Fãs podem ser cidadãos? Entrevista com Ashley Hinck

Ashley Hinck é professora de comunicação da Xavier University, nos Estados Unidos, e pesquisa como as retóricas de ativismo e cidadania se relacionam com a cultura de fãs. Hinck analisa quais as possibilidades e os limites do ativismo de fãs em relação às mudanças sociais e políticas. A partir disso, cunhou o termo cidadania baseada em fãs para abordar ações cívicas fundadas em identidades de fãs.

Em 2019, lançou o livro Politics for the Love of Fandom em que analisa casos de fãs de Harry Potter, Youtube e futebol em ações de protestos, voluntariado e doações, reconfigurando a própria política. Ashley Hinck conversou por e-mail com Rafael Grohmann e Adriana Amaral em entrevista especial para DigiLabour.

 

DIGILABOUR: O que você chama de cidadania baseada em fãs?

ASHLEY HINCK: Com muita frequência, imaginamos os fãs como completamente acríticos. Eles amam seus objetos de fãs (celebridades, músicos, atores etc.) e os elogiam sem parar. Nesta visão, os fãs ficam cegos pelo amor ao objeto de fã. Um bom trabalho sobre isso é Representations of Fandom in Media and Popular Culture. Mas esta imagem não é completamente precisa. Mesmo quando os fãs amam seus objetos de fandom, geralmente eles estão muito cientes de suas deficiências ou limitações. De fato, os fãs falam sobre essas deficiências (como no caso dos fãs de Harry Potter e as visões transfóbicas de J.K. Rowling) e às vezes corrigem o que consideram deficiências em seus objetos de fãs (no caso de ficção). Além disso, não devemos definir os fãs como seres acríticos e emocionais. Em vez disso, podemos pensar no fandom como um laço afetivo com um objeto de fã, o que é bem diferente de uma lealdade cega. Esse vínculo afetivo é crucial para o que chamo de cidadania baseada em fãs. É uma ação cívica que se baseia nas experiências e identidades de ser um fã. Nesses casos, os fãs extraem valores públicos (o que eu chamo de estruturas éticas) de seus objetos de fãs. Por exemplo, os fãs de Harry Potter costumam enfatizar a justiça social. Os fãs de LEGO acreditam em engajamento público. Os fãs do VlogBrothers acreditam em curiosidade intelectual. Esses valores, então, funcionam como base para a ação cívica. Este é um desvio significativo de como geralmente imaginamos uma ação cívica – geralmente assumimos que os valores dos partidos políticos são os que determinam em quem os cidadãos votam. Ou então imaginamos as crenças religiosas como sendo as que podem inspirar doações para instituições de caridade específicas. No caso da cidadania baseada em fãs, os valores vêm de objetos de fãs da cultura popular, e não de instituições políticas tradicionais. É precisamente porque os fãs amam tanto seus objetos de fãs, com vínculos afetivos intensos, que os apelos à cidadania baseada em fãs são tão fortes.

 

DIGILABOUR: Quais as potencialidades e os limites dessas performances em relação ao engajamento cívico?

HINCK: A cidadania baseada em fãs tem o potencial de se tornar uma parte muito maior de nossa cultura política. Na verdade, acho que já estamos vendo sinais disso. Amanda Hess escreveu no New York Times que o fandom agora é um “modo dominante de experenciar a política”. Isso pode ser uma coisa boa – de fato, a cidadania baseada em fãs pode ser bastante produtiva. Ela funciona como uma entrada importante para a política quando os jovens podem estar se afastando das instituições políticas tradicionais. Isso tem como premissa um profundo envolvimento – os fãs já amam profundamente seu objeto de fã. Quando a cidadania baseada em fãs vincula esse profundo compromisso com um objeto de fã com uma questão pública, os cidadãos também se comprometem profundamente com esse problema público. Mas também há limitações. Em primeiro lugar, as empresas de comunicação e os grupos políticos tentam cooptar campanhas populares de cidadania baseada em fãs. Segundo, as instituições políticas podem ignorar ou criticar o desempenho da cidadania baseada em fãs como algo excessivamente emocional ou imaturo, atrapalhando os seus potenciais impactos. Terceiro, também há cada vez mais pesquisas sobre o lado sombrio da cultura de fãs, incluindo confrontos entre fãs, práticas reacionárias, cultura tóxica  e racismo nos fandoms. Quando a cidadania baseada em fãs emerge de contextos reacionários, tóxicos e racistas, essas características são incorporadas na cultura de fãs de maneiras perigosas.

