Imaginários e políticas dos algoritmos: entrevista com Taina Bucher

Taina Bucher é professora do departamento de Mídia e Comunicação da Universidade de Oslo, Noruega, e autora do livro IF…THEN: Algorithmic power and politics. É uma das principais autoras dos estudos de plataformas e algoritmos e seus textos abordam temas como imaginário algorítmico e affordances das plataformas de mídias sociais. Em 2017, Carlos D’Andrea e Amanda Jurno a entrevistaram para a revista Parágrafo: “algoritmos como um devir”

Em entrevista exclusiva à DigiLabour, Bucher fala sobre imaginários algorítmicos e estudos de recepção, temporalidades das mídias algorítmicas, privacidade, políticas ontológicas dos algorítmicos e posições ambivalentes em relação às tecnologias. Ela também antecipa detalhes sobre o seu próximo livro, que terá o Facebook como tema.

DIGILABOUR: Como nós podemos avançar nas pesquisas sobre imaginários algorítmicos? É correto dizer que pesquisar como as pessoas produzem sentido em relação aos algoritmos se relaciona aos estudos de recepção e consumo midiático?

TAINA BUCHER: Sim, absolutamente você poderia dizer isso. Os modos como as pessoas produzem sentido em relação os algoritmos são essencialmente um trabalho interpretativo e de processos de produção de sentido. Os estudos culturais e de recepção, especialmente desenvolvidos por Stuart Hall, tiveram grande ênfase nas relações entre produtores e consumidores na recepção de textos midiáticos. De acordo com o modelo semiótico de codificação/decodificação desenvolvido por Hall, as audiências não são receptores passivos, mas isso depende de vários repertórios interpretativos. Da mesma forma, pensar nos imaginários algorítmicos requer uma análise crítica da produção em combinação com estudos de consumo. Uma diferença fundamental hoje é que as relações entre produção e consumo são muito mais cíclicas e multidimensionais do que pensavam os tradicionais estudos de audiências e recepção. As plataformas não somente codificam sentidos nos algoritmos que os usuários decodificam ou produzem sentido, como podemos ver no artigo Decoding Algorithms, de Stine Lomborg e Patrick Heiberg Kapsch. Como as ações dos usuários são realimentadas no processo de codificação, o consumo sempre faz parte da produção e vice-versa. Este também é o meu ponto ao postular o poder produtivo do que chamo de imaginários algorítmicos. As formas de pensar sobre o que são algoritmos, o que eles devem ser e como funcionam vão além de um domínio interpretativo. O modo como as pessoas pensam sobre algoritmos e sistemas sociotécnicos afeta as maneiras como eles estão usando esses sistemas. Não importa tanto se esses imaginários são verdadeiros ou não porque, quando representados, tornam-se parte da verdade, se com isso queremos dizer os modos como os sistemas funcionam ou como esses imaginários, por sua vez, afetam os modelos de negócios e o funcionamento das empresas por trás dos algoritmos.

DIGILABOUR: Como a questão da privacidade tem aparecido em suas pesquisas?

BUCHER: Embora a privacidade não seja algo central em minhas investigações, preocupações com esse tema continuam aparecendo em muitos aspectos da minha pesquisa. Por exemplo, mesmo que eu não tenha perguntado especificamente sobre privacidade ao entrevistar pessoas sobre suas percepções em relação aos algoritmos, a privacidade costumava ser abordada como uma das principais preocupações das pessoas ao falar sobre processos algorítmicos. As preocupações com a privacidade eram particularmente predominantes quando as pessoas falavam sobre resultados algorítmicos “estranhos” ou “assustadores”, como em “como o algoritmo poderia saber isso”? Também participei de um projeto de pesquisa que se preocupa com as relações e a interdependência entre informações pessoais e privacidade, argumentando que a concepção tradicional de privacidade informacional precisa ser reconcetualizada em uma época em que as questões pessoais das “informações pessoais” estão intimamente ligadas a redes e dados agregados. Ou seja, os mecanismos em rede certamente desafiam a forma como as informações pessoais são compreendidas. Tome como exemplo as recomendações personalizadas de músicas. Até que ponto isso tem a ver com meu comportamento de escuta ou com preferências pessoais que influenciaram a recomendação, em oposição aos comportamentos semelhantes de outras pessoas e aos dados agregados? Em um mundo algorítmico em rede, permanece a questão de onde os limites entre o eu e o outro devem ser traçados e até que ponto esses limites são significativos e para quem. Devido a outros compromissos e à mudança de país, no entanto, não sou mais uma parte ativa desse projeto de pesquisa em particular, por isso estou provavelmente tão ansioso quanto você para descobrir o que meus ex-colegas da Universidade de Copenhaguen estão produzindo.

