Creators são trabalhadores

* Michael Siciliano

Professor de Sociologia na Queen’s University. Autor do livro Creative Control: The Ambivalence of Work in the Culture Industries

Publicado originalmente no Medium do autor.

Em um ambiente midiático cada vez mais dominado pelos gigantes da Big Tech, como Amazon, Apple e Google, a luta por empregos mais justos e dignos começa com uma luta por classificação: criação de conteúdo é trabalho. No mês passado, houve duas grandes vitórias para as Big Tech nesse aspecto, já que os tribunais americanos decidiram permitir que o Facebook continuasse a construir seu monopólio e os produtores de conteúdo negros perderam um processo contra o YouTube, do Google, o foco deste post.

Os produtores de conteúdo negros (ou , de acordo com a nomenclatura do YouTube, “creators”) alegaram que a plataforma de streaming de vídeo do Google os discriminava com base em sua raça e nos pontos de vista ideológicos, infringindo assim sua liberdade de expressão garantida pela constituição dos Estados Unidos. Acho essa perda particularmente frustrante após os cálculos públicos do ano passado sobre o racismo e o contexto de pandemia que fez disparar o consumo da mídia, tornando o trabalho de todos os produtores de conteúdo muito mais crucial para a sociedade. Embora eu certamente não seja um advogado (e imagine que a equipe jurídica que está lidando com isso examinou o caso de todos os ângulos possíveis), sou um sociólogo da cultura que estuda o mundo do trabalho e, portanto, não posso deixar de me perguntar se isso está relacionado a como nós sistematicamente subestimamos o trabalho cultural como trabalho. Por que não alegar que o Google / YouTube discriminou os direitos dos “criadores” à igualdade de oportunidades e à remuneração dos trabalhadores ? Neste artigo, eu quero argumentar que lutar por uma classificação adequada como trabalhadores , tanto legalmente quanto (talvez mais importante) na consciência pública, é necessário para garantir uma vida mais digna e um futuro igualitário para todos os produtores de conteúdo.

“… Lutar por uma classificação adequada como trabalhadores , tanto legalmente quanto (talvez mais importante) na consciência pública, é necessário para garantir uma vida mais digna e um futuro igualitário para todos os produtores de conteúdo”.

Em resposta a isso, já ouvi algumas coisas um tanto ridículas. Acredite ou não, mas colegas sociólogos disseram coisas como “Eles não são trabalhadores! Eles são apenas amadores fazendo vídeos de gatos! ” Sério? É 2021, as pessoas que produzem conteúdo digital podem estar e muitas vezes estão ganhando a vida como produtores de conteúdo de maneira profissional. Existem vários livros e incontáveis ​​artigos acadêmicos sobre o assunto (meu próprio livro, inclusive). Eu também ouvi pesquisadores mais estabelecidos fazerem afirmações igualmente problemáticas como: “Eles não são trabalhadores, são empresários!” Se o primeiro argumento nega aos produtores de conteúdo o status de trabalhador cultural, o último ignora o poder das plataformas das Big Tech sobre os produtores de conteúdo.

Tenho pensado muito em como refutar esses tipos de respostas de maneira produtiva. Para mim, estudar aspectos sociais e culturais do trabalho significa um grande interesse em coisas como sentido e classificação, e é por isso que acho que precisamos entender que a luta dos produtores de conteúdo contra as plataformas começa com uma luta por classificação. Classificar os produtores de conteúdo como trabalhadores não requer muita imaginação. Todos os que ganham receitas de publicidade de plataformas como o YouTube são atualmente (erroneamente) classificados como “contratados independentes” (independent contractors) nos Estados Unidos, o que significa que os produtores de conteúdo do YouTube geralmente recebem um formulário de imposto 1099 do YouTube, assim como os motoristas do Uber e outros trabalhadores de plataformas.

“… Precisamos entender que a luta dos produtores de conteúdo contra as plataformas começa com uma luta por classificação.”

