Rodrigo Ochigame
Este texto foi originalmente publicado na Logic Magazine em 31 de agosto de 2020.
Algoritmos da opressão estão ao nosso redor há muito tempo, assim como projetos radicais para desmantelá-los e construir alternativas emancipatórias.
Como você acabou lendo este texto? Se você estiver lendo on-line, pode ter clicado em um link em uma lista de recomendações ou em resultados de pesquisa – tudo gerado por algoritmos. Ou talvez um amigo tenha enviado o link para você – depois de encontrá-lo em uma lista gerada por algoritmos. Qualquer que seja a cadeia de eventos que trouxe você aqui, provavelmente isso envolveu um sistema de recuperação de informações (information retrieval).
Esses sistemas selecionam um punhado de opções dentre bilhões de possibilidades. Sua existência é inevitável: a qualquer momento, podemos compreender apenas uma pequena parte de um mundo imenso. O problema é que os sistemas que filtram o mundo não foram projetados para o benefício dos usuários, mas para o lucro corporativo. Nenhuma palavra captura a forma dominante de consumo de informação na internet de forma mais adequada do que “feed” – um termo onipresente derivado de uma metáfora agrária (alimento para animais). Como na pecuária, sua dieta de informações é projetada para maximizar o rendimento de uma operação de negócios.
Se os departamentos de relações públicas do Vale do Silício afirmam que seus produtos simplesmente “encontram os resultados mais relevantes e úteis em uma fração de segundo e os apresenta de uma forma que o ajuda a encontrar o que procura”, é assim que o Google descreve seus algoritmos de busca em seu site – executivos e acionistas sabem melhor. Eles sabem que o objetivo do negócio é ser pago para mostrar coisas que você não está procurando: anúncios.
O conflito de interesses entre anunciantes e usuários sempre foi evidente para os designers dos mecanismos de busca comerciais. Em 1998, alguns meses antes da incorporação do Google, os estudantes de pós-graduação Sergey Brin e Lawrence Page apresentaram seu protótipo de mecanismo de busca na web em um evento acadêmico. Em um apêndice de seu artigo, eles comentaram: “Esperamos que os mecanismos de busca financiados por publicidade sejam inerentemente tendenciosos para os anunciantes e distantes das necessidades dos consumidores”. De fato. Mais de duas décadas após essa profecia, todos os principais mecanismos de busca, o Google em primeiro lugar, agora operam precisamente no modelo de negócios de publicidade direcionada e alimentada por vigilância.
Os algoritmos desses mecanismos de busca são otimizados para o lucro. A indústria da publicidade governa a maior parte da pesquisa e do desenvolvimento no campo da recuperação de informações. Os cientistas e engenheiros da computação frequentemente medem a “relevância” dos resultados potenciais e testam o “desempenho” dos algoritmos candidatos de acordo com marcadores (benchmarks) de avaliação e conjuntos de dados de validação ditados pelas prioridades da indústria. Os sistemas predominantes são projetados para maximizar as receitas de anúncios e métricas de “engajamento”, como “taxas de cliques”. Consequentemente, esses sistemas tendem a promover conteúdos que já são populares ou semelhantes ao que os usuários viram ou gostaram antes. Quer as previsões de popularidade e semelhança sejam baseadas em correlação simples e análise de regressão ou em modelos complexos de aprendizado de máquina, os resultados tendem a ser previsíveis e com ideias semelhantes.
Não é à toa que a esfera pública parece tão empobrecida na era digital. Os sistemas que gerenciam a circulação do discurso político costumam ser originalmente projetados para vender produtos de consumo. Esse fato tem consequências importantes. Estudos recentes documentaram os efeitos desastrosos do “capitalismo de vigilância” e, em particular, como os motores de busca comerciais implantam “algoritmos da opressão” que reforçam os padrões racistas e sexistas de exposição, invisibilidade e marginalização. Esses padrões de silenciamento dos oprimidos são tão difundidos no mundo que pode parecer impossível projetar um sistema que não os reproduza.
Mas alternativas são possíveis. Na verdade, desde o início da informática – a ciência da informação – como um campo institucionalizado na década de 1960, os anticapitalistas tentaram imaginar formas menos opressivas, talvez até libertadoras, de indexar e buscar informações. Dois movimentos sociais latino-americanos em particular – o socialismo cubano e a teologia da libertação – inspiraram experiências com diferentes abordagens da informática das décadas de 1960 a 1980. Tomados em conjunto, esses dois momentos históricos podem nos ajudar a imaginar novas maneiras de organizar informações que ameaçam o status quo capitalista – acima de tudo, facilitando a ampla circulação das ideias dos oprimidos.
