Alessandro Delfanti, professor de Cultura e Novas Mídias da Universidade de Toronto, é coautor do livro Introduction to Digital Media e tem pesquisado economia política de ciência e tecnologia, contraculturas digitais e resistências de trabalhadores em contextos digitais. Sua pesquisa mais recente foca nas condições materiais de trabalho nos centros de distribuição da Amazon, desde gerenciamento até tecnologias algorítmicas. Um de seus textos é “A Amazon é a nova Fiat”.
Delfanti conversou com a DigiLabour sobre a pesquisa na Amazon, as resistências dos trabalhadores das plataformas e o futuro do trabalho.
DIGILABOUR: Afinal, quais são as condições materiais de trabalho nos centros de distribuição da Amazon?
ALESSANDRO DELFANTI: As condições materiais de trabalho nos centros de operação da Amazon já foram investigadas algumas vezes especialmente por jornalistas. E nos últimos anos, os trabalhadores também tem produzido testemunhos sobre as condições de trabalho em alguns desses lugares. Por um lado, o processo de trabalho é basicamente padronizado ao redor do mundo em centros de distribuição da Amazon. Há condições bem similares em termos de como o processo é realizado e sua relação com a tecnologia, apesar de haverem tipos diferentes de galpões. Então em qualquer país, você talvez tenha galpões que têm mais ou menos os mesmos padrões e o mesmo processo de entrega de mercadorias. O scanner portátil de códigos de barras é o principal instrumento de trabalho e os trabalhadores o usam para escanear seus crachás e logar no sistema. E então esse scanner portátil é uma ferramenta manuseada pelas mãos, com uma pequena tela que te dirá, por exemplo, qual item, qual mercadoria você precisa pegar e onde ela está localizada no galpão. Então, o trabalhador vai seguir as instruções que são assinaladas a eles pelo scanner portátil e por meio dos algoritmos que alimentam o inventário do galpão. Depois, eles andam até determinada área do galpão, digamos, segundo andar, corredor C, cela 45/B, e vai resgatar o item, digamos, um livro, e então, vai disparar o scanner portátil de código de barras no livro. Assim, o sistema saberá que aquele livro foi pego ou resgatado, como dizem, e está a caminho das fases de processamento e empacotamento. Esse é o tipo de trabalho mais comum para um “apanhador” (picker), e essas são as maneiras de organizar: são pessoas que estão trabalhando seguindo instruções dadas a eles pelo scanner portátil, e estão recuperando e entregando itens. Basicamente, o algoritmo designa tarefas, mas também captura conhecimento por meio de informações, por exemplo, quando um determinado item foi pego, e quando ele estará pronto para processamento e empacotamento e, então, poderá ser enviado ao cliente. Já outros galpões são mais automatizados: trabalhadores não andam por eles, mas trabalham em estações fixas e são estes robôs que basicamente vão pegar uma prateleira e movê-la em direção aos trabalhadores. Os robôs são chamados Kiva Robots. Eles fazem o trabalho de trazer as prateleiras certas para um trabalhador para que ele possa resgatar os itens que foram assinalados para ele. Portanto, as prateleiras vão se deslocar até você como o “apanhador”. Esses são dois principais tipos de galpões, um deles é mais automatizado. Há galpões nos quais você de fato circula por esse tipo de inventário gigantesco, de múltiplos andares, com prateleiras extremamente grandes. É um trabalho bem físico e manual em ambos os casos. Então há um determinado ritmo que você precisará manter e sustentar a partir da velocidade que é ditada pelo algoritmo dando suporte ao software do inventário. Muitas das considerações com as quais as pessoas podem se familiarizar com isso são por meio da leitura de reportagens ou pesquisas realizadas pelos próprios trabalhadores sobre as condições materiais de trabalho e as condições trabalhistas na Amazon. Em muitos casos, eles irão ressaltar a natureza de repetitividade física do trabalho e também a incrível flexibilidade que é exigida dos trabalhadores para que os turnos possam ser assinalados em uma lógica praticamente diária, dependendo das necessidades em termo do número de vendas previsto pela Amazon para um determinado dia. Então, acho que é um mix