Isso por si só abre espaço para considerar as reivindicações dos creators contra o YouTube como uma questão trabalhista, em vez de uma violação da liberdade de expressão. As equipes jurídicas dos creators podem argumentar que o Google/ YouTube se envolve em uma sistemática discriminação salarial com base em questões de raça, por exemplo. Isso pode ser feito analisando como as taxas de pagamento do YouTube (CPM ou custo por mil, uma quantia em dólares por 1.000 visualizações) variam por raça/etnia enquanto controlam o tamanho do público – uma tarefa desafiadora para criadores que não têm acesso fácil aos dados necessários, mas que é facilmente realizada pelo YouTube. O Google/YouTube já possui os dados necessários, então por que não divulgar uma análise que comprove a (falta de) discriminação salarial com base na raça (e, eu imagino, gênero e sexualidade também, com base na minha pesquisa e em outras)? Independentemente disso, a discriminação do YouTube contra criadores de conteúdo negros não é uma questão de liberdade de expressão, mas, em vez disso, uma questão trabalhista de discriminação salarial. Desta maneira, reformular o caso poderia levar exatamente ao tipo de transparência salarial que pedi em textos anteriores .

Ainda há uma questão mais ampla deixada aqui: os creators do YouTube e outros produtores de conteúdo devem ser considerados empregados e não contratados independentes? Dada a minha profissão, tendo a pensar que as lutas por classificação são cruciais para a equidade – algo mostrado com bastante clareza na vitória da Suprema Corte dos Estados Unidos no mês passado para os atletas universitários. O Estado detém uma quantidade incrível do que o sociólogo Pierre Bourdieu chama de “poder simbólico” [1] ou a autoridade socialmente reconhecida para nomear e definir codificando as classificações em leis. O Estado detém esse poder quando se trata das demandas por reconhecimento das pessoas, desempenhando o papel de árbitro final em definições, classificações e categorias contestadas. Por exemplo, o Estado dita quem pode ou não ser legalmente considerado “homem” ou “mulher”, exercendo assim um poder simbólico sobre as classificações de gênero, assim como o Estado também dita quem pode ou não ser legalmente considerado um empregado.

Então, como o Estado define quem é e quem não é empregado? A sede do Google/YouTube na Califórnia usa o “teste ABC” para determinar se um trabalhador pode ser classificado como empregado ou contratado independente de acordo com o Assembly Bill (AB) 5 de 2019 . Observe que a Uber, outra plataforma dependente da classificação incorreta de seus trabalhadores, gastou milhões de dólares lutando contra esta lei no outono de 2020 – ilustrando ainda mais como as lutas classificatórias são partes cruciais das lutas contra a desigualdade [2]. A lei que a Uber – e outras plataformas de trabalho – gastou tanto tempo e dinheiro lutando contra define um empregado como qualquer pessoa cuja relação de trabalho não atenda aos três critérios a seguir do teste ABC:

A. O trabalhador está livre do controle e direção da entidade contratante em relação à execução do trabalho, tanto no âmbito do contrato de execução do trabalho como de fato;

B. O trabalhador realiza trabalho que está fora do curso normal dos negócios da entidade contratante;

C. O trabalhador está habitualmente envolvido em um mercado, ocupação ou negócio independente que é da mesma natureza que aquele envolvido no trabalho executado.

A maioria dos produtores de conteúdo, “creators” ou “influenciadores” não passam no teste, o que significa que devem ser classificados como empregados de acordo com a lei estadual. Em relação ao ponto A , a maioria das plataformas de trabalho exerce controle na forma de assimetrias de informação, incerteza salarial, gerenciamento algorítmico e controle unilateral sobre design e funcionalidades da plataforma, alguns dos quais reforçam discriminações de raça e gênero [3]. Em relação ao ponto B, o conteúdo dos creators é central, e não “fora” do negócio principal do YouTube. O conteúdo desses trabalhadores atrai um vasto público ao YouTube. A plataforma, então, vende os olhos dessas audiências aos anunciantes para obter lucro. O conteúdo dos creators é tão incrivelmente central para os lucros do Google/YouTube que pagar aos produtores de conteúdo sua parte justa poderia, em teoria, levar à falência até mesmo a maior das Big Tech [4].