Disputas na Frente da Biblioteca
O que acontece no dia após a revolução? Uma resposta é a reorganização da biblioteca. Em 1919, Lenin assinou uma resolução exigindo que o Comissariado do Povo do Iluminismo “imediatamente tomasse as medidas mais enérgicas, em primeiro lugar para centralizar os assuntos da biblioteca da Rússia e, em segundo lugar, para introduzir o sistema suíço-americano”. Lênin provavelmente se referiu à organização das bibliotecas europeias que observou durante seu exílio da Rússia no início do século XX. Ao imitar o “sistema suíço-americano”, o líder bolchevique esperava criar um único sistema estatal de controle centralizado sobre a distribuição de livros e o desenvolvimento de coleções.
Quatro décadas depois, os revolucionários cubanos também reconheceram a importância do que líderes soviéticos, como Nadezhda Krupskaya, certa vez chamaram de luta “na frente da biblioteca”. No rescaldo da Revolução Cubana em 1959, Fidel Castro nomeou a bibliotecária María Teresa Freyre de Andrade como a nova diretora da Biblioteca Nacional José Martí em Havana. Lésbica e dissidente histórica que fora exilada e presa pelos regimes anteriores, ela há muito se preocupava com a política da biblioteconomia. Na década de 1940, ela articulou sua visão de uma biblioteca popular, distinta de uma que seja meramente “pública”. Enquanto a biblioteca pública pode ser “bastante passiva”, onde “o livro fica parado em sua estante esperando que o leitor venha procurá-lo”, a biblioteca popular é “eminentemente ativa”, pois “faz amplo uso de propaganda e usa procedimentos diferentes para mobilizar o livro e fazê-lo ir em busca do leitor”.
Após a revolução, Freyre de Andrade e sua equipe começaram a concretizar essa visão. Eles trouxeram livros para as pessoas, enviando “bibliobúses”, ônibus que serviam como bibliotecas móveis, para áreas rurais onde não existiam bibliotecas. Eles também começaram a desenvolver uma nova prática de biblioteconomia revolucionária. Ao contrário de Lênin, o objetivo não era imitar a organização das bibliotecas europeias. Em um discurso de 1964, Freyre de Andrade argumentou que os cubanos não podiam simplesmente “copiar o que os ingleses fazem em suas bibliotecas”. Se isso acontecesse, “teríamos uma biblioteca magnífica, a teríamos muito bem classificada, prestaríamos um bom serviço a muitas pessoas, mas não estaríamos participando ativamente do que é a Revolução”.
Como os bibliotecários podem participar ativamente da revolução? Uma resposta era reunir e indexar materiais que haviam sido excluídos ou suprimidos das coleções da biblioteca no período pré-revolucionário, como as publicações da imprensa revolucionária clandestina dos anos 1950. Mas os bibliotecários também se envolveram em um projeto revolucionário mais amplo: o esforço de Cuba para construir sua própria indústria de computação e suas próprias infraestruturas de informação. Esse projeto acabou levando a um novo campo distinto da ciência da informação, que herdou os ideais revolucionários da biblioteconomia cubana.
A Redistribuição da Riqueza Informacional
Tanto os revolucionários quanto seus inimigos reconheceram que a tecnologia da informação seria uma prioridade estratégica para a nova Cuba. Um ex-executivo da IBM lembra que “todas as empresas estrangeiras foram nacionalizadas, exceto a IBM Cuba”, já que “o governo de Castro e a maioria das empresas nacionalizadas eram usuários de equipamentos e serviços IBM”. Mas de 1961 a 1962, a IBM fechou sua filial cubana e o governo dos Estados Unidos impôs um embargo comercial que impedia Cuba de adquirir equipamentos de informática. Isso significava que Cuba seria forçada a desenvolver sua própria indústria da computação, com a ajuda de outros países socialistas do Conselho de Assistência Econômica Mútua (Comecon), liderado pelos soviéticos.
Entre 1969 e 1970, uma equipe da Universidade de Havana criou um protótipo de computador digital, o CID-201, bem como uma linguagem de montagem denominada LEAL, abreviatura de “Lenguaje Algorítmico” (linguagem algorítmica), sigla que também significa “fiel”. O design do CID-201 foi baseado nos esquemas encontrados no manual do PDP-8, um computador fabricado pela Digital Equipment Corporation, dos Estados Unidos. Por causa do embargo comercial imposto pelos Estados Unidos, a equipe não pôde comprar os componentes eletrônicos necessários na Europa, mas acabou tendo sucesso – com a ajuda de um cubano de ascendência japonesa que trabalhava como comerciante em Tóquio – em trazer os componentes do Japão dentro de mais de dez pastas.