 

DIGILABOUR: Você critica as limitações de pesquisas com relação aos fãs de futebol. Como compreendê-los a partir da perspectiva do engajamento cívico e das resistências?

HINCK: Há muita pesquisa boa por aí sobre fãs de futebol. Mas um de seus limites, assim como grande parte da pesquisa sobre fãs de forma mais ampla, é a maneira como trata os fãs de futebol como sendo apenas fãs de futebol, tendendo a ignorar outros compromissos dos fãs. Em outras palavras, esquecemos que um fã de Liverpool também pode ser um fã de Game of Thrones. Ou, no caso de minha pesquisa, que um fã do clube AFC Wimbledon também é fã do canal do VlogBrothers no YouTube. Em geral, somos fãs de muitas coisas ao mesmo tempo. Isso significa que temos comunidades de fãs sobrepostas. Essas sobreposições, interseções e pontos de contato ajudam a comunicar práticas e valores de fãs (ou estruturas éticas) entre as comunidades de fãs. Portanto, as estruturas éticas da comunidade de fãs de Harry Potter influenciam as estruturas éticas desenvolvidas na comunidade de fãs do clube AFC Wimbledon e vice-versa. A resistência e o envolvimento cívico em uma comunidade de fãs se espalham para outros lugares.

 

DIGILABOUR: E as mobilizações em torno do ativismo das celebridades?

HINCK: A cidadania baseada em fãs abrange tanto o ativismo de fãs quanto o de celebridade. Cidadania, para mim, é qualquer tipo de engajamento público, que inclui ativismo, caridade e políticas eleitorais. Embora as pesquisas sobre fãs e celebridades geralmente se configurem como duas áreas distintas, elas estão intimamente ligadas. Os pesquisadores podem enfatizar as celebridades ou os fãs, mas eles sempre existem um em relação ao outro. Alguns dos meus trabalhos, em coautoria com Kyra Hunting, analisaram o ativismo do ator Ian Somerhalder. Embora tenhamos usado o termo ativismo de celebridades, a experiência dos fãs foi uma parte essencial da compreensão de como funcionava o ativismo de celebridades.

 

DIGILABOUR: Há muitas controvérsias sobre como os fãs fazem interpretações sobre Star Wars ou Harry Potter serem de esquerda ou direita, por exemplo. Como você vê essas expressões políticas?

HINCK: Esta é a chave para compreender a cidadania baseada em fãs. Qualquer objeto da cultura popular, como Star Wars, Harry Potter, um game ou um programa televisivo, pode ser interpretado de várias maneiras diferentes. Nunca há somente uma interpretação ou um verdadeiro sentido. Mais isso não significa que, na prática, as pessoas tenham um número infinito de interpretações. Em vez disso, surgem interpretações dominantes, que ganham força principalmente por meio das comunidades. Kristina Busse e Jonathan Gray argumentam que as comunidades de fãs são exemplos do que Fish chamava de comunidades interpretativas. Em outras palavras, nossas comunidades direcionam e moldam nossas interpretações sobre a cultura popular. Por exemplo, os fãs de Harry Potter passaram a ver a obra como uma história de justiça social. Esta não é a única interpretação possível, mas é a que emergiu do fandom. O mesmo vale para Star Wars. Quando um grupo de fãs de Star Wars interpreta a obra como uma história de heróis homens, essa não é a única interpretação disponível. Em outras palavras, as interpretações são escolhas sociais. Não vejo a cultura popular influenciando os fãs em uma relação de causa e efeito. Em vez disso, os fãs trabalham com a cultura popular como agentes, interpretando-a e usando-a, influenciada por suas próprias experiências e pelas comunidades ao seu redor. De fato, essa é uma pergunta particularmente interessante para os fãs de Star Wars, que parecem ter uma gama maior de interpretações que outros fãs. Por exemplo, se você não consegue convencer os fãs de Harry Potter de que Harry lutou por justiça, não pode convencê-los a lutar por um comércio justo. Em um livro que publiquei com colegas, Poaching Politics, nós analisamos como o político americano Ted Cruz se baseou em interpretações conservadoras de Star Wars, enquanto Andrew Slack, fundador da Harry Potter Alliance, defendia interpretações liberais. A cidadania baseada em fãs depende de interpretações acordadas e aplicadas da cultura popular.

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