O trabalho de plataforma é trabalho de minorias: entrevista com Niels van Doorn

Niels van Doorn, professor da Universidade de Amsterdam, está coordenando uma pesquisa sobre trabalho de plataforma em três cidades – Nova Iorque, Berlim e Amsterdam – a partir de duas questões:

Van Doorn afirma que as plataformas são novos locais de acumulação do capital e há clivagens de gênero e raça (como você pode conferir neste artigo). Ele conversou com a DigiLabour sobre os primeiros achados de sua pesquisa Platform Labor.

DIGILABOUR: Como você define o trabalho de plataforma?

NIELS VAN DOORN: Eu definiria “trabalho de plataforma” simplesmente como trabalho mediado, organizado e governado por meio de plataformas digitais, seja por meio de um aplicativo no smartphone do trabalhador, no caso de muitos serviços incorporados localmente, ou por meio de notebook, computador de mesa ou tablet no caso de “microtrabalho” ou outras formas de trabalho realizadas on-line. Uma característica central do trabalho de plataforma é o que eu chamo de sua “produção dual de valor”, ou como o valor monetário do serviço prestado é aumentado pelo valor de uso e pelo valor especulativo dos dados produzidos antes, durante e depois da prestação de serviços. O trabalho de plataforma é, portanto, essencialmente, trabalho de produção de dados e treinamento de algoritmos. Isso é o que o que o torna tão valioso, apesar de ser também trabalho desvalorizado e explorado, como muitos outros serviços de baixa renda no passado e no presente. Por isso, o trabalho de plataforma é uma dimensão-chave do capitalismo de plataforma financeirizado: sem pessoas fornecendo todos os tipos de serviços de dados que sustenta não só outras pessoas, mas também máquinas (produção de IA), não haveria capacidade de arrecadar tanto capital de risco e outras formas de investimentos financeiros.

DIGILABOUR: Como o trabalho de plataforma se relaciona a questões de gênero, raça e classe?

VAN DOORN: Primeiramente, eu diria que o trabalho de plataforma é moldado por gênero, raça e classe da mesma forma que outras formas de trabalho de serviços (de baixa renda) são moldadas por essas forças. De fato, no trabalho de plataforma, há muita reprodução de desigualdades e exclusões de raça, gênero e classe. Em contraste com minha resposta anterior, que tentou oferecer uma visão universalizante e abrangente sobre o trabalho de plataforma, aqui eu gostaria de enfatizar que não existe realmente algo como “trabalho de plataforma” no abstrato. Em vez disso, existem apenas plataformas específicas inserindo-se em mercados específicos para serviços e bens específicos. Então, as relações do trabalho de plataforma com gênero, raça e classe só podem ser respondidas caso a caso. O Uber Eats é muito diferente do Helpling, que, por sua vez, é muito diferente do Upwork. O que estou tentando fazer na minha pesquisa é descobrir quem trabalha com e para essas plataformas, como e por que eles trabalham: para que esse trabalho de plataforma realmente trabalha? Por quanto tempo e por quais motivos? Estou muito interessado na distribuição desigual de oportunidades e os desafios do trabalho de plataforma nas três cidades que estudo (Amsterdam, Berlim e Nova Iorque) e como essa distribuição desigual é fortemente influenciada pelas disparidades de gênero, raça e classe existentes. Ao mesmo tempo, o trabalho de plataforma também pode contrariar essas disparidades ou exclusões, normas ou desigualdades. Mas esta é uma questão empírica e sobre a qual estou trabalhando no momento, embora tenha escrito (neste artigo) sobre as formas herdadas de violência e dominação estrutural que lançam uma sombra sobre a gig economy, apesar de seus esforços para apagar essa história e ressemantizar o trabalho de bico como algo empreendedor.

DIGILABOUR: Quais são os primeiros achados da sua pesquisa Platform Labor?

VAN DOORN: O projeto ainda está em fase inicial e nós ainda estamos fazendo trabalho de campo, no processo de coleta de dados. É por isso que estou um pouco hesitante em revelar quaisquer “descobertas” definitivas sem ter tido tempo para analisar adequadamente todo o material coletado. Dito isