros específicos, e ganhar algo por meio desse acesso. Ou, no caso da Amazon Mechanical Turk, a empresa tem de 20 a 40% de taxa em cima de cada tarefa, cada microtarefa, e esse é o dinheiro que eles tem em seu “Tesouro”, de certa forma. Então, esse é o fluxo monetário e é, principalmente, o valor de monetização. Finalmente, há o valor que vem pelo fato dessas plataformas se inclinarem em direção ao futuro e à inovação. Inovação nesse caso significa automação, criar algoritmos que aprendem e performam, criar inteligência artificial baseada em deep learning e novas ferramentas como redes neurais ou redes adversárias. Para fazer isso, as empresas têm, novamente, que usar seus dados para investir e criar essas novas ferramentas, tecnologias e soluções. Para fazer isso, basicamente, elas estão inovando e automatizando, que é o terceiro tipo de valor.

 

 

Você também pode ouvir a entrevista em áudio:

Plataformização do Trabalho

https://localhost/digilabour/wp-content/uploads/2019/06/casilli1.mp3?_=1

Microtrabalho na França

https://localhost/digilabour/wp-content/uploads/2019/06/casilli2.mp3?_=2

Alternativas ao cenário atual do trabalho digital

https://localhost/digilabour/wp-content/uploads/2019/06/casilli3.mp3?_=3

Responsabilidades do pesquisador em relação ao trabalho digital

https://localhost/digilabour/wp-content/uploads/2019/06/casilli4.mp3?_=4

Valor de qualificação, valor de monetização e valor de automação

https://localhost/digilabour/wp-content/uploads/2019/06/casilli5.mp3?_=5
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