Documentário Turno: entregadores belgas enfrentam a Deliveroo

O documentário Turno (Bélgica, 2021) é parte da Mostra “Futuros Presentes: Cinemas Europeus”, organizado pelo Eunic Cluster São Paulo e pode ser assistido online pela plataforma Sesc Digital até o dia 31/03. O artigo abaixo foi escrito a convite da organização da Mostra.

Carlos d’Andréa
Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFMG, bolsista produtividade do CNPq e coordenador do grupo de pesquisa R-EST – estudos redes sociotécnicas.

Os pedidos feitos através de aplicativos de delivery não contêm apenas refeições. Facilidade, agilidade e flexibilidade são alguns dos adicionais do “combo” ofertado pelas plataformas quando são acionadas através de uns poucos cliques. Afinal, desintermediar” atividades cotidianas e econômicas é uma das promessas fundantes do intenso processo contemporâneo de plataformização. Por trás de slogans e campanhas promocionais, no entanto, esconde-se a complexidade de um mundo repleto de pessoas, objetos e instituições permeadas por desejos e por jogos de poder.

Dirigido por Pauline Beugnies, o documentário belga Turno (em inglês, Shift) nos conduz a algumas das entranhas do chamado “capitalismo de plataforma” através da história e das reflexões de um homem branco de meia-idade chamado Jean-Bernard. Desempregado e desiludido, ele inicia sua saga como entregador da plataforma Deliveroo com uma bicicleta emprestada. A rotina é cansativa, mas aos poucos ele entende como se entrelaçam as dinâmicas da cidade, dos clientes, dos outros entregadores e, claro, do aplicativo. Os acidentes de trânsito nas ruas de Bruxelas e a sensação de que os algoritmos estão programados para enganá-lo são alguns dos percalços diários, mas, para Jean-Bernard, é um alívio saber qual salário receberá ao final do mês.

Essa (frágil, diga-se) estabilidade se rompe quando a Deliveroo decide mudar o regime de trabalho. Todos entregadores passarão a ser freelancers, e não mais contratados; não terão mais uma renda fixa: os ganhos serão por pedido. A assistência social será reduzida, mas agora, argumenta a plataforma, cada um pode montar seu próprio horário. Mais flexibilidade e mais liberdade, repete o diretor da empresa enquanto o processo de precarização se escancara. Circulando com sua bicicleta pelas ruas e ocupando outros espaços urbanos, Jean-Bernard torna-se o porta-voz de uma crescente insatisfação coletiva que coloca face a face as mobilizações locais e a plataforma transnacional, o discurso ensaiado do neoliberalismo e os esforços de articulação política dos trabalhadores através de suas diferentes línguas nativas.

Diferentes instâncias do Estado são acionadas para mediar as disputas entre os entregadores e a Deliveroo. A judicialização do processo aumenta sua visibilidade midiática, mas posterga decisões e aumenta a incerteza dos indivíduos. Enquanto alguns continuam se mobilizando e tentam não serem banidos da plataforma, as extenuantes jornadas e o desamparo legal vivido por uma nova geração de entregadores – imigrantes negros, sobretudo – revelam outras nuances do movimento batizado de #slaveroo (fusão do nome da empresa com o termo “escravizador”, em inglês).

Ao trazer à tona as contradições e tensões da plataformização, Turno nos ajuda a lembrar que as refeições não se locomovem sozinhas pela cidade. O futuro vago prometido pelas Big Tech e as heranças e as ruínas do bem-estar social europeu são colocados frente a frente e evidenciam a urgência dos tempos presentes.

Sair da versão mobile