Heteromação do Trabalho: entrevista com Hamid Ekbia

automação do trabalho no capitalismo nunca é completa e necessita do trabalho humano. Pensando nisso, Hamid Ekbia cunhou a expressão “heteromação”, que explica em entrevista à DigiLabour.

Ekbia é diretor do Centro de Pesquisa em Interação Mediada da Indiana University Bloomington e autor dos livros Artificial Dreams: the quest for non-biological intelligence e Heteromation, and Other Stories of Computing and Capitalism, este em coautoria com Bonnie Nardi. Você pode conferir artigos do autor aqui e aqui.

 

DIGILABOUR: O que é exatamente a “heteromação” do trabalho? E por que esse nome?

HAMID EKBIA: A “heteromação” é um novo mecanismo e uma lógica de extração de valor no capitalismo atual. Tecnicamente, é o oposto de automação. Enquanto na automação o objetivo é colocar os humanos fora do loop, na “heteromação”, o objetivo é mantê-los no loop. Um caixa eletrônico, por exemplo, retira o caixa humano da interação entre o cliente e o banco. Embora isso funcione em parte do tempo, ele não funciona o tempo todo – os caixas de banco ainda são necessários para muitos tipos de transações. Na verdade, existe um paradoxo inerente à automação em uma economia capitalista porque, como Marx argumentou há muito tempo, o capitalismo não pode acabar com o trabalho humano. Apesar do desejo do capitalismo pela automação total, ele precisa dos seres humanos como produtores de valor e como consumidores de produtos. Com base nisso, pode-se argumentar que a automação total nunca será realizada no capitalismo. Isso nos leva ao aspecto econômico da “heteromação”, que envolve três pontos-chave. Primeiro, a “heteromação” trabalha com uma lógica de inclusão no sentido de participação universal, independentemente do status. A era atual do capitalismo inclui as pessoas em vários tipos de redes informatizadas, dando-lhes uma forte sensação de pertencimento. Em segundo lugar, e talvez de maneira mais ilusória, a “heteromação” geralmente assume uma forma quase voluntária que tranca as pessoas em sistemas e plataformas, sendo talvez o exemplo mais famoso e onipresente o Facebook. As pessoas sentem que não podem ficar sem isso, mas muitas vezes elas não gostam dessa dependência, tiram “férias” do Facebook e tentam se afastar o máximo possível. Por fim, a “heteromação” extrai valor de forma invisível, dando às pessoas a impressão de que estão incluídas, de que fazem parte do jogo, que estamos todos juntos. Mas a maior parte dos benefícios da participação vai para um pequeno grupo de pessoas se considerarmos as vastas fortunas feitas com o trabalho “heteromatizado”.Nós produzimos dados pessoais valiosos. Esses dados são vendidos e usados ​​para colocar anúncios com a finalidade vender e desenhar novos produtos. A coleta de dados é a parte mais falada sobre como as atividades digitais cotidianas contribuem para os resultados finais das empresas, mas, da mesma forma, também conduzimos – com pouca ou mínima remuneração – tarefas semelhantes: reviews de produtos, autosserviço em bancos e aeroportos, programação de software em plataformas de código aberto, desambiguação de imagens, e outros trabalhos não pagos de gamers.Construímos comunidades virtuais, criamos vídeos no YouTube, escrevemos ensaios políticos, comentamos as notícias e contribuímos para fóruns que mantêm as pessoas interessadas e engajadas- o que resulta em lucros abundantes para as empresas. Em suma, a “heteromação” forneceu novas lógicas e mecanismos para o acúmulo de riqueza. Chamo isso de “heteromação” por duas razões: primeiro, é uma relação de trabalho que extrai valor do trabalho humano em benefício de outros – normalmente, mas nem sempre, grandes empresas. Em segundo lugar, coloca os seres humanos à margem da máquina, de modo que eles fazem o que as máquinas não podem fazer, ou só poderiam fazer com dificuldade, a partir de softwares muito caros. Enquanto na automação, as máquinas fazem o que os humanos não fariam com facilidade, na heteromação é o contrário. Em outras palavras, os humanos estão fazendo muito do trabalho, enquanto as máquinas recebem o crédito. Isso inclui uma ampla gama de pessoas em vários papéis e posições – por exemplo, usuários de mídias sociais e mecanismos de busca; gamers e designers cujo trabalho criativo é frequentemente usado sem compensação em apoio a plataformas de jogos; designers gráficos que submetem trabalhos para concursos de design; consumidores comuns que se encontram fazendo o trabalho de ex-funcionários em nomes do “autosserviço”.

