Mulheres negras, tecnologias e resistência

* Dulcilei C. Lima – Doutora em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC

* Taís Oliveira – Doutoranda em Ciências Humanas e Sociais na UFABC

Os estudos feministas apontam há décadas que o campo da tecnologia reproduz as desigualdades de gênero observadas no cotidiano social associando os homens ao desenvolvimento de tecnologias e às carreiras tecnológicas e frequentemente ocultando as mulheres que fizeram parte de sua história.

Autoras como Judy Wajcman  e Sandra Harding ressaltam o impacto da exclusão de mulheres e grupos racializados e/ou empobrecidos nos processos de desenvolvimento tecnológico. A desigualdade social informa tanto pelos obstáculos associados à apropriação das tecnologias quanto na forma como são apropriadas, levando os sujeitos socialmente excluídos a fazerem usos criativos dos recursos tecnológicos em seu cotidiano.

As desigualdades entre homens e mulheres no acesso, uso e criação de tecnologias é grande tanto em países desenvolvidos quanto em países em desenvolvimento. Grande parte das mulheres que têm acesso à internet não o fazem por meio do computador, mas apenas dos smartphones. Isto impacta na qualidade do acesso, logo também no seu potencial de uso.

Mesmo em ambientes economicamente favoráveis, as mulheres não costumam ser incentivadas a seguir carreiras tecnológicas devido ao entendimento equivocado de que se trata de um campo masculino, e que às meninas falta habilidade natural para as ciências e tecnologia. As mulheres ainda são lidas como tecnofóbicas, de modo que, seguem majoritariamente excluídas dos processos de criação tecnológica. Como as realidades de mulheres são múltiplas, atravessamentos como raça, classe social e localização geográfica determinam condições distintas de acesso e uso das tecnologias.

Nesse sentido buscamos analisar no artigo Negras in tech: apropriação de tecnologias por mulheres negras como estratégias de resistência (publicado nos Cadernos Pagu nº 59) a forma como mulheres negras vem se apropriando de ferramentas tecnológicas e como as têm utilizado como mecanismos de sobrevivência, contraposição ao sistema hegemônico, articulação de lutas por justiça social. Para tanto, analisamos um conjunto de dados produzido e publicado pela iniciativa PretaLab. Publicado em 2018 sob a direção de Silvana Bahia, Gabriela Agustini e Iana Baremboim, o PretaLab Report teve como objetivo identificar o maior número possível de mulheres negras e indígenas atuantes nas tecnologias e, a partir daí, compreender quais as necessidades destas no ecossistema da inovação e da tecnologia.

Infelizmente ainda não existem dados precisos sobre o acesso da população negra às tecnologias e às ferramentas fornecidas pela internet, tampouco sobre seus hábitos de uso. Pesquisas de amplo espectro como a PNAD – Acesso à Internet e à Televisão e Posse de Telefone Móvel Celular para Uso Pessoal ou a TIC domicílios, por exemplo, não fazem recorte de raça. No que diz respeito especificamente às mulheres negras, o Dossiê Mulheres Negras: retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil,do IPEA, e a Síntese de Indicadores Sociais de 2018, do IBGE, apontam para maiores restrições sentidas por mulheres negras em distintos segmentos como acesso à moradia adequada, educação, proteção social, serviços de saneamento básico, tecnologias e comunicação.

A exclusão da população negra é sentida também no campo de estudos de gênero, ciências e tecnologias. Essa área de conhecimento é caracterizada por pesquisadores predominantemente brancos. As lacunas também se apresentam nos recortes de pesquisa que raramente se debruçam sobre a intersecção entre raça, gênero e tecnologia.

