A revista Sociologias publicou dossiê Trabalho em Plataformas Digitais: perspectivas desde o Sul Global. Confira os artigos da edição.
Uberização e plataformização do trabalho no Brasil: conceitos, processos e formas (Ludmila Costhek Abilio, Henrique Amorim, Rafael Grohmann)
A partir de uma visada desde a periferia, os autores enfrentam os persistentes obscurecimentos e dilemas analíticos em torno de uberização e plataformização. Destacando alguns aspectos das transformações do capitalismo contemporâneo, definem elementos centrais que permitem pensar uberização e plataformização como uma tendência global que envolve novos modos contemporâneos de controle e gerenciamento do trabalho. O argumento central, da perda de formas estáveis dos meios de gerenciamento, das regras, da definição do tempo e da jornada de trabalho, tece a compreensão das dificuldades atuais de fixar conceitos e categorias de análise. Os dilemas percorrem a nomeação do trabalho subordinado por meio de plataformas e chegam à própria definição de gig economy, tomada por eles como problemática para a realidade brasileira. São trazidos à tona os modos de vida periféricos para se discutir, por um lado, como os elementos que estruturam esses modos de vida são apropriados de novas maneiras – racionalizadas, dataficadas e centralizadas – pelas empresas que exploram o trabalho por meio de plataformas digitais; por outro, a tendência à generalização desses elementos, especialmente, quando a informalidade se firma como regra no presente e futuro das relações de trabalho. Nesse contexto, antigas formas de produção são reconfiguradas e radicalizam bases estruturais de exploração.
Hunger for profit: how food delivery platforms manage couriers in China (Jenny Chan)
Jenny Chan nos leva para o cotidiano dos trabalhadores de plataformas de entrega de alimentos na China. Indagando como é possível empresas gerenciarem seus trabalhadores por meio de contratação de serviços por peça e não de empregos, a autora aborda os dilemas da ausência de definição sobre jornada de trabalho, a variação da remuneração, a ausência de proteções legais que correm junto com o eficaz gerenciamento algorítmico do trabalho. Questões que a guiam: como este gerenciamento opera e como os entregadores experimentam o controle e a autonomia do trabalho? A análise é fruto de dois anos de pesquisa empírica com 32 homens imigrantes rurais que encontram no trabalho de entregador os meios para sobreviverem na capital Beijing. São trazidas as experiências desses trabalhadores que, na condição de migrantes não têm acesso a determinadas proteções e direitos sociais que outros cidadãos têm. É por meio dessa pesquisa que a autora nos detalha os sistemas de gerenciamento algorítmico, o monitoramento do trabalho emocional, os sistemas de vigilância e meios de controle, que envolvem avaliações e monitoramento feitos pelos consumidores, bloqueios, punições por parte das plataformas – todos esses, elementos permanentes, mas também obscuros no cotidiano do trabalho.
Performing “digital labor bayanihan”: strategies of influence and survival in the platform economy (Cheryll Ruth R. Soriano, Earvin Charles Cabalquinto, Joy Hannah Panaligan)
Os autores discutem o papel dos chamados influenciadores no trabalho de diferentes plataformas, em especial, do trabalho de freelancers. Apresentando uma contextualização do platform labor nas Filipinas, as autoras demonstram como esses youtubers agem como coaches informais. Fazendo pontes entre trabalhadores e plataformas, os influenciadores contribuem no estabelecimento das estratégias cotidianas que viabilizam essas atividades em meio à precariedade das condições de trabalho. Haveria, então, uma espécie de alinhamento entre o trabalho freelance por plataformas e uma espécie de “pop management” desempenhado por esses atores em seu trabalho de “micro-influenciadores”. A produção discursiva aí desenhada ajuda a alimentar um espírito empreendedor da economia de plataformas nas Filipinas. Entretanto, uma promoção que é complexa, na medida em que a definição de bayanihan se origina de um sentido de comunidade e ajuda coletiva frente às adversidades vivenciadas por indivíduos. Nesse sentido, olhar para os influenciadores também envolve o reconhecimento do estabelecimento de um sentido de comunidade que incidirá na definição de estratégias individuais de sobrevivência, as quais também garantem a inserção social e reprodução desse tipo de trabalho. Na mesma esteira, o artigo destaca as ambiguidades, na agência dos trabalhadores, relativas às estratégias que se fazem na relação com as desigualdades estruturais locais sem de fato desafiá-las.
