Professor da Virginia Commonwealth University, David Golumbia é polêmico. Daquele tipo que você pode até não concordar, mas que te faz refletir sobre o tema. Em The Cultural Logic of Computation, de 2009, Golumbia fala da necessidade de compreender os computadores sem “computacionalismo”. Já em seu livro mais recente, The Politics of Bitcoin, afirma que o bitcoin faz parte de uma política de extrema direita, assim como parte da chamada cultura digital. Em texto para a revista Baffler, Golumbia tratou também de blockchain e o que chama de “zelotes”.
Em 2015, publicou, na Jacobin, o texto “A Amazon-ização de tudo”, em que coloca a Amazon como ditadora de “tendências” em relação ao mundo do trabalho, com práticas de “panóptico digital”, inovação e exploração. Em seu Medium, Golumbia postou texto em janeiro deste ano sobre inteligência artificial geral e a supremacia branca.
Confira entrevista de David Golumbia ao DigiLabour:
DIGILABOUR: Por que você considera o bitcoin como um elemento de um extremismo da direita?
DAVID GOLUMBIA: As ideias políticas e econômicas fundamentais nas quais o bitcoin e o blockchain são baseados somente fazem sentido a partir de uma perspectiva de direita. Para começar, são incoerentes: cada uma das promessas feitas para as tecnologias e criptomoedas é contradita por outro elemento do sistema de crenças. Esse tipo de incoerência interna é algo típico dos sistemas políticos de direita, especialmente aqueles que vão para além do conservadorismo moderado. Então, especificamente, a necessidade e a utilidade do Bitcoin dependem de ideias que surgem diretamente da direita. O menos extremo é uma versão transmutada de uma ideia chamada monetarismo, muita famosa nos Estados Unidos e associada ao economista de direita Milton Friedman, segundo a qual, como ele afirma: “a inflação é sempre e em todo lugar um fenômeno monetário”. Isto é, que a palavra “inflação” refere-se não ao aumento de preços, mas ao fato de a quantidade de moeda em circulação ser muito alta. Friedman, pelo menos, tendia a aceitar a ideia de que a palavra “inflação” em si referia-se ao aumento dos preços, mas achava que um aumento na quantidade de moeda era a única explicação para isso. Na área de criptomoedas, você encontra uma ideia ainda mais extrema e contraditória em si: a “inflação” refere-se apenas ao volume de moeda em circulação e não tem nenhuma relação com os preços. Quando o Bitcoin caiu rapidamente de quase 20 mil dólares para menos de 10 mil dólares, uma inflação acima de 100% de acordo com qualquer definição comum, foi difícil encontrar simpatizantes do Bitcoin em qualquer lugar que reconhecessem isso. De fato, mesmo agora, eles continuam insistindo que o Bitcoin é à prova de inflação, apesar do fato de todos nós termos visto diretamente não apenas inflação, mas hiperinflação em relação ao Bitcoin e outras criptomoedas, a partir das definições comuns de inflação e hiperinflação. Eles dizem que “o fornecimento de Bitcoin só aumentou um pouco”, o que é verdade, e então, “não pode ter inflação”, o que é totalmente falso. O Bitcoin foi projetado para ser “deflacionário” em um sentido quase monetarista. O fornecimento de Bitcoins é projetado para crescer mais lentamente ao longo do tempo e, eventualmente, parar completamente. E essa deflação é largamente desvinculada das realidades de deflação e escassez de tokens. Quase todos os tokens negociáveis, como ações de empresa, milhas aéreas e cartões de beisebol são limitados no fornecimento, mas essa limitação não garante seu valor. Em outros tipos de discussões em torno do Bitcoin, vemos ainda mais elementos de um extremismo de direita. Entre os principais, estão as teorias da conspiração sobre o Sistema de Reserva Federal dos Estados Unidos que circulam pelo país desde a criação do Banco Central, e que são um instrumento fundamental usado pelos antissemitas e racistas para espalhar sua propaganda. Essas teorias da conspiração vão muito além das críticas legítimas ao Banco Central, que são muitas, e chegam à alegação de que os bancos centrais e, especialmente, o Sistema de Reserva Federal, são uma associação secreta cujos membros “imprimem dinheiro” ilicitamente para roubar valor das pessoas comuns. Claramente muitas dessas teorias da conspiração são diretamente antissemitas, e não é preciso ir muito longe na maioria das discussões em fóruns de criptomoedas para encontrar invocações do arquetípico “banqueiro Rothschild” como inimigo do projeto Bitcoin. Finalmente, toda a ideia do blockchain e do ecossistema Bitcoin baseia-se na noção de que os mercados e suas transações devem ser conduzidos fora da supervisão governamental, isto é, devem ser realizados sem considerar a lei. Esse tipo de livre mercado radical e promoção da ilegalidade estão no centro de quase toda filosofia econômica de extrema direita hoje.
DIGILABOUR: Mas há muita gente de esquerda apoiando blockchain. Como você vê essa relação?