Ao analisar a apropriação de tecnologias por mulheres negras brasileiras, Céres Marisa M. Santos afirma que a despeito das inegáveis desigualdades sociais, educacionais e econômicas, elas vêm utilizando cada vez mais a internet para ampliar suas narrativas e redes de sociabilidade.  Maria Isabel Neuman de Segan, por sua vez, ao analisar a América Latina defende a apropriação das tecnologias por parte de grupos socialmente excluídos como potencial exercício de práticas de resistência e negociação frente ao processo de globalização. Esta percepção é compartilhada pela ativista Fernanda Monteiro Lira, em entrevista para PretaLab e por Silvana Bahia, ao abordarem as tecnologias como ferramentas repletas das ideologias hegemônicas de seus criadores e, portanto, carregadas de visões políticas que potencializam desigualdades.

Quando você chega nessa percepção em que a tecnologia pode ser um veículo social, você cria outras camadas de resistência, de resiliência, onde você pode se comunicar com outras pessoas que sentem o mesmo que você e isso cria uma sensação de pertencimento que você não tinha antes e leva para lugares inclusive que não tem tecnologia. Pode levar a gente a conhecer não só aquela cultura que tá distante lá no outro país, mas a própria realidade que está do nosso lado Fernanda Monteiro Lira).

De modo que se faz fundamental a inserção e intervenção de grupos subalternizados nos processos de criação e domínio tecnológicos. A apropriação das tecnologias é o que possibilita ao indivíduo ser mais que um usuário passivo, mas ser também agente e reinventar seus usos adquirindo autonomia frente às TICs e fazendo uso social das habilidades tecnológicas em seu cotidiano.

Identidades nos estudos de tecnologias

Estudos no campo das Black Digital Humanities relacionam as problemáticas de raça e etnia às pesquisas sobre tecnologia. Para Gallon , os usos coletivos por pessoas negras a partir da apropriação das tecnologias são uma continuação das lutas sociais e políticas empregadas por populações negras escravizadas em todo o mundo. Vemos essa aplicação em trabalhos como os de Freelon et al sobre o movimento Black Lives Matter no Twitter sobre movimentos de direitos civis e justiça a partir da análise das hashtag #Ferguson e #BlackLivesMatter, em Noble e Tynes que tratam de discutir a interseccionalidade na internet a partir de debates em torno de raça, classe, gênero e cultura online, há ainda os estudos de Gray que analisou a presença de mulheres negras em comunidades online de jogos e Noble sobre o racismo algorítmico de plataformas.

Aqui observamos, sobretudo, as conversações que dão ênfase às características raciais principalmente por se tratar de um grupo historicamente estigmatizado e oprimido pela sociedade dominante, como mostra Jessie Daniels. Para Kabengele Munanga afirma que esses grupos buscam reforçar sua cultura ancestral, fortalecer os laços de solidariedade e ressaltar aspectos políticos. Assim, a identidade negra se constrói com a intersecção de múltiplas variáveis sociais, políticas, históricas e culturais, como afirma Gomes.

Rede Negras In Tech

Assim buscamos compreender a estrutura, as estratégias, dificuldades e a relação de mulheres negras que se apropriam das tecnologias em suas práticas de resistência a partir do levantamento realizado pela PretaLab e com a Análise de Redes Sociais (Recuero, 2009; Barabási, 2009; Recuero; Bastos & Zago, 2015; Silva & Stabile, 2016).

A rede Negras In Tech teve como nós semente as páginas no Facebook dos 15 projetos mencionados no levantamento da PretaLab. São eles OxenTI Menina, Criola, Blogueira Negras, Pretas Hackers, Desabafo Social, GatoMidia, Minas Programa, DataLabe, BlackRocks Startup, MariaLab, Preta, Nerd e Burning Hell, Info Preta, Instituto Mídia Étnica, Coletivo Nuvem Negra e Olabi / PretaLab.

Rede Negras In Tech | Fonte: as autoras

Sobre a métrica de modularidade, obtivemos nove comunidades com particularidades em cada uma delas:

 Cluster lilás – Tecnologia: destaque para o projeto Minas Programam e sua maioria de nós tratam da temática de mulheres nas tecnologias;

Cluster verde – Games: Preta, Nerd e Burning Hell se destaca entre os nós e é responsável por se conectar a diversos outros nós da temática do universo geek e nerd;

Cluster azul – Inovação: o Olabi se destaca com maior relevância dentre os nós e se conecta com outros atores relacionados à pesquisa e inovação;

Cluster vermelho – Política: Blogueiras Negras é o nó em destaque nessa comunidade e se conecta com atores que abordam temáticas políticas e aproximações, como MeRepresenta e Virada Política;

Cluster laranja – Rio de Janeiro: GatoMÍDIA é o nó em destaque, conectando a outros projetos situados na cidade do Rio de Janeiro, como Comida de Favela, Redes da Maré – Somos Todos Maré, Foto Favela, entre outros;

Cluster vinho – Salvador: destaque para três projetos originados na cidade de Salvador: Desabafo Social, Portal Correio Nagô e  Instituto Mídia Étnica.

Por meio das conexões, notamos um reforço e valorização da identidade da mulher negra, um diálogo com a academia, com setor público e com a iniciativa privada ao observarmos a quantidade de páginas relacionadas a universidades, órgãos públicos e fundações de empresas – essas provavelmente por conta de editais e financiamentos a projetos.

PretaLab Report

O Relatório da PretaLab, publicado em fevereiro de 2018, foi elaborado a partir de um levantamento realizado ao longo de 2017 por meio de questionários online. No total se contabilizou 570 questionários respondidos, provenientes de 25 estados brasileiros e do Distrito Federal. No site da PretaLab também foram disponibilizados 12 excertos de narrativas[1] sobre as experiências dessas mulheres com as TICs e 10 vídeos curtos, resultados de entrevistas com mulheres negras que atuam com tecnologia. O levantamento da PretaLab se debruçou sobre o uso e desenvolvimento de tecnologias, duas de três etapas da inclusão digital que seriam: acesso, alfabetização digital e apropriação de tecnologias (Mori, 2011; Rosa, 2013).

A maior parte das mulheres negras envolvidas com tecnologia são jovens entre 17 e 24 anos e somam 35,8% seguidas pelas mulheres que possuem entre 25 e 29 anos no total de 24,8%. Este grupo corresponde aos chamados nativos digitais, indivíduos que possuem maior desenvoltura com as TICs.

Em relação ao modo como as mulheres negras tiveram contato com a área de tecnologia, a maior parte (415 no total) mencionou ter sido por meio da escola, faculdade ou outro centro de ensino formal. Mais do que demonstrar a relevância das instâncias formais de educação no processo de apropriação das tecnologias, esses dados revelam o papel de meios informais para aquisição de conhecimentos na área. Isso talvez possa ser explicado pela insuficiência de políticas públicas de inclusão digital.

O expressivo número de mulheres negras que adquiriram conhecimentos em tecnologia por outros meios que não a educação formal, evidencia também a cultura da experimentação. Avanços tecnológicos e a multiplicação de tutoriais nas redes favorecem a autonomia do aprendizado em tecnologia Neuman (2008) destaca que a apropriação tecnológica por grupos socialmente marginalizados é resultado de prática autônoma como as experiências de algumas das entrevistadas pela PretaLab demonstram.

A despeito da centralidade da comunicação nas TICs, uso prioritário da maior parte da população, para grupos historicamente marginalizados dos veículos de mídia, as tecnologias e a internet em especial abriram um campo vasto de possibilidades para discussão de suas demandas, troca e compartilhamento de informações e ainda a constituição de um espaço de visibilidade e reconhecimento.

