Cooperativas de dados para tempos pandêmicos

Cooperativas de dados

Créditos: James Seibold, domínio público

Imagem: James Seibold, Domínio Público

*Por Trebor Scholz e Igor Calzada

Quando a COVID-19 atingiu populações em todo o mundo, ficou claro como as práticas de dados estão conectadas profundamente à democracia. Um relatório recente, por exemplo, encontrou uma “desigualdade de dados” destacando as divisórias no acesso, conhecimento e consciência das tecnologias digitais de saúde usadas na pandemia. As tão pesquisadas “desigualdades digitais” também são “desigualdades em relação aos dados”.

Em resposta a práticas injustas de dados, propomos que o recurso econômico de dados seja organizado localmente por meio de cooperativas de dados .

As cooperativas de dados são sistemas de gerenciamento de dados pertencentes aos membros. Elas podem limitar ou modular a captura de dados para criar valor a seus membros em áreas de aplicação onde as comunidades afetadas não veem nenhum benefício aparente. Os dados só podem ser usados ​​seguindo as regras que os membros aprovaram. As cooperativas de dados têm obrigações fiduciárias para com suas partes interessadas. O armazenamento local de dados pode encorajar as comunidades a tomar decisões coletivas sobre a coleta e o uso de seus dados. As comunidades podem usar a receita de seus dados para gerar mudanças sociais positivas, financiando pesquisas públicas, por exemplo. As cooperativas de dados fazem parte do ecossistema da economia digital cooperativa.

Entre pesquisadores, fundadores de cooperativas, defensores das liberdades civis, juristas, prefeitos e profissionais de tecnologia,  intensificaram-se as discussões sobre várias formas de dados de propriedade das comunidades. O léxico deste debate inclui palavras-chave como  portabilidade de dados , data stewardship, soberania de dados , dados para o bem comum (data commons) e infraestruturas digitais cooperativas .

A liderança da cidade de  Barcelona , por exemplo, exiu  soberania tecnológica  sobre os dados que empresas como Uber coletam quando operam na cidade. Um grupo de pesquisadores britânicos avança no debate sobre data trusts. Na Nova Zelândia, as práticas de dados privilegiaram a população dominante Pākehā, deixando  as comunidades indígenas maori  com acesso desigual aos dados sobre COVID-19. No Canadá,da mesma forma, práticas injustas de dados levaram as Primeiras Nações a exigir  a soberania dos dados indígenas

Questões de propriedade

Quem seria ideologicamente mais adequado para coletivizar os dados do que as cooperativas? A princípio, as cooperativas deveriam ser excelentes no compartilhamento de dados. Afinal, um dos princípios da Aliança Cooperativa Internacional (ICA) é a “cooperação entre cooperativas”. As cooperativas estão a serviço de membros de maneira mais eficaz e fortalecem o movimento cooperativo, trabalhando em conjunto por meio de estruturas locais, nacionais, regionais e internacionais.

Mas também as empresas modernas entendem o poder da cooperação. A “coopetição” entre Apple e Google é um exemplo. Em troca da construção do mecanismo de busca do Google em seus produtos, a Apple recebe de 8 a 12 bilhões de dólares por ano. Isso equivale entre 14 e 21 por cento dos lucros anuais da  Apple . As corporações também financiam think tanks para fornecer uma base intelectual para suas atividades. Em qualquer medida, atualmente – e paradoxalmente – as corporações são muito melhores na cooperação entre si do que o movimento cooperativo. 

Além do movimento cooperativo, os pioneiros da economia digital cooperativa também são inspirados pelos valores católicos, pela filosofia africana Ubuntu e pela economia de subsistência no cerne do  budismo.. Todos os três apresentam o argumento de um sentido de comum para compartilhamento e interconexão. 

Mas em países como os Estados Unidos, a troca de dados entre cooperativas pode ser percebida como uma formação de cartéis, proibida pela Lei Sherman Antitruste de 1890  . A intervenção regulatória deve impor, como parte da ação antitruste, o mandato para todas as plataformas permitirem a portabilidade de dados. Isso suavizaria os efeitos de rede que mantêm as cinco maiores empresas de tecnologia difíceis de serem batidas.