Os matemáticos cubanos também escreveram um programa de computador no LEAL para jogar xadrez. Um dos engenheiros do CID-201 conta que o computador até jogou – e perdeu – um jogo contra Fidel Castro. A partir da década de 1970, Cuba fabricou milhares de computadores digitais e chegou a exportar algumas peças de computador para outros países do Comecon.
A ascensão da computação digital transformou a biblioteconomia cubana. Freyre de Andrade deu as boas-vindas à era digital, parafraseando Marx e Engels para fazer uma analogia da computação ao comunismo: “um espectro assombra o mundo informacional, o espectro do computador; e vamos ficar satisfeitos que esta circunstância veio para mover nosso campo [da biblioteconomia], nos dando um desafio que torna [o campo] ainda mais interessante do que já era por si só”. Os cubanos estudaram as técnicas da informática principalmente com livros didáticos soviéticos traduzidos para o espanhol. Eles combinaram os métodos computacionais que aprenderam nesses livros com os ideais revolucionários da biblioteconomia cubana. Essa síntese produziu teorias e práticas distintas que divergiram substancialmente daquelas da informática ocidental e da soviética.
Considere o conceito de “leis da informação”, um conceito corriqueiro dos livros didáticos de informática. Um exemplo clássico é a “lei de Lotka”, formulada em 1926 por Alfred J. Lotka, um estatístico da Metropolitan Life Insurance Company em Nova York, que buscou calcular a “distribuição de frequência da produtividade científica” traçando contagens de publicação de autores incluídos em um índice de resumos de publicações de química. Ele alegou que a distribuição seguia uma “lei do quadrado inverso”, ou seja, “o número de pessoas que fazem 2 contribuições é cerca de um quarto das que fazem uma; o número que faz 3 contribuições é cerca de um nono, etc.; o número que faz n contribuições é cerca de 1/n² daqueles que fazem uma”.
Como os livros ocidentais, os livros didáticos soviéticos de informática adotados em Cuba cobriam essas “leis da informação” em profundidade. Seus principais autores, os cientistas e engenheiros da informação russos A. I. Mikhailov e R. S. Gilyarevskii, citaram uma passagem peculiar do cientista da informação e historiador da ciência norte-americano, Derek de Solla Price, sobre a distribuição das contagens de publicações: “Eles seguem o mesmo tipo de distribuição dos milionários e camponeses em uma sociedade altamente capitalista. Uma grande parte da riqueza está nas mãos de um número muito pequeno de indivíduos extremamente ricos, e uma pequena parte residual nas mãos de um grande número de produtores mínimos”.
Para os cientistas da informação cubanos, que experimentaram uma revolução socialista e uma redistribuição abrupta da riqueza material, essa distribuição desigual da riqueza informacional também teve que ser radicalmente transformada. Entre esses cientistas da informação estava Emilio Setién Quesada, que estudou e trabalhou com Freyre de Andrade desde o início do período pós-revolucionário. Setién Quesada contestou a própria ideia de uma “lei da informação”. Em um artigo em coautoria com um colega mexicano, ele se opôs ao termo “lei”, que parecia implicar “a identificação de uma relação causal, constante e objetiva na natureza, sociedade ou pensamento”. As equações matemáticas representavam meras “regularidades”, sem expressar “as causas do caráter qualitativo dos comportamentos que descrevem”. Essas causas eram históricas, não naturais.
Portanto, Setién Quesada e seu colega argumentaram que as contagens de publicações não determinavam, de forma conclusiva, a “produtividade” dos autores, assim como o declínio na contagem de citações não indicava a “obsolescência” das publicações. As bibliotecas cubanas não devem confiar nessas métricas para tomar decisões importantes, como escolher quais materiais descartar. A informática tradicional era incompatível com a biblioteconomia revolucionária porque, ao tratar regularidades historicamente contingentes como leis imutáveis, tendia a perpetuar as desigualdades sociais existentes.
No entanto, os cientistas da informação cubanos não criticaram apenas as limitações da informática tradicional. Eles também propuseram uma abordagem mais crítica da modelagem matemática, que enfatizava a complexidade social e a contingência histórica das regularidades informacionais. Na década de 1980, quando as bibliotecas cubanas começaram a adotar os computadores digitais, Setién Quesada foi incumbido de desenvolver um modelo matemático de atividade bibliotecária, baseado em dados estatísticos, para fins de planejamento econômico. Mas ele estava insatisfeito com os modelos existentes de “intensidade” e “eficácia” da atividade da biblioteca, concebidos por cientistas da informação soviéticos e americanos. (Na discussão abaixo, incluo explicações matemáticas entre parênteses para leitores interessados, seguindo a própria terminologia e notação de Setién Quesada.)
Cientistas da informação soviéticos calcularam o “coeficiente de intensidade” da atividade da biblioteca multiplicando o “índice de circulação” (o número de empréstimos m dividido pelo número de leitores potenciais N) pelo “índice de rotação” (o número de empréstimos m dividido pelo volume total das participações f). Enquanto isso, os cientistas da informação dos EUA calcularam a “medida de eficácia” das bibliotecas, combinando o índice de circulação com um “índice de captura” (o número de leitores reais da biblioteca n dividido pelo número de leitores potenciais N). Em contraste com essas duas abordagens, Setién Quesada propôs um “modelo cubano” alternativo, que avaliou o que chamou de “comportamento das bibliotecas públicas cubanas”:
“Coeficiente de intensidade” (autores soviéticos)
“Medida de eficácia” (autores estadunidenses)
“Modelo cubano”
Setién Quesada argumentou que “o modelo cubano é mais completo”. Incluía muito mais variáveis, todas as quais ele considerava importantes. Por exemplo, o modelo cubano incluiu um “índice de comunicação” (baseado no número l de leitores que usam o acervo arquivístico), enquanto os modelos soviético e norte-americano “não expressam o nível preciso da comunicação social autor-leitor que ocorre em bibliotecas”. Além disso, esses outros modelos “não consideram o papel do bibliotecário no desenvolvimento da atividade”. Para Setién Quesada, os bibliotecários, “juntamente com os leitores, constituem os principais agentes ativos envolvidos no desenvolvimento desta atividade”. Portanto, no modelo cubano, todas as variáveis foram ajustadas em relação ao número de bibliotecários (incorporadas às variáveis ajustadas denotadas por um vínculo). Por fim, os outros modelos “não oferecem um índice que sintetize o comportamento comparativo de lugares e períodos”. Em contraste, o modelo cubano procurou facilitar as comparações de diferentes bibliotecas e períodos de tempo (cada um representado pelo subscrito i).
Quaisquer que sejam os méritos e as limitações deste modelo matemático específico, a história mais ampla da ciência da informação cubana nos encoraja a sermos céticos em relação às afirmações associadas a modelos e algoritmos de recuperação de informação no presente. Se os cientistas da informação de ontem alegaram que seus modelos classificaram os autores por “produtividade” e bibliotecas por “eficácia”, os “especialistas em IA” de hoje afirmam que seus algoritmos classificam os resultados de pesquisa “personalizados” por “relevância”. Essas afirmações nunca são descrições inocentes de como as coisas simplesmente são. Em vez disso, são prescrições interpretativas, normativas e com consequências políticas de quais informações devem ser consideradas relevantes ou irrelevantes.
Essas prescrições, disfarçadas de descrições, servem para reproduzir um status quo injusto. Assim como as publicações impressas não devem ser consideradas obsoletas e descartadas das coleções da biblioteca com base na contagem de citações, as informações online não devem ser consideradas irrelevantes e classificadas em um nível baixo nos resultados de pesquisa com base nas “taxas de cliques” e nas receitas de anúncios. Os experimentos inovadores dos cientistas da informação cubanos nos lembram que podemos projetar modelos e algoritmos alternativos para interromper, em vez de perpetuar, os padrões de desigualdade e opressão.
A Teoria de Rede da Teologia da Libertação
As experiências cubanas foram apoiadas por um estado socialista. Mas experimentos com informática anticapitalista também são possíveis na ausência de tal estado. Na verdade, outro grande empreendimento ocorreu em países controlados por ditaduras militares de direita apoiadas pelos Estados Unidos.
Em muitos países latino-americanos, incluindo o Brasil após o golpe militar de 1964, regimes autoritários tomaram medidas violentas para silenciar dissidentes, como censura, prisão, tortura e exílio. Alguns dos críticos mais veementes dessas medidas eram padres católicos que buscavam reorientar a Igreja para a organização dos oprimidos e a superação da dominação. Um evento chave na formação de seu movimento, que se tornaria conhecido como “teologia da libertação”, foi uma conferência de bispos latino-americanos de 1968 realizada em Medellín, Colômbia. Na conferência histórica, os participantes aprenderam sobre a dinâmica da opressão em diferentes países e declararam coletivamente: “Um surdo clamor nasce de milhões de homens, pedindo a seus pastores uma libertação que não lhes chega de nenhuma parte”.
Como esse grito pode ser ouvido? A experiência de Medellín inspirou um grupo de teólogos da libertação, em grande parte do Brasil, a tentar imaginar novas formas de comunicação entre os povos pobres e oprimidos em todo o mundo. O objetivo deles era a “conscientização”: o desenvolvimento de uma consciência crítica envolvendo reflexão e ação para transformar as estruturas sociais – termo associado ao colega Paulo Freire, que desenvolveu uma teoria e prática da pedagogia crítica. Para esse fim, os teólogos planejaram organizar um conjunto de reuniões chamadas de “Jornadas Internacionais por uma Sociedade Superando as Dominações”.
Mas as reuniões internacionais eram proibitivamente caras, o que significava que muitas pessoas foram excluídas. Um dos organizadores do projeto, o ativista católico brasileiro Chico Whitaker, explicou que “as reuniões internacionais raramente escapam à prática da dominação: em geral, são reduzidas a reuniões de ‘especialistas’ que dispõem de meios para se reunir”. Para resolver este problema, os teólogos da libertação e ativistas aliados conceberam um sistema de difusão e circulação de informações que chamaram de “rede de intercomunicação”. Essa rede disponibilizaria “informações não manipuladas e sem intermediários”, quebraria “barreiras setoriais, geográficas e hierárquicas” e possibilitaria “a descoberta de situações deliberadamente não divulgadas por sistemas de informação controlados”.
Por “sistemas de informação controlados”, os organizadores referiram-se à severa censura estatal da mídia impressa e de radiodifusão que se tornou prevalente em toda a América Latina. Os teólogos da libertação queriam a liberação da informação, o que possibilitaria uma nova fase da pedagogia freiriana: da era da “‘conscientização’ com os intermediários” para a da “‘inter-conscientização’ [direta] entre os oprimidos”, nas palavras de Whitaker.
Como a internet moderna ainda não estava disponível na década de 1970, o funcionamento da “rede de intercomunicação” dependia da mídia impressa e dos serviços postais. Os organizadores abriram dois escritórios, chamados de “centros de difusão”: um no Rio de Janeiro, na sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, onde o bispo brasileiro Cândido Padin, organizador da Conferência de Medellín, atuou como coordenador do projeto; e outro em Paris, onde Whitaker viveu no exílio com sua esposa, Stella, outra ativista brasileira, por causa de seu papel no planejamento da reforma agrária antes do golpe militar de 1964.
Os centros de difusão receberam e distribuíram, por correio, submissões de textos curtos (ou resumos de cinco páginas de textos mais longos) analisando situações de “dominação” de uma rede mundial de organizações participantes, conectadas por meio de conferências episcopais regionais na América Latina, América do Norte, África, Europa, Ásia e Oceania. Whitaker enfatizou que os textos deveriam idealmente ser escritos por “aqueles que têm o maior interesse na superação da dominação, ou seja, aqueles que estão sujeitos a ela”, e deveriam incluir “análises de suas próprias situações e as lutas que estavam desenvolvendo para se libertarem da dominação”. Os organizadores publicaram todos os textos que atendessem aos requisitos básicos, sem nenhuma modificação editorial; traduziram cada texto em quatro idiomas (português, espanhol, francês e inglês); e enviaram todos os textos gratuitamente para participantes em mais de noventa países.
Para Whitaker, o conceito de intercomunicação estava enraizado não apenas na “liberdade de expressão”, mas também na “liberdade de informação”: a capacidade de todos os participantes terem acesso “a tudo o que os outros desejam comunicar a eles e que serve à realização dos objetivos que compartilham.” A intercomunicação buscava produzir uma igualdade radical: “Todos devem ser capazes de falar e ser ouvidos independentemente da posição hierárquica, nível de educação ou experiência, função ou posição social, autoridade moral, intelectual ou política de cada um”. A prática da intercomunicação exigia a “aceitação da heterogeneidade e da ‘dinâmica’ dos conflitos que a acompanham”, escreveu Whitaker.
Por fim, a intercomunicação exigia um exercício de “respeito mútuo” e “abertura para com os outros” que refletisse o princípio cristão da fraternidade: como disse Whitaker, “o respeito pelo que o outro pensa ou faz … a receptividade ao novo e inesperado, àquilo que nos questiona ou nos desafia, ou a perspectivas e preocupações que poderíamos deixar de lado por serem difíceis de aceitar”. Apesar da importância dos valores cristãos, no entanto, a rede de intercomunicação estava aberta a todos. Alguns participantes eram não-católicos, não-cristãos e até não-religiosos. Padin explicou que, como “filhos de Deus, somos em Cristo todos irmãos, sem qualquer distinção”.
A Liberdade para ser Ouvido
Ao longo dos anos, a rede de intercomunicação fez circular uma diversidade extraordinária de textos. Os participantes chadianos examinaram as consequências sociais da monocultura do algodão desde sua imposição sob o domínio colonial francês. Os participantes do Sri Lanka revisaram as condições de trabalho na indústria pesqueira, as táticas de lucro dos exportadores de frutos do mar e as limitações das cooperativas de pesca criadas pelo Estado. Os participantes panamenhos narraram sua luta por moradia e a formação de uma associação de moradores. Da Guiné-Bissau, um grupo de educadores locais e estrangeiros, incluindo Paulo Freire, escreveu sobre os desafios de organizar um programa de alfabetização e mudar o sistema de ensino após a guerra de independência. Só entre 1977 e 1978, quase uma centena de textos circularam na rede. Posteriormente, foram compilados em um volume monumental, publicado em quatro idiomas e discutido em reuniões regionais de participantes da rede em todo o mundo.
Este volume apresentava um sistema de indexação incomumente sofisticado. Cada texto tinha um código composto por uma letra e um número; por exemplo, o texto chadiano mencionado anteriormente tinha o código “e35”. As letras indicavam o tipo de texto – “e” para estudos de caso, “d” para textos de discussão, “r” para resumos – e os números eram atribuídos cronologicamente. O volume foi dividido em dezesseis seções numeradas, cada uma sobre um tema diferente de “dominação”. A seção III enfocou a “dominação sobre os trabalhadores rurais”, a seção IV sobre “trabalhadores não rurais”, a seção VII sobre “dominação nas condições habitacionais”, a seção X sobre “condições de saúde”.
Cada texto foi impresso dentro de uma das seções temáticas, mas como as classificações não eram mutuamente exclusivas, o índice de cada seção também listava textos que se cruzavam com o tema, apesar de serem de seções diferentes. Por exemplo, o índice da seção IX, sobre educação, listou alguns textos principais – “e4” da Tailândia, “e6” da Guiné-Bissau, “e38” das Filipinas – bem como outros textos de diferentes seções, como “r3 ”Da seção X, que discutiu a intersecção da saúde e da educação nas estruturas de dominação. O final do volume apresentava um índice adicional que classificava os textos de acordo com “algumas categorias particulares de vítimas das dominações”: “mulheres”, “jovens”, “crianças”, “pessoas idosas” e “grupos étnicos”.
A surpreendente diversidade de textos circulados pela rede de intercomunicação logo colocou seus organizadores em conflito com facções conservadoras da Igreja Católica. Em 1977, alguns leitores ficaram especialmente escandalizados com o texto “e10”, enviado por uma pequena e autodenominada “comunidade (ecumênica) do amor cristão” liderada por mulheres na Inglaterra rural. O texto incomodava os conservadores não apenas por sua denúncia explícita da “Igreja Católica Romana como uma estrutura de dominação” engajada em “um tipo de ‘lavagem cerebral’ eficiente e especializada”, mas também por suas propostas feministas, que incluíam a recusa “a chamar qualquer pessoa de ‘pai’ num contexto clerical e o compromisso de “chamarmos o Espírito Santo de ‘Ela’ e não ‘Ele’”.
Depois de uma longa deliberação no centro de difusão do Rio de Janeiro, os organizadores do projeto decidiram publicar o texto junto com uma nota reafirmando seu compromisso com a liberdade de expressão e lembrando os leitores dos requisitos mínimos para publicação. Ainda assim, os bispos conservadores reclamaram com as autoridades do Vaticano, que estavam cada vez mais preocupadas com o surgimento da teologia da libertação na América Latina e para além dela. O Papa Paulo VI, que não simpatizou com o projeto, enviou emissários ao Brasil para intervir. O Vaticano exigiu que os bispos parassem, alegando que a conferência do Rio de Janeiro “não poderia tomar uma iniciativa de tal amplitude e que teria ultrapassado sua competência ao convidar outras conferências episcopais para se associarem ao projeto”. Ao construir uma rede mundial distribuída por meio de conferências regionais, os teólogos da libertação contornaram a autoridade central do Vaticano. Apesar da ordem do Vaticano de interromper o projeto, um grupo de organizadores brasileiros continuou na desobediência até 1981.
Posteriormente, os ex-organizadores refletiram sobre a relação entre sua rede de intercomunicação e a internet moderna. Eles não sabiam que no artigo original sobre o Protocolo de Controle de Transmissão(TCP), que delineou a tecnologia que serve de base à internet, os engenheiros Vinton G. Cerf e Robert E. Kahn falaram de um protocolo para rede a partir de pacotes de “intercomunicação” – ou simplesmente um protocolo “inter-rede” (internetwork), levando à contração “internet” alguns meses depois. O artigo foi publicado em 1974, quando os teólogos da libertação planejavam sua rede de nome semelhante.
Em 1993, refletindo sobre as duas internets, Chico Whitaker teorizou que a “rede” é uma “estrutura alternativa de organização”, muito menos comum na “cultura ocidental” do que a “estrutura piramidal”:
“Informação é poder. Nas pirâmides o poder se concentra, por isso também a informação, que se esconde ou se guarda para ser usada no momento oportuno, com vistas a se acumular e se concentrar mais poder. Nas redes o poder se desconcentra, por isso também a informação, que se distribui e se divulga para que todos tenham acesso ao poder que sua posse representa”.
Não há dúvida de que Whitaker e seus colegas eram propensos ao tecnoutopismo. A esperança de que o progresso tecnológico finalmente possibilitasse uma “livre” circulação de informação era uma fantasia, uma vez que vários tipos de decisões de máquina e trabalho humano, estruturados por condições político-econômicas, sempre filtram as informações que circulam e para quem. As concepções tecnoutópicas de “liberdade de informação”, seja na versão capitalista-libertária californiana, seja na versão teológica da libertação brasileira, nunca são totalmente corretas.
No entanto, há uma diferença crucial entre as duas concepções. A versão californiana de liberdade de informação é amplamente limitada a uma compreensão particular da liberdade de expressão. As empresas do Vale do Silício que gerenciam o discurso público na internet, como o Facebook, apelam insistentemente à “liberdade de expressão” como uma desculpa para suas decisões empresariais de lucrar com postagens e anúncios que espalham desinformação de direita.
A inovação notável dos teólogos da libertação brasileiros é que eles foram além de um foco estreito em relação à liberdade de expressão e em direção a uma política de audibilidade. Os teólogos entenderam que o problema não é apenas se alguém é livre para falar, mas a voz de quem pode ouvir e quais ouvintes a voz pode alcançar. A rede de intercomunicação pretendia produzir condições mais equitativas não apenas para falar, mas para ouvir e ser ouvido. Em última análise, o objetivo da rede era amplificar as vozes dos oprimidos. Hoje, nossa tarefa é reformular essa concepção mais crítica de liberdade de informação para a era digital. A informação será “livre” (free) apenas quando os oprimidos puderem ser ouvidos tão alto quanto seus opressores.
A Recuperação da História
A história da tecnologia é frequentemente contada como uma progressão linear, como uma série de contos de inventores triunfantes, vindos principalmente da América do Norte e da Europa Ocidental. Esses contos são difundidos em parte porque são fáceis de contar. Depois que uma determinada tecnologia prevalece, o contador de histórias pode simplesmente seguir os registros e narrativas dadas por um punhado de pessoas que já são creditadas por sua invenção.
Essas narrativas corriqueiras têm funções ideológicas importantes. Primeiro, eles legitimam a acumulação capitalista ao enquadrar a fortuna do inventor-empresário como a recompensa merecida por uma ideia engenhosa. Isso requer o apagamento de todos os outros contribuintes do artefato tecnológico fornecido; no caso dos mecanismos de busca, significa esquecer as bibliotecárias (cujo trabalho feminizado nunca é valorizado como criativo) e as cientistas da informação cujo trabalho cumulativo ao longo de décadas lançou as bases para o Google.
Mais profundamente, essas narrativas também servem para sancionar as tecnologias dominantes, apresentando-as como as únicas jamais concebíveis. Eles ignoram as muitas alternativas possíveis que não prevaleciam, dando assim a impressão de que as tecnologias existentes são apenas o resultado inevitável da engenhosidade técnica e do bom senso.