Waiting for Robots: The ever-elusive myth of automation and the global exploitation of digital labor (Antonio Casilli)
Antonio Casilli questiona os mitos e imaginários em torno da automação e da substituição de trabalhadores por robôs. A partir da definição de trabalho digital como atividade humana dataficada e taskificada, ele desvenda a imprescindível participação do trabalho humano na produção da inteligência artificial e na automação. Estariam em jogo, então, os processos de invisibilização social que obscurecem a centralidade do trabalho no desenvolvimento e alimentação das novas tecnologias. Para estabilizar a definição de trabalho digital, o autor recorre à tipificação do trabalho em plataformas, classificando-o como trabalho sob demanda (on demand labor), microtrabalho (microwork) e trabalho em redes sociais (networked labor). É a partir dessas definições que o autor irá destrinchar diferentes atividades, modos de funcionamento e sua relação com os processos de automação. Também são analisados impactos da pandemia sobre cada uma dessas categorias. O autor ainda destaca as desigualdades Norte-Sul em relação ao trabalho e à inteligência artificial, dado que a maioria das plataformas de microtrabalho se origina nos Estados Unidos, Europa, Coreia do Sul e Japão, enquanto a maioria de trabalhadores está no Sul global.
Heteromação e microtrabalho no Brasil (Matheus Viana Braz)
Matheus Viana Braz apresenta um panorama das plataformas de microtrabalho em nosso país. O artigo conceitua não só o microtrabalho, como também os diferentes tipos de atividades e plataformas presentes no Brasil. Para tanto, aborda os vários dilemas que nos remetem às indefinições sobre o que é e o que não é trabalho, assim como aos meios de rebaixamento dos custos do trabalho associados à sua fragmentação. As categorias de trabalho gratuito e trabalho não pago orientam a análise. Por esta perspectiva, o autor discute a participação do microtrabalho no engendramento de novas formas de extração de valor relacionadas à plataformização do trabalho. Mobilizado pela pergunta “onde estaria o Brasil na geopolítica do microtrabalho?”, o autor faz uso da netnografia, trazendo também contribuições metodológicas importantes. O acompanhamento de vinte e dois grupos de Whatsapp e Facebook, durante meses, desdobra-se em caminhos analíticos que nos permitem ir da experiência cotidiana dos trabalhadores – tal como exposta e constituída nesses grupos – à compreensão dos modos de estruturação, gerenciamento e realização do que o autor denomina de mercado de microtarefas no Brasil. O artigo nega uma definição homogênea e estável de microtrabalho no país, evidenciando que este não pode ser compreendido de forma apartada das cadeias de produção globais.
Precarización del trabajo y estrategias de trabajadoras en plataformas digitales: trabajo desde el hogar, organización sindical y disputa por derechos en el contexto de la pandemia del Covid-19 (Sofía Scasserra, Flora Partenio)
O artigo tematiza a inserção das mulheres em trabalhos por plataformas. Tendo como foco analítico a Argentina, as autoras demonstram, com base em um mapeamento da presença das mulheres em plataformas digitais, como o trabalho – por exemplo, de microtarefas (remoto) – se apresentou como uma das poucas alternativas, dada a sobrecarga de trabalho domésticos que limita as possibilidades de emprego, a sua inserção no mercado de trabalho. Procurando retomar e aprofundar o histórico debate, acirrado no contexto da pandemia do Covid-19, sobre a crise dos cuidados, o artigo problematiza e evidencia a necessidade da constituição de novos direitos trabalhistas ao propor uma agenda sindical e feminista que não se esvaneça na virtualidade dos trabalhos remotos. Ao discutir a inserção das mulheres, e também do público LGBT+, que combina trabalhos remunerados e não remunerados, as autoras procuram demonstrar teórica e empiricamente a necessidade da promoção de estratégias políticas e sindicais que deem representatividade às suas reinvindicações. Explicitam, nesse sentido, como os trabalhos remotos acabam por, de um lado, apresentar-se como uma possibilidade de combinar tempos e tarefas remuneradas e não remuneradas, mas, de outro, limitam o trabalho das mulheres a setores e funções produtivas e de serviços econômica e socialmente menos relevantes, relegando às mulheres a maioria de trabalhos nos quais o confinamento e o isolamento são características marcantes.