DIGILABOUR: O que você considera como o kairológico das mídias algorítmicas?

BUCHER: Refere-se ao regime temporal específico das mídias algorítmicas, caracterizado pela lógica do “tempo certo”. Defendo que a noção de “tempo certo” enfatizada por plataformas digitais como o Facebook reflete um novo regime temporal produzido por um cenário midiático cada vez mais algorítmico. Durante a década de 1990 e o início dos anos 2000, a noção de tempo real surgiu como um termo particularmente prolífico para falar sobre a aceleração da vida cotidiana e a quebra dos limites tradicionais do espaço-tempo. Sem dúvida, tornou-se o termo mais conhecido para falar sobre a temporalidade da web. No entanto, as tecnologias midiáticas que fundamentalmente dependem de algoritmos para classificar, filtrar, ranquear e selecionar conteúdo não estão apenas operando ou produzindo formas distintas de atualidade, mas dependem de um conjunto de relações temporais que trabalham para produzir uma paisagem temporal específica caracterizada por um tempo que é certo (por exemplo, os feeds de notícias apresentam “o conteúdo certo para as pessoas certas na hora certa”). Para entender melhor esse foco crescente no tempo certo, achei útil recorrer à noção clássica grega de kairos – entendida como um tempo oportuno para dizer ou fazer alguma coisa. Meu interesse pela temporalidade e a noção de kairos já começaram há 13 anos, quando escrevi minha dissertação de mestrado sobre o assunto. Somente recentemente, no entanto, comecei a publicar sobre esses temas. De qualquer forma, para responder à sua pergunta, as maneiras pelas quais as mídias algorítmicas dependem do kairos não são mapeadas perfeitamente nas noções já existentes em relação ao kairos. Para diferenciar a compreensão retórica e bíblica específica em relação ao kairos do “tempo certo” inscrito no cenário atual midiático, refiro-me a ele como o “kairológico” dos algoritmos. Isso significa que os sistemas midiáticos algorítmicos carregam consigo a lógica dos kairos, onde a mediação instantânea não é mais o objetivo final, mas o tempo personalizado da mediação. Procuro desenvolver o que essa lógica dos kairos significa e como ela pode ser conceituada especialmente no contexto do Facebook.

DIGILABOUR: O que são as políticas ontológicas de algoritmos?

BUCHER: É a capacidade mundial de criar algoritmos. Tomo emprestado o termo “política ontológica” dos escritos da Annemarie Mol, pesquisadora dos estudos de ciência e tecnologia (STS), que usa essa noção para pensar como as realidades nunca são dadas, mas moldadas, emergindo por meio de diferentes interações. É uma política que tem a ver com orientações, com o modo como os problemas são problematizados e ganham circulação ou não, os modos como os corpos são moldados e orientados de certas maneiras e não de outras, como algumas coisas se tornam mais ou menos prováveis. Isso quer dizer que o poder e a política dos algoritmos podem não estar necessariamente localizados nos algoritmos (embora possa), mas que as dimensões mais poderosas dos algoritmos têm a ver com as maneiras pelas quais esses sistemas governam o campo possível de ação dos outros, e como essas possibilidades se tornam mais ou menos disponíveis ou indisponíveis para determinados atores em contextos específicos.

DIGILABOUR: Quais são os desafios em relação a tomar uma posição epistemológica “ambivalente” em pesquisas sobre plataformas e algoritmos?