do tipo de gestão algorítmica que é similar ao que acontece, por exemplo, nas empresas da gig economy. Imagine que você é um motorista do Uber: é seu celular te assinalando uma tarefa. Se você for um “apanhador” da Amazon em um galpão, na verdade é o seu scanner portátil de código de barras que faz isso, que te atribui tarefas, rastreando e controlando suas atividades. Há histórias de trabalhadores não podendo ir ao banheiro, tendo que urinar em garrafas, e não tendo o direito de ter intervalos, meio que um ambiente despótico no qual a gestão está lá basicamente para fazer as pessoas correrem e espremer sua força laboral. Essa é uma realidade parcial, depende do país, do tipo de cultura política e institucional de determinados países. Nos lugares em que as condições, digamos, são bem aceleradas, você tem que manter essa natureza bem física desse trabalho, algo de senso comum para aquela realidade. Realmente depende de vários fatores: quem são os gerentes, quão fácil é para a gestão repor a força de trabalho, e por aí vai. Um último ponto: há uma rotatividade muito alta e as pessoas tendem a durar quatro meses ou poucos anos. A própria Amazon tenta meio que alimentar essa rotatividade. Há um limite de anos para se espremer esse ritmo de trabalho de uma pessoa. Então a empresa tende a encorajar as pessoas a irem embora, se demitirem. Ela oferece dinheiro, há uma recompensa financeira se você se demitir após alguns anos trabalhando em um galpão da Amazon.
DIGILABOUR: Qual é o papel dos robôs e dos algoritmos na organização do trabalho na Amazon?
DELFANTI: Em alguns dos centros de distribuição mais manuais, consiste basicamente do scanner portátil de códigos de barra e o algoritmo do sistema. Em alguns outros, de fato, tem esses robôs, com automação parcial de algumas tarefas, por exemplo, trazer a prateleira até o trabalhador, ou, recentemente, a introdução de máquinas que empacotam as mercadorias. Há uma produção crescente de tecnologia no galpão, mas não é tão high tech como alguém imaginaria. O tipo principal de estrutura fundamental é o sistema que eles fizeram, o algoritmo do inventário, que captura a posição de todos os itens do galpão. A maioria dos galpões é organizada de acordo com o que eles chamam de armazenamento caótico, o que quer dizer que os trabalhadores que colocam as mercadorias nas prateleiras o fazem de maneira meio que aleatória. Há poucas regras que eles devem seguir. É um trabalho meio aleatório que eles performam. Apenas o algoritmo do sistema captura e sabe a posição de cada um dos itens, por meio do scanner de código de barras. Imagine que você está andando pelas prateleiras e você precisa armazenar um determinado número de ursos de pelúcia. Você coloca diferentes cópias do urso de pelúcia, em celas muito diferentes, e cada vez que você dispara o scanner de código de barras portátil, você o usa na mercadoria e na cela, e então o algoritmo do sistema processa essa informação e sabe onde as diferentes cópias do ursinho de pelúcia estão. Nenhum ser humano possui esse conhecimento, então ninguém sabe. Nem os trabalhadores nem os gerentes sabem onde as mercadorias estão. O inventário é tão complexo por causa do tamanho desses centros de distribuição, do número de itens diferentes, e também da natureza caótica da organização do inventário. Nenhum ser humano sabe onde algo está localizado no galpão. Basicamente a principal função desse software é racionalizar o inventário, capturando conhecimento sobre a posição de um item e usar essa informação para atribuir tarefas para os “apanhadores” e mandá-los apanhar a mercadoria certa. Toda vez que você encomendar, digamos, um livro, o famoso ursinho de pelúcia e um pendrive, o algoritmo talvez mande três diferentes trabalhadores para recuperar esses três diferentes itens. Então, o algoritmo vai convocar outros trabalhadores para juntar os pedidos, colocar essas três mercadorias que vieram de três diferentes trabalhadores em uma única caixa e, então, elas podem ser embaladas e enviadas para o cliente que fez a encomenda.
DIGILABOUR: Na literatura sobre trabalho digital, há muitas críticas à economia de plataforma, mas ainda há poucos estudos sobre as alternativas e resistências. Como avançar nisso?