Perguntadas sobre o que as atraiu para a tecnologia, 29,1% das mulheres negras e indígenas que responderam ao questionário mencionaram o potencial de inovação, 14,6% as possibilidades de transformação social e 13,9% o alcance. Apenas 9,6% dessas mulheres mencionaram a carreira como motivo para buscarem a área de tecnologia. Nesses números, três dados se destacam: a baixa adesão à carreira em tecnologia, o uso social dessas ferramentas e o potencial de inovação. Num levantamento posterior, a PretaLab – em parceria com a ThoughtWorks (consultoria global de software) – explorou a percepção sobre a diversidade em carreiras tecnológicas.

Os dados do levantamento demonstraram que as mulheres negras reconhecem nas tecnologias seu potencial para aquisição e construção de conhecimento, para além de uma finalidade econômica. Essas mulheres se apropriam e buscam, por meio  da tecnologia, caminhos para solução de problemas sociais.

Tendo em vista as precárias condições socioeconômicas que grande parte das mulheres negras enfrentam, como vários indicadores revelam e considerando que as áreas tecnológicas não são economicamente tão acessíveis, e ainda, a ausência ou insuficiência de políticas públicas para as mulheres na tecnologia, os dados apresentados pela PretaLab no relatório são reveladores da conduta de resistência adotada por essas mulheres.

As tecnologias são, para os grupos sociais marginalizados,de “origem exógena”. Tais grupos não são os criadores dessas tecnologias. Elas lhes são impostas no contexto do mundo globalizado e de capitalização da informação. A autora atribui às TICs um dos mecanismos mais bem sucedidos da globalização devido a sua difusão, mas também um dos mais permeáveis, pois pode ser utilizada pelos grupos subalternos como ferramenta de resistência e negociação dentro desse contexto, mesmo considerando seu uso para o exercício do controle social.

As TICs oportunizam às mulheres negras “a possibilidade de reforçar identidades coletivas, de explorar novas identidades, de superar barreiras sociais e culturais, de dar novos sentidos ao exercício da cidadania através da visibilidade de seus discursos” (Santos, 2018: 118).

A Rede Negras In Tech = apresentou um desenho de relações que reflete a pluralidade das temáticas que permeiam as principais discussões sobre/de mulheres negras na sociedade contemporânea. Observamos, portanto, que as mulheres negras brasileiras, a partir de suas representações na rede, se apropriam das ferramentas online para formar comunidades, propagar os propósitos coletivos relacionados ao aprendizado e apropriação da tecnologia, disseminar informação relevante, bem como para se conectar e estabelecer relações em torno de outros tópicos da vida social, como demonstrado na comunidade de games, política e demarcações territoriais e, assim, desenvolvem seus espaços de visibilidade e resistência. A potencialização das vozes de mulheres negras se faz presente na interação discursiva desses projetos que, em certa medida, representam no fazer cotidiano outras mulheres negras que visam adquirir ou repassar conhecimento sobre  tecnologia, vivências e estratégias para resistir.

Dessa forma, mulheres negras se apropriam das ferramentas com o intuito de propor soluções às brechas tecnológicas, sobretudo a brecha de conhecimento ao buscar meios formais e não-formais de obtenção de conhecimento para criação e manipulação de tecnologias, de modo a obter autonomia frente às TICs e fazer uso social das habilidades tecnológicas adquiridas na promoção de inovação e transformação social. Assim, observamos práticas genuínas e constantes de resistência e negociação diante dos processos de globalização e avanço tecnológico. 

A formação de redes a partir de demarcadores de identidade de raça e gênero possibilitam a circulação de outras visões de mundo que não as hegemônicas, a interação discursiva e o desenvolvimento de comunidades. Essas características fortalecem o entendimento do que é pertencer e assim essas mulheres negras reunidas elaboram estratégias para fugir dos estigmas e da marginalização decorrentes das disparidades sociais. Além dos meios formais como modo de adquirir conhecimento, estas mulheres mencionam a própria internet como fonte de conhecimento e grupos de apoio, reforçando o caráter essencial da criação e manutenção de redes.

Foto: Shutterstock.

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