DIGILABOUR: Você mostra que há muitas formas de trabalho “heteromatizado”, como trabalho comunicativo, cognitivo, emocional e organizativo.  Estou particularmente interessado no trabalho comunicativo e no trabalho organizativo…

EKBIA: As várias formas de trabalho “heteromatizado” que produzem valor na economia atual estão em ascensão, começando com a comunicação. Esta é a primeira vez na história em que a própria essência da comunicação privada das pessoas se tornou um trunfo para as corporações: “os dados são o novo petróleo”. Os bilhões de participantes do Facebook, segundo uma grande empresa de consultoria, tornaram-se “a maior força de trabalho não remunerada” da História. Alguns números podem colocar isso em perspectiva: entre 2008 e 2013, o número de membros do Facebook cresceu de 300 milhões para cerca de 1 bilhão. No mesmo período, sua receita passou de US$ 300 milhões para US$ 4 bilhões. Cenários semelhantes podem ser encontradas no Twitter, no LinkedIn e em outras mídias sociais. O trabalho organizativo, por sua vez, tem a ver com a capacidade humana de coordenar atividades entre indivíduos e grupos. Outras espécies, como abelhas, pássaros e lobos, também têm uma capacidade semelhante, mas os seres humanos levaram isso ao mais alto nível por meio da construção de ambientes, incluindo os vários tipos de organização que criamos ao longo da História. Agora, as organizações envolvem custos – elas precisam de infraestruturas, rotinas, registros, fluxos de informações, etc. Esses custos constituem uma grande parcela das despesas das organizações, seja empresas privadas ou agências governamentais. Uma das inovações do capitalismo atual é terceirizar uma boa parte desse custo para as pessoas comuns. Pense no Google e no uso da Wikipedia como uma ótima fonte de informações para o mecanismo de buscas. Eu não sei sobre o Brasil e a língua portuguesa, mas no mundo de língua inglesa sempre que você procura algo na web, a Wikipédia é um dos principais resultados. Isto não é uma coincidência: o Google encontrou na Wikipedia uma fonte barata (essencialmente gratuita) que é autogerida, com algum grau de verificação e supervisão, com milhares de pessoas contribuindo com seu conhecimento e experiência em vários assuntos. O mesmo pode ser dito sobre o Google Translate, que usa bilhões de pedaços de traduções produzidas por humanos que são inseridas em seu sistema. Esses são exemplos de trabalho humano que é usado gratuitamente por corporações modernas como o Google. É assim que essas empresas podem se dar ao luxo de administrar seus negócios com um número mínimo de funcionários. Para tornar isso concreto, a partir de 2018, as três principais empresas do Vale do Silício contrataram menos de 200.000 funcionários: Google, 50.000; Facebook 20.000 e Apple 123.000. Para colocar esses números em perspectiva, em 1990, as três principais montadoras de Detroit, com um quarto da receita e menos de um sexto da capitalização, empregavam dez vezes mais pessoas do que esses gigantes do Vale do Silício. A razão, novamente, é que, na realidade, esses gigantes se beneficiam do trabalho de milhões de “usuários” que não estão na folha de pagamento.

DIGILABOUR: Como pensar, a partir de uma visão radical, mudanças e utopias reais em relação ao trabalho digital?

EKBIA: Essa é a pergunta de dois milhões de dólares. Eu acredito que existe um potencial real para uma verdadeira utopia que pode fazer com que a gente saia das circunstâncias atuais. Deixe-me esboçar brevemente os pontos-chave de tal utopia, que, em minha opinião, deve basear-se em três princípios: liberdade, justiça social e sustentabilidade. Esses princípios estão sob forte ataque nas últimas décadas, tudo em nome da liberdade de mercado, escolha pública e crescimento econômico. Para reviver e implementar esses princípios, precisamos de reversões sérias nas tendências atuais, um empreendimento difícil, mas não impossível. Primeiro, no que diz respeito às liberdades, as experiências das últimas décadas mostram repetidas vezes que os mercados deixados à própria sorte produzem economias descontroladas que regeneram a crise, aumentam a desigualdade, minam o bem-estar e a segurança das pessoas e destroem o meio ambiente. Uma abordagem alternativa deve colocar uma correia nos mercados e em sua tendência a interferir em todos os aspectos da vida. Alguns componentes óbvios disso seriam a supervisão e a regulamentação, não do tipo que colocam os assuntos nas mãos dos burocratas, mas nas mãos das comunidades e de seus conselhos. Embora a ideia de governar pelos conselhos das pessoas possa parecer improvável no atual ambiente cultural, ela é praticada há muito tempo em diferentes partes do mundo: as cidades-estados autônomas de Jônia na Grécia antiga, os municípios jeffersonianos da América antiga, comunas e sovietes das Revoluções Francesa e Russa, a comunidade islandesa e o kibutz israelense. Essas comunidades demonstraram a eficácia dessa forma de autogovernança repetidas vezes. Mesmo no caso da experiência da União Soviética, os relatos triunfalistas do capitalismo não deveriam nos cegar para as primeiras realizações dos sovietes. Um exemplo vivo disso no momento é a região curda autônoma de Rojava, que é baseada nos princípios confederalistas de autodeterminação, democracia comunitária não-estatista, participação de base, e anti-nacionalismo. Em segundo lugar, em relação à justiça social, essa visão utópica também colocará a tecnologia moderna a serviço do bem-estar das pessoas e das comunidades, em vez da situação atual em que os frutos de nossa engenhosidade coletiva atendem aos interesses de um número muito pequeno de indivíduos super ricos. Com relação à “heteromação”, o trabalho pago mediado por computador pode começar a alterar a ideia de que um trabalho de 40 horas por semana é a base da propriedade e da respeitabilidade. A “heteromação” pode dar lugar a um trabalho justo e mediado por computador, no contexto de uma “casinha eletrônica”, com suas promessas de autonomia e libertação das alienações da vida cercada em cubículos. Essa “casinha eletrônica” provavelmente exigiria uma renda básica para que os trabalhadores não fossem levados à autoexploração. Questões de renda básica não devem ser colocadas como “ou-ou” como frequentemente são. Não há razão para que uma renda básica não possa ser associada a arranjos de trabalho remunerados, flexíveis e autônomos. O valor econômico atual do trabalho “heteromatizado” sugere o quanto de trabalho já estamos realizando fora dos ambientes de trabalho convencionais – a tarefa agora é encontrar formas disso ser compensado. Em terceiro lugar, esse futuro utópico precisa prestar muita atenção à sustentabilidade social e ambiental. Como tal, deve destacar-se do pensamento que domina a política e os discursos atuais em todo o mundo. Uma alternativa a esse pensamento está em andamento no movimento de “decrescimento”, que defende não apenas a interrupção dos atuais padrões insustentáveis ​​de consumo (particularmente na América do Norte), mas uma séria reversão em direção a menos produção e consumo. Temos que lembrar que quando se trata da sobrevivência da espécie humana em nosso globo, é a Terra, e não o céu, que é o limite, como a mentalidade do Vale do Silício tende a sugerir. Em suma, acredito firmemente que os princípios de liberdade, justiça social e sustentabilidade ambiental que impulsionam um futuro utópico têm uma chance real de implementação efetiva em escala global se as atuais formas hegemônicas de pensamento e governança forem substituídas por alternativas disponíveis. Deixe-me também agradecer pela oportunidade de conversar com um público brasileiro. Seu país é um elemento fundamental para mudanças socioculturais, econômicas, políticas e ambientais na América do Sul. Como tal, os brasileiros têm uma grande responsabilidade em mudar a face do hemisfério ocidental e, por meio disso, o resto do mundo.

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