As cooperativas de dados fazem parte do panorama de pessoas experimentando propriedade da comunidade  na economia digital. Mas por que a propriedade de plataformas ou protocolos digitais importa? A propriedade de ativos tem implicações profundas em muitos aspectos da vida; impacta a desigualdade de renda e, concretamente, as experiências cotidianas no  local de trabalho. Com a propriedade cooperativa, os membros decidem em conjunto as regras do jogo. Coletar, armazenar e compartilhar dados de maneira responsável é a chave para  desbloquear seu potencial

A governança desses dados significa que os direitos das comunidades aos  dados são protegidos e o uso dos dados é justo e com foco no benefício social. Ele muda o paradigma atual em que indivíduos entregam dados a grandes empresas de tecnologia para um sistema que seja propriedade da comunidade.   As comunidades retêm direitos de dados, accountability, padrões legais e representação fiduciária. Com as cooperativas de dados, a coleta de dados se concentra no que é benéfico para as comunidades. Elas decidem quais dados são coletados sobre eles e com quais propósitos. 

Para evitar a deformação desta missão, as cooperativas de dados precisam aderir a uma definição compartilhada globalmente sobre o que torna uma organização, de fato, uma cooperativa : uma cooperativa é definida como uma associação autônoma de pessoas unidas voluntariamente para atender às suas necessidades e às aspirações econômicas, sociais e culturais comuns por meio de uma empresa de propriedade conjunta e controlada democraticamente. Essa definição é importante porque enfatiza que as cooperativas são autônomas e organizadas voluntariamente para atender às necessidades locais. Impor o modelo cooperativo é inútil e possivelmente prejudicial.

Atualmente, no espaço de economia de criptografia e token, os protótipos W3 de cooperativas de  dados  estão emergindo. Blockchain e contratos inteligentes permitem que aqueles com acesso a essas tecnologias criem  tokens que podem ser usados  para a governança das cooperativas. Mas, até agora, apesar dos interessantes experimentos em andamento, não está muito claro como, de fato, projetar e aplicar sistemas de token às cooperativas. No área de criptografia, encontramos infelizes mal-entendidos, como a afirmação de que as redes VISA e SWIFT são cooperativas genuínas. 

Os pioneiros das cooperativas de dados

Para deixar bem claro, as cooperativas de dados não são uma invenção da imaginação acadêmica: elas já estão entre nós. Casos representativos incluem  SalusDriver’s SeatLBRYdOrg.techMiDataGooddataMnemotixPolypoly .

Salus Coop é uma cooperativa de dados sem fins lucrativos para pesquisa em saúde (referindo-se a dados de saúde e dados relacionados ao estilo de vida de forma mais ampla, como dados que capturam o número de passos que uma pessoa dá em um dia), fundada em Barcelona em setembro de 2017. Ela visa criar um modelo de governança colaborativa e gestão de dados de saúde voltados aos cidadãos. A Salus legitima os direitos dos cidadãos de controlar seus registros de saúde, ao mesmo tempo em que facilita o compartilhamento de dados para acelerar a inovação da pesquisa pública em saúde.

MIDATA é uma cooperativa de dados na área da saúde iniciada em 2015. Ela permite que cidadãos armazenem, gerenciem e controlem o acesso aos seus dados pessoais com segurança, ajudando-os a estabelecer e possuir cooperativas MIDATA nacionais / regionais sem fins lucrativos. As cooperativas MIDATA atuam como fiduciárias dos dados de seus membros. Elas oferecem uma plataforma em que os membros usuários podem armazenar com segurança cópias de seus registros médicos, genomas e dados de saúde móvel. Os membros podem decidir dar a seus médicos acesso a todos os dados pessoais por meio da plataforma. Em contraste, um instituto de pesquisa de câncer sem fins lucrativos poderia ter acesso apenas a informações médicas e dietéticas. Os membros podem negar acesso a uma empresa farmacêutica com fins lucrativos. Os lucros dos membros com a venda de dados são doados para pesquisas públicas.

Já a LBRY declara: “achamos que os usuários deveriam ser donos de seu conteúdo (e de sua privacidade) em vez de entregá-lo a uma grande empresa e seus parceiros de publicidade. Se você acha que somos paranóicos, há dezenas de exemplos de empresas que abusam dos usuários e agem contra seus interesses. Não é paranóia se eles realmente querem te pegar”.

A Polypoly  é uma cooperativa de dados que garante que os dados pessoais não saiam mais de um dispositivo, seja um celular, computador ou torradeira conectada à internet. Os membros da cooperativa possuem um servidor privado que armazena seus dados, e que é controlado por ele.

Por fim, a dOrg.tech , atualmente em transição para uma cooperativa de dados, é um coletivo de desenvolvimento full-stack que trabalha com projetos líderes do setor na Web3 usando métodos descentralizados em todo o mundo por meio de contratos inteligentes, blockchain e Ethereum.

Cooperativas de dados ancoradas em comunidades locais podem se tornar um caminho prático para resistir ao colonialismo de dados

Mas é claro que existem obstáculos. As comunidades terão que ser educadas em relação aos princípios cooperativistas . Além disso, essas cooperativas de dados locais  não podem ser replicadas facilmente  porque estão enraizadas em seus fatores contextuais e territoriais. Com o tempo, também a governança nessas cooperativas pode se tornar um desafio: elas podem erodir ou ser destruídas, pois algumas pessoas podem aderir e outras podem ter que ser convidadas a sair.

Não estamos tomando as cooperativas de dados como uma saída que consertará todos os males do capitalismo de  plataforma . Entendemos cooperativas de dados como uma abordagem que faz parte de uma caixa de ferramentas que também inclui esforços como o projeto Solid , mas também sindicatos, associações de bairro, intervenções regulatórias, propriedades públicas e  propriedades híbridas.

Também reconhecemos os limites do enquadramento da propriedade dos dados. O que significa propriedade de dados ou propriedade de uma plataforma digital quando a maioria dos grupos depende de serviços comerciais? O que significa quando as cooperativas de dados estão usando softwares proprietários e serviços em nuvem de grandes empresas de tecnologia? Uma aliança de serviços de dados cooperativos  oferecidos a partir das margens  pode gradualmente superar os serviços comerciais, descentralizando os modelos de governança de dados em nível local.

Inesperadamente, nos cursos de Direito e Administração dos  Estados Unidos  e do  Reino Unido – tradicionalmente, os lugares onde você encontrará especialistas habilidosos em relação à empresa moderna – há muito interesse em  cooperativas de dados  agora. Isso é surpreendente, dado que o modelo cooperativo é um segredo bem guardado nos corredores da maioria desses cursos, uma vez que os professores não ensinam nem pesquisam questões ligadas ao cooperativismo.

Ao trabalhar em cooperativas de dados, juristas e profissionais de tecnologia devem estar cientes da história colonial das cooperativas que deixou um gosto amargo em muitas pessoas. Os colonizadores britânicos defenderam cooperativas nas vilas de pescadores de Hong Kong e nos campos de índigo em toda a Índia. Os poderes coloniais apoiaram a introdução de cooperativas para promover seus interesses econômicos. Na África, as potências coloniais orientaram as cooperativas principalmente para a produção de safras comerciais para seus países de origem, a saber, café, cacau, chá e algodão. Na África do Sul colonial e no Quênia, as cooperativas agrícolas pertencentes a brancos eram fortemente subsidiadas pelos governos. Esse modelo incentivou os colonos europeus, ao mesmo tempo em que garantiu que as cooperativas tivessem o controle monopolista desses setores.

Enfatizamos, anteriormente, que as cooperativas são autônomas. Embora cooperativas de qualquer tipo não possam prosperar sem regulamentação governamental, elas devem apenas estabelecer condições propícias. Os governos em Kerala, Índia e Sri Lanka governam cooperativas de cima para baixo, o que entra em conflito direto com sua missão principal.

O embranquecimento e a hipsterização de cooperativas podem gerar grandes danos. O Brasil é um exemplo histórico do que pode dar errado quando os advogados assumem a liderança na concepção do enquadramento jurídico das cooperativas. Em 1994, o artigo 442, parágrafo único, da CLT determinou que “Qualquer que seja o ramo de atividade da sociedade cooperativa, não existe vínculo empregatício entre ela e seus associados, nem entre estes e os tomadores de serviços daquela”. Como consequência, os direitos trabalhistas foram prejudicados, visto que muitas empresas agora constituídas como cooperativas simplesmente evitam ter que pagar benefícios aos trabalhadores. 

“Nada Sobre Nós Sem Nós” (Nothing About Us Without Us), o slogan do movimento internacional de pessoas com deficiência, também se enquadra no contexto da criação de modelos jurídicos e técnicos para cooperativas de dados. As comunidades, e não apenas pesquisadores ou governos, devem moldar o enquadramento legal de data trusts, cooperativas de dados e infraestruturas digitais cooperativas.

Um dos arquitetos técnicos do Regulamento Geral de Proteção de Dados  (GDPR), o professor Alex Pentland, do MIT, pediu que as cooperativas de dados se tornassem as guardiãs dos dados das comunidades. De acordo com Pentland e Hardjono , com 100 milhões de membros de cooperativas de crédito nos Estados Unidos, a oportunidade é enorme para as organizações comunitárias alavancarem os dados de propriedade da comunidade. A pesquisa mostrou que os vários tipos de modelos cooperativos geram benefícios mútuos de forma muito diferentes. O que torna as cooperativas de crédito ou cooperativas de consumo o modelo ideal para juristas e tecnólogos? O modelo multissetorial, com base na pesquisa, pareceria um candidato mais provável. O  modelo da cooperativa de crédito não apresentou os resultados mais sólidos quando analisado por meio da lente da justiça social. Embora sejam muito grandes, as cooperativas de crédito têm sido criticadas por se desviarem dos princípios cooperativos, além de baixa participação e engajamento, frequentemente não oferecendo uma real diferença em relação aos bancos convencionais. Também questionamos o objetivo de criar cooperativas de dados dominantes por meio de cooperativas de crédito. As cooperativas, ao atuarem como monopólios de fato, não demonstraram se comportar significativamente melhor do que outras formas organizacionais.    

