É possível trabalho decente em plataformas de trabalho online?

Este artigo é baseado nos resultados do relatório Fairwork Cloudwork 2021 (em português ou inglês), de Kelle Howson, Hannah Johnston, Nancy Salem, Robbie Warin, Fabian Ferrari, Yihan Zhu, Pablo Aguera Reneses, Funda Ustek-Spilda, Daniel Arubayi, Srujana Katta, Shelly Steward, Matthew Cole, Adam Badger e Mark Graham.

Quando Melissa se formou no ensino médio em São Paulo, estava ansiosa para começar a trabalhar. Mas em um dos países mais afetados pela pandemia, encontrar um trabalho se mostrou algo quase impossível. Até que um dia, um post no Reddit a levou à Amazon Mechanical Turk (AMT). A AMT é uma das maiores plataformas de trabalho online (ou cloudwork) do mundo, de propriedade da gigante global Amazon. Qualquer um pode se inscrever para ser um ‘Turker’ e realizar trabalhos de curto prazo, também conhecidos como microtarefas, por dinheiro. As tarefas geralmente requerem pouca experiência ou treinamento e podem variar de rotulagem de dados, que podem ser usados depois ​​para treinar sistemas de IA, até completar pesquisas. Cada vez mais brasileiros como Melissa estão ingressando nesse mercado de trabalho virtual global.

Trabalhar para a AMT e outras plataformas de trabalho online tem seus benefícios. Esse tipo de trabalho pode ser realizado de qualquer lugar do mundo com conexão à internet. Os trabalhadores podem trabalhar em horários flexíveis, escolhendo quando e como trabalhar, bem como o tipo de tarefas às quais se candidatam. “O que mais gosto no trabalho é a flexibilidade”, diz Melissa, que gosta de trabalhar até tarde da noite. Ela também se sente mais segura trabalhando de casa, o que permite que ela cuide de suas responsabilidades relacionadas ao cuidado: “Tenho uma avó com quem moro e não tenho que colocá-la em risco de contrair Covid-19 indo para algum trabalho presencial”.

No entanto, embora possa ser flexível, o trabalho nessas plataformas também é volátil. Melissa se viu competindo com milhões de trabalhadores por um número limitado de tarefas. No projeto Fairwork, pesquisamos 792 trabalhadores de plataformas cloudwork em 75 países e descobrimos que a maioria deles passa longos períodos procurando e se candidatando a tarefas – tempo pelo qual não são compensados. O pagamento também varia muito entre as tarefas e pode ser realmente imprevisível. Apenas 2 das 17 plataformas analisadas pelo Fairwork conseguiram provar que todos os seus trabalhadores ganham acima do salário mínimo local. Pior ainda, não é garantido que a maioria dos trabalhadores receba em dia, ou mesmo que seja pago por seu trabalho. Como disse a Melissa:

“Já fui enganada algumas vezes por pessoas que simplesmente se recusavam a me pagar, embora o trabalho estivesse perfeito. Não há muito o que fazer […] Tentei mandar um e-mail para a Amazon, mas nunca recebi uma resposta e isso é muito comum. ”

Na ausência das proteções necessárias pela plataforma, os Turkers confiam uns nos outros para sinalizar práticas exploratórias por parte dos empregadores por meio de ferramentas como o Turkopticon. O Turkopticon é um plugin que permite que os trabalhadores avaliem tarefas na AMT, e que se tornou uma comunidade vibrante que defende melhores condições de trabalho na plataforma.

Plataformas cloudwork (de trabalho em nuvem) podem aparecer como intermediárias neutras, conectando trabalhadores e clientes. Mas elas são mais bem compreendidos como a mais recente iteração de uma tendência de terceirização de processos de negócios (BPO) que já vem de longa data. A pesquisa sugere que a maioria dos trabalhadores nestas plataformas está baseada no Sul Global, enquanto a maioria dos clientes são corporações na Europa e nos Estados Unidos. Todos os tipos de organizações, de empresas de consultoria e bancos a universidades de alto nível, dependem cada vez mais dessas plataformas para terceirizar o trabalho para trabalhadores autônomos a milhares de quilômetros de distância. O forte domínio da língua inglesa e o fuso horário tornam o Brasil um mercado popular para essas práticas de terceirização. Mas, embora o mercado de trabalho em nuvem forneça uma renda valiosa para muitos no país, ele também é definido por condições e salários injustos. A aparente desterritorialização das plataformas de trabalho em nuvem, que muitas vezes são baseadas em países industrializados, permite que elas contornem as regulações locais e proteções aos trabalhadores e torna mais difícil para sua força de trabalho dispersa apelar para práticas injustas ou se organizar para melhores condições. Na verdade, apenas 3 plataformas envolvidas no estudo puderam evidenciar que seus trabalhadores têm acesso a processos de representação justa e que a liberdade de associação não foi inibida.

No entanto, nem todas as plataformas de trabalho em nuvem (cloudwork) são iguais. No projeto Fairwork, classificamos o trabalho das 17 plataformas com base em 5 princípios de trabalho decente (pagamento, condições de trabalho, contratos, gestão e representação). A terceira melhor plataforma de pontuação, com 5 de 10 pontos, foi a plataforma latino-americana Workana. Ela é uma plataforma freelancer, ou microtarefa, sediada em Buenos Aires, com escritórios também no Brasil, Colômbia, México e Malásia. Se os mais de 2,5 milhões de trabalhadores cadastrados na plataforma fossem classificados como empregados, ela seria o maior empregador privado do mundo. Por meio de nossa pesquisa, descobrimos que os funcionários da Workana costumavam saber como se comunicar com a empresa ou apelar de decisões injustas. Depois de o projeto se envolver com os gestores da Workana por mais de 10 meses, a plataforma concordou em implementar várias mudanças e ratificar políticas que terão um impacto direto na vida de seus trabalhadores. Por exemplo, a Workana adotou uma política que estabelecia que as tarefas seriam removidos da plataforma se pagassem abaixo do salário mínimo local, e tornou mais claro o processo de apelação em relação ao bloqueio de contas. Essas mudanças comprovam como plataformas como Workana ou AMT, que pontuou apenas 1 em 10 em nossa pontuação, têm a capacidade de melhorar as condições de seus trabalhadores.

O problema é que as plataformas têm poucos mecanismos de freios e contrapesos que as responsabilizem. A força do trabalhador é suprimida no trabalho em nuvem (cloudwork) e as plataformas fogem do alcance dos reguladores. As plataformas podem fazer muito mais para proteger os trabalhadores, mas as condições de trabalho em nuvem não irão melhorar significativamente até que as plataformas sejam responsabilizadas por suas práticas por regulações nacionais e globais e pelo poder coletivo dos trabalhadores. Projetos como o Fairwork podem apoiar esse impulso em direção a um futuro mais justo no trabalho em nuvem. Dado o número crescente de pessoas, como Melissa, que dependem desse tipo de trabalho para viver, é uma prioridade que plataformas, reguladores e coletivos de trabalhadores trabalhem juntos para garantir padrões básicos de justiça.

Sair da versão mobile