Se inovações periféricas, como as experiências latino-americanas com informática, não se tornaram dominantes, não é porque fossem necessariamente inferiores aos concorrentes corporativos, militares e metropolitanos. As razões pelas quais algumas tecnologias sobrevivem e outras morrem não são estritamente técnicas, mas políticas. O modelo cubano era indiscutivelmente mais sofisticado tecnicamente do que seus homólogos estadunidenses. No entanto, algumas tecnologias são patrocinadas pela indústria de publicidade, enquanto outras são restringidas por um embargo comercial neocolonial. Alguns são apoiados pelo Pentágono, outros esmagados pelo Vaticano.
É crucial recuperar essas alternativas perdidas, pois elas nos mostram como as tecnologias poderiam ter sido de outra forma – e ainda podem ser no futuro. No entanto, essas histórias são difíceis de recuperar. Seus protagonistas podem permanecer anônimos e seus registros não preservados.
Nenhum mecanismo de busca me apontou os experimentos latino-americanos. Nunca os teria encontrado por meio dos métodos tradicionais de pesquisa na Internet. Em vez disso, encontrei pistas sutis em conversas inesperadas. Eu estava conversando com Theresa Tobin, uma bibliotecária aposentada do Massachusetts Institute of Technology (MIT), que co-fundou a Força-Tarefa Feminista na American Library Association em 1970. Ela comentou que depois que arrecadou fundos para doar um computador digital para uma biblioteca sandinista na década de 1980, bibliotecários nicaraguenses usaram para implementar um sistema cubano de indexação de materiais.
Comecei a aprender mais sobre o sistema cubano, uma tarefa que se mostrou trabalhosa. Mesmo as fontes mais importantes sobre a ciência da informação cubana são difíceis de encontrar usando mecanismos de busca e bancos de dados convencionais. Por exemplo, apesar da proeminência de María Teresa Freyre de Andrade, o Google Scholar não indexa seus livros principais, e a Wikipédia não possui verbete sobre ela em qualquer idioma. (Nota: após a publicação original do presente texto, editores da Wikipédia criaram verbetes usando-o como fonte.) Por outro lado, a enciclopédia cubana online EcuRed traz um artigo extenso sobre ela. Também consegui encontrar algumas referências iniciais sobre informática cubana no SciELO, banco de dados bibliográficos da América Latina. Em seguida, entrei em contato com estudiosos cubanos diretamente para pedir ajuda.
Minha descoberta sobre a rede de intercomunicação dos teólogos da libertação seguiu um caminho semelhante. Quando conheci Stella e Chico Whitaker no Fórum Social Mundial de Porto Alegre, que eles fundaram em 2001, nunca tinha ouvido falar em rede de intercomunicação. Só anos depois, quando estava ajudando o casal a doar seus papéis pessoais para um arquivo público, é que eles mencionaram de passagem que uma das caixas empoeiradas de seu apartamento continha documentos de um antigo projeto de informática. Eles ficaram surpresos por eu ter demonstrado interesse. Às vezes, o melhor método de recuperação de informações é falar com as pessoas.
Muitas outras ideias vitais para futuros alternativos, sejam tecnológicos ou não, permanecem esquecidas em caixas empoeiradas em todo o mundo. Os sonhos reprimidos de lutas passadas não aparecerão facilmente em nossos feeds algorítmicos corporativos. Para recuperar essas ideias perdidas, devemos desenvolver métodos mais críticos de recuperação da informação, continuando o trabalho que os experimentos latino-americanos deixaram inacabados. Em suma, precisamos de buscadores críticos.
O projeto de buscadores críticos reconheceria que qualquer quantificação de “relevância” é um ato interpretativo, normativo e politicamente consequente. A busca crítica se esforçaria ativamente para aumentar a visibilidade das tradições intelectuais contra-hegemônicas e das perspectivas historicamente marginalizadas. Devemos construir sistemas de difusão e circulação de informações que busquem amplificar vozes críticas e ultrapassar barreiras linguísticas, nacionais, raciais, de gênero e de classe. Vamos nos inspirar em nossos antepassados e tentar seguir seus passos. Vamos experimentar algoritmos, interfaces e táticas para reindexar o mundo de novo.
Rodrigo Ochigame é professor assistente de antropologia cultural e sociologia do desenvolvimento na Universidade de Leiden e doutor pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT).
Imagem por Celine Nguyen