No mínimo, as comunidades devem estar à mesa ao discutir os instrumentos legais em relação às cooperativas de dados. Pesquisadores sobre cooperativismo, incluindo historiadores, e líderes de organizações cooperativas, especialmente de comunidades LGBTQI, povos indígenas e do Sul Global, devem fazer parte das conversas sobre modelos legais e infraestruturas tecnológicas para essas instituições de dados. Uma aliança de serviços de dados oferecidos a partir das margens pode ajudar a diversificar gradualmente a economia digital.

Saudamos a adoção do modelo de cooperativa e compreendemos as vibrações de modelos jurídicos ou técnicos pioneiros para o gerenciamento de dados de formas inovadores. As propostas para cooperativas de dados, no entanto, devem ser desenvolvidas em conjunto com profissionais de cooperativas e conectadas à longa história das comunidades, além de uma análise das várias formas de cooperativas. Isso inclui a história de pessoas que trabalham por uma comunidade cooperativa, com base na visão de uma sociedade enraizada em princípios socialistas cooperativos e democráticos. Uma comunidade cooperativa é composta de uma rede de cooperativas pequenas, autônomas, interligadas, mas concorrentes. Pense nos Cavaleiros do Trabalho que lutaram por uma “comunidade cooperativa” multirracial já em 1880.

Para servir a tal visão de uma comunidade digital, os dados localizados precisam ser federados em  ecossistemas de dados . Provavelmente, registros distribuídos  podem ajudar. As comunidades usarão seus dados coletados em repositórios locais. Este é o caso da Eva.coop, uma cooperativa de dados sediada em Montreal. Ela fornece a infraestrutura digital para cooperativas de motoristas sem acessar os dados locais dos passageiros.

A Eva.coop é construída a partir de EOSIO, um blockchain criado com um novo protocolo, como uma forma de mostrar como o modelo cooperativista poderia marcar uma nova  iteração baseada em blockchain da “economia do compartilhamento” impulsionada por um sistema democraticamente centralizado que respeita a privacidade de trabalhadores e atende às necessidades locais. As comunidades locais têm mais informações e os motoristas são tratados de forma mais justa. Além disso, os membros mantêm sua privacidade e são têm a comodidade de um aplicativo com apoio local. Esses ecossistemas de dados federados e democraticamente centralizados podem ser organizados por setores (por exemplo, dados relacionados à saúde, dados ambientais, transporte e dados de mobilidade, dados de energia e consumo). As comunidades podem, então, decidir liberar esses dados de forma significativa. 

Sem essa colaboração de baixo para cima e uma clareza em relação aos  princípios cooperativistas, há um perigo considerável de “embranquecimento e hispterização” das cooperativas, a propagação de falsas plataformas cooperativas e o abuso do modelo cooperativo. Tal “embranquecimento cooperativo” seria irônico, dado o fato de que, na última década, a “economia do compatilhamento” empregou um discurso enganoso que usava a linguagem da contracultura, do amor e das cooperativas para vender plataformas comerciais.   

pandemia de COVID-19  dificilmente desaparecerá nos próximos meses ou mesmo anos. Mais urgentemente, ela já revelou grandes vulnerabilidades. Reordenar o “velho normal” não será suficiente. Um movimento internacionalista inspirado por uma visão de uma comunidade cooperativa digital é necessário para estruturar uma transformação social e econômica pós-pandemia. Consideramos esses tempos de pandemia como um período de transformação, uma oportunidade para experimentação com cooperativas de dados, trabalhando em direção a sistemas de cuidado mais responsivos, serviços médicos adequados e uma economia de dados mais participativa e justa. As cooperativas de dados devem ser moldadas por aqueles que mais precisam delas, baseadas na história e nas práticas do movimento cooperativista global.

Trebor Scholz é diretor do Platform Cooperativism Consortium na New School, em Nova Iorque. Ele é um pesquisador engajado na comunidade e fellow na Open Society Foundations, na USC Berggruen Institute e no Berkman Klein Center, na Harvard University.

Igor Calzada é acadêmico sênior e fellow no WISERD, ligado à Cardiff University, e na University of Oxford.

Texto originalmente publicado no Public Seminar

Sair da versão mobile