“… Sejamos claros sobre uma coisa : os produtores de conteúdo das plataformas são trabalhadores. Seja como contratado independente ou empregado, a alegada discriminação dos creators negros pela plataforma é uma questão de discriminação no trabalho , sujeita às leis trabalhistas existentes que ostensivamente protegem os funcionários das discriminações com base em raça e gênero”.

A resposta à Parte C, no entanto, permanece menos clara. Muitos creators se incorporam como empresas. Como tantos outros trabalhadores hoje, eles se tornaram o que o teórico social e historiador Michel Foucault chamou de “empreendimento de si mesmo” [5]. Embora isso possa parecer uma resposta afirmativa à Parte C, a maioria dos criadores de conteúdo que conheci foram incorporados depois que começaram a ganhar dinheiro com plataformas a partir de seus conteúdos. Conforme está escrito, a lei permanece ambígua aqui (mas, novamente, não sou advogado). Para complicar ainda mais a situação, os creators abrangem várias ocupações submetidas a um teste mais rigoroso de status de empregado. Por exemplo, a maioria se dedica a marketing, design gráfico, fotografia e audiovisual (que estão sujeitos a um teste mais rigoroso – Borrello – em vez do teste ABC que mencionei acima), mas poucos ou nenhum creator seriam considerados membros dessas comunidades ou profissões ocupacionais. Na verdade, os produtores de conteúdo muitas vezes resistem a esses rótulos convencionais – um grande problema para eles quando procuram representação de guildas e sindicatos convencionais no entretenimento, que muitas vezes exigem identificação com uma única ocupação.

Tudo isso mostra como o trabalho por plataformas pode ser complicado em termos de de classificação, mas sejamos claros sobre uma coisa: os produtores de conteúdo das plataformas são trabalhadores . Seja como contratado independente ou empregado, a alegada discriminação dos creators negros pela plataforma é uma questão de discriminação no trabalho , sujeita às leis trabalhistas existentes que ostensivamente protegem os funcionários das discriminações com base em raça e gênero. O YouTube não deve voz a ninguém, mas deve aos creators que são pessoas não brancas um pagamento transparente, bem como acesso irrestrito ao seu local de trabalho (ou seja, YouTube). Lutar por esses direitos como trabalhadores e pressionar por uma classificação adequada como empregados pode abrir ainda mais as codificações preconceituosas do Google [6] para escrutínio, ajudando a resolver problemas de trabalho nas mídias sociais.

Referências

[1] Ver, por exemplo, Pierre Bourdieu, Razões Práticas: sobre a teoria da ação, Pierre Bourdieu, The Logic of Practice (Cambridge: Polity, 1990); Pierre Bourdieu, Meditações Pascalianas.

[2] Jeffrey J. Sallaz, “Service Labor and Symbolic Power,” Work and Occupations 37, no. 3 (2010): 295–319, https://doi.org/10.1177/0730888410373076.

[3] Angela Jones, Camming: Money, Power, and Pleasure in the Sex Work Industry (NYU Press, 2020); Mary L. Gray e Siddharth Suri, Ghost Work: How to Stop Silicon Valley from Building a New Global Underclass (Houghton Mifflin Harcourt, 2019); Alex Rosenblat, Uberland: How Algorithms Are Rewriting the Rules of Work (Berkeley: University of California Press, 2018); Michael Siciliano, “Control from on High: Cloud-Computing, Skill, and Acute Frustration among Analytics Workers in the Digital Publishing Industry,” Research in the Sociology of Work, Research in the Sociology of Work, 29, no. 1 (August 19, 2016): 125–53; Michael Siciliano, “Digital Labor’s Blackboxed Supervisors,” New Criticals (blog), October 16, 2017, http://www.newcriticals.com/digital-labors-blackboxed-supervisors/print; Michael Siciliano, Creative Control (New York: Columbia University Press, 2021).

[4] Christian Fuchs, “Class and Exploitation on the Internet,” in Digital Labor: The Internet as Playground and Factory, Org. Trebor Scholz (Digital Labor: Routledge, 2013), 211–24.

[5] Michel Foucault, O Nascimento da Biopolítica

[6] Safiya Umoja Noble, Algorithms of Oppression: How Search Engines Reinforce Racism (NYU Press, 2018).

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