GOLUMBIA: Esse é, realmente, um dos aspectos mais desanimadores do mundo blockchain. Um modo de pensar em blockchain e criptomoedas é como esquemas de pirâmide. Isso não é totalmente exato, mas é mais verdadeiro que falso. Suponhamos que ouvimos pessoas de esquerda dizendo que “esquemas de pirâmide podem ser muito úteis para políticas de esquerda”. Ou pior, “podemos usar esquemas de pirâmide para transformar a sociedade à esquerda”. Suponho que poderíamos até fazer isso, mas de uma forma bem limitada. Esquemas de pirâmide são uma traição a tudo o que a esquerda representa, no meu entendimento. É preocupante o modo como a maioria dos que afirmam estar à esquerda e “acreditam” em blockchain entende tanto de tecnologia quanto de política. Muitas das que eu encontrei levam em conta as promessas feitas pelos tecnólogos do blockchain sobre o que a tecnologia “poderia” ou mesmo “quererá” fazer, embora nesse momento quase todas essas suposições tenham se mostrado falsas na melhor das hipóteses, e enganosas, na pior. Ou então adotam conceitos de políticas de esquerda que têm pouco a ver com verdadeiros programas socialistas, comunistas, ou mesmo socialistas democráticos. O fato é que as pessoas nesses lugares são particularmente resistentes a demandas que articulem claramente suas políticas e as ferramentas que podem chegar a essas políticas. E esse tipo de “ignorância estudada” sempre me parece mais consistente com a política de direita, não de esquerda. Eu vou dizer mais uma coisa: a maneira mais sóbria de entender blockchain é como uma espécie de planilha ou tecnologia de banco de dados com alguns recursos adicionais interessantes. E podemos e devemos debater quais recursos o blockchain disponibiliza que não estão disponíveis em outras tecnologias. Suponha que tivéssemos pessoas de esquerda escrevendo que “a tecnologia de banco de dados é útil para a esquerda”. É claro que a esquerda pode usar banco de dados, mas em si mesmos eles não se inclinam para a esquerda ou nada parecido. E por que não ouvimos isso? Talvez porque o blockchain seja, em grande parte, um projeto político que ofusca suas funções específicas de software, e que sua política é toda montada a partir de objetivos de direita.
DIGILABOUR: Como você relaciona o que chama de “inteligência artificial geral” com a alt-right?
GOLUMBIA: A cultura digital está saturada de políticas de direita de variadas maneiras. A inteligência artificial geral, também chamada de inteligência artificial “forte”, embora seja um bom exemplo disso, tem se tornado um território de “não tecnólogos”, porque a maioria dos tecnólogos e filósofos passou a reconhecer os erros conceituais profundos profundos sobre os quais essa inteligência artificial geral se baseia. Grosso modo, o que chamamos de “mente” não é equivalente ao que chamamos de “inteligência”: a inteligência, por mais que a definamos, é parte da mente, mas de modo algum é tudo. A maioria dos programas de inteligência artificial geral nega ativamente isso, de modo que não se considera tudo sobre como criar os outros aspectos da mente ou da consciência. Embora a cultura digital seja mais ou menos de direita, seu uso específico em tecnologias, discursos e comunidades online varia. A inteligência artificial geral é particularmente atraente para elementos racistas, fascistas e protofascistas de direita. Outras partes da cultura digital “apenas” usam o entusiasmo pela tecnologia para promover causas como a desregulamentação sob o disfarce de uma excepcionalidade digital, ou seja, empresas podem descrever o que fazem como sendo “digitais” e não são reguladas da mesma maneira que outras empresas são. Entendendo essas questões, lutamos contra isso. Lógico que é mais fácil dizer do que fazer. Eu e meus colegas há muito estamos em uma luta difícil para promover uma compreensão mais nuançada em relação à política digital.
DIGILABOUR: Dez anos após a publicação de seu livro The Cultural Logic of Computation, como pensar sobre “computadores sem computacionalismo” na atualidade?
GOLUMBIA: De certa forma, estou esperançoso em relação à direção que o mundo tomou nos últimos anos em relação aos computadores, porque muitas das coisas muito destrutivas que eu descrevi naquele livro realmente ocorreram. As pessoas estão começando a perceber que o mundo dos computadores está recheado de ideologia que vai da moderada à extrema direita, cheio de hostilidade a formas de razão e pensamento que não podem ser facilmente reduzidas a algoritmos e quantificações. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento de ferramentas realmente nocivas que tentam aplicar o pensamento algorítmico e a quantificação a partes da vida humana que não podem ou não devem ser quantificadas continua praticamente inabalável e isso me preocupa profundamente. Tudo isso são buscas veladas de identificação com o poder, um poder que muitas vezes surge psicologicamente da experiência de domínio do indivíduo sobre o próprio computador. Continuo profundamente preocupado por termos tido tão pouco sucesso ao eliminar esses compromissos ideológicos.