DELFANTI: Isso é verdade, apesar de ter alguns pesquisadores trabalhando com essa perspectiva. Refiro-me a pessoas como Jamie Woodcock, Callum Cant e Enda Brophy. Há pessoas nos Estados Unidos pesquisando tipos de organizações de trabalhadores na gig economy. Há muitos doutorandos na Europa continental e também no Reino Unido estudando, formas emergentes de organização na gig economy, por exemplo, entregadores e motoristas, que isso se tornou todo um campo de estudos voltados para como eles se organizam e resistem ao poder dessas empresas de plataforma. Eu não acho que há poucos estudos, mas que é um campo emergente, com um número crescente de pesquisas sendo realizadas, e talvez não há muitas publicações ainda, mas em breve terá.
DIGILABOUR: Você mesmo foi um dos organizadores do evento LogOut: The Platform Economy and Worker Resistance…
DELFANTI: Sim, e publicamos uma edição especial na revista Notes From Below, que tenta ao menos começar a organizar, de maneira coerente e consistente, algumas das ideias que vem de estudos sobre resistência de trabalhadores à economia digital. Esse tipo de mudança tecnológica radical ou reorganização radical de processos que têm sido gerados por novas tecnologias algorítmicas e plataformas digitais é algo bem recente. E ainda assim, já temos testemunhado vários tipos de greves, lutas trabalhistas, organizações, sindicatos. Eu acho que isso tem sido mais acelerado do que em outros momentos da história do movimento trabalhista. Respostas bem rápidas a uma transformação radical também em relação à tecnologia. Acho que esse é um pedaço interessante do quebra cabeça, e também o fato de ser em escala global. É bem interessante por causa do tipo de poder generalizador de organizar processos que essas tecnologias têm, por causa da natureza global de algumas dessas empresas. Temos testemunhado alianças e formas similares de resistência dos trabalhadores ao redor do mundo. Há pessoas pesquisando lutas trabalhistas em torno dos motoristas na China e na Índia. Os entregadores na Europa e no Canadá. Os motoristas de Uber nos Estados Unidos. Você tem trabalhadores da Amazon praticamente no mundo todo. É algo que vem se estruturando, crescendo e estreitando laços com diferentes países e indústrias. Talvez ainda hão haja muitas publicações acadêmicas, mas há muita efervescência política, e também em termos de pesquisas futuras.
DIGILABOUR: Você tem afirmado que a automação é usada mais para controlar, intensificar e desqualificar (deskill) o trabalho do que substituí-lo. A partir disso, como reposicionar as discussões sobre futuro do trabalho?
DELFANTI: As discussões sobre o futuro do trabalho tendem a despolitizar tal futuro. Tendem a assumir que a tecnologia é um tipo de força externa que existe independente do ambiente político e de quaisquer escolhas políticas ou coletivas. Isso tem a ver com o fato do determinismo tecnológico ainda prevalecer, especialmente no campo dos negócios. Eu acredito que o ponto de vista dos trabalhadores seja central. Do ponto de vista teórico e acadêmico, eu acho que você tem que olhar para como os trabalhadores respondem a essas mudanças, e como eles imaginam o futuro da automação. Ou seja, como os trabalhadores imaginam suas vidas mudando dependendo do tipo de automação futura, que de fato será colocada em prática em nossos ambientes de trabalho. Então, se você apenas focar em tecnologia como algo externo, você está deixando de lado uma peça enorme do quebra-cabeça. Você tem que analisar como diferentes forças sociais se moldam, com a adoção, o design e o uso de novas tecnologias. E os trabalhadores. Nesse caso, se você olhar para o futuro do trabalho, são atores centrais. Você tem que observar empresas, engenheiros, formuladores de políticas, e também trabalhadores, se você quiser entender quais forças estão moldando as tecnologias que talvez tenham a ver com isso, com um possível futuro do trabalho. Do ponto de vista político, falar sobre o futuro do trabalho com trabalhadores intervindo na questão é fator crucial para contribuir com uma futura sociedade onde a automação seja utilizada em prol dos trabalhadores em vez de ser direcionada para aumento da exploração. Eu realmente não consigo entender a automação em um vácuo, como se tivesse sido apenas produzida em algum lugar que não tem nada a ver com forças sociais e modelos trabalhistas. E, politicamente, a força de trabalho pode e deve ter lugar de fala na tomada de decisão em relação a novas tecnologias de automação em vez de apenas ser considerada algo que sentirá seus efeitos.