BUCHER: Eu acho que é o mesmo que ocupar uma posição ambivalente em geral. Por ambivalência, não quero dizer indecisão ou indiferença, mas aquele estágio intermediário de reconhecimento e abordagem de ambas as posições – como algo oposto a escolher “um ou outro”. Em um artigo de comentário na revista Social Media + Society,  tento lidar com os desafios dessa posição, especialmente no contexto de discursos acadêmicos sobre tecnologias digitais. Voltando ao meu mestrado novamente (parece que esses anos foram realmente formativos), em 2006/2007, alguns livros haviam saído sobre os efeitos diferenciais da Internet. Parecia muito algo na lógica de “ou isso ou aquilo”. Por um lado, havia todos esses relatos aparentemente otimistas dos potenciais participativos da Web e dos efeitos democratizantes da mídia em rede, de blogs e plataformas de mídias sociais (quando ainda acreditávamos em seus potenciais positivos). Por outro lado, havia muitos livros publicados sobre os efeitos prejudiciais da Internet. As crianças ficariam machucadas, a nossa atenção totalmente perdida e a nossa capacidade de ler livros perdida para sempre. À medida que a pesquisa sobre mídias sociais se desenvolvia, polêmicas semelhantes estavam em jogo. Bom x ruim, positivo x negativo, otimista x pessimista. Isso não é nada exclusivo da pesquisa em comunicação, é claro. A polêmica existia muito antes de eu escrever a dissertação de mestrado e continuará existindo. Esse não é o ponto. Tendo pesquisado e escrito sobre algoritmos há quase uma década, meu fascínio pela ambivalência como forma de crítica decorre, em parte, do que considero uma certa demanda por uma perspectiva definitiva ao levar em conta esses temas. Quanto mais jornalistas me questionavam querendo respostas definitivas sobre se os algoritmos são bons ou ruins (na verdade, mais frequentemente, a pergunta era “quão ruins são esses algoritmos”?), mais eu comecei a questionar essas críticas a priori. Sempre fui fascinada pela facilidade com que as críticas (disfarçadas de mitos desmascarados e assumindo uma postura negativa) podem ser expressadas e a dificuldade desproporcional de assumir uma posição aparentemente com mais nuances ou intermediária. O que eu argumento é que lidar com uma posição ambivalente geralmente exige mais, não menos trabalho. Longe de ser agradável ou desagradável, a posição ambivalente significa ter que negociar uma tensão contínua sem necessariamente encontrar uma solução. O desafio, a meu ver, é perguntar o que uma posição intersticial crítica pode implicar. Ou seja, se os roteiros usuais de “bom” e “ruim” não estão prontamente disponíveis, quais outras histórias poderíamos contar? Quais histórias poderiam ter sido negligenciadas ou vistas como sem importância pelo fato de não possuírem heróis ou vilões? Em outras palavras, o que a posição ambivalente implica é envolver-se em críticas midiáticas e práticas narrativas que não restauram automaticamente protagonistas, antagonistas e outros suspeitos usuais. Em vez de preencher as lacunas (nem todas as lacunas precisam ser preenchidas!), a posição ambivalente examina o que se perde nas rachaduras.

DIGILABOUR: Você pode nos contar algo sobre o seu próximo livro sobre o Facebook?

BUCHER: Claro. O livro é intitulado Facebook, pois faz parte da série de livros Digital Media & Society da Polity Press. Esta série envolve livros sobre plataformas específicas, como YouTube, Twitter e Instagram. Surpreendentemente, ainda não havia um livro no Facebook, então os editores se aproximaram de mim em 2018 e perguntaram se eu estaria interessada em escrevê-lo. No começo, fiquei relutante, porque não me vi escrevendo sobre uma plataforma que já tinha dado para mim. O Facebook não seria um pouco ultrapassado, algo que teve seu auge há uma década? Quanto mais eu pensava nisso, percebi que esse era o aspecto mais incompreendido do Facebook: a ideia de que ninguém mais se importa ou usa a plataforma. Embora possa ser verdade para uma pequena fração dos early adopters e, talvez, para uma geração mais jovem, até certo ponto, o Facebook ainda importa muito. Outro equívoco comum, que também fazia parte do motivo para aceitar esse projeto, é tratar o Facebook como apenas outra plataforma de mídias sociais. Embora tenha se tornado um lugar comum sugerir que o Facebook não é mais uma plataforma de mídias sociais, mas uma infraestrutura, isso é apenas parte da história. O que eu argumento no livro é que nos acostumamos a pensar no Facebook como uma mídia social que nos impede de desenvolver uma linguagem para falar sobre isso em seus próprios termos. O Facebook não é apenas outra plataforma de mídia social, um aplicativo móvel, um site de rede social ou uma infraestrutura. Facebook é o Facebook. Isso se torna maior do que o que as categorias e palavras normalmente usadas para descrevê-lo são capazes de transmitir. Isso não acontece com muita frequência, mas quando ocorre (talvez comparável à Internet), precisamos investigar o que isso significa para conceituarmos. O livro argumenta que o Facebook se tornou um conceito próprio. Assim como outros conceitos abstratos, como o amor, o dicionário não fornece uma definição de Facebook. Portanto, é isso que eu exploro no livro, o que se torna conceitual por parte do Facebook, no sentido de iniciar uma conversa sobre o Facebook que não seja necessariamente revertida imediatamente para a linguagem das mídias sociais ou outros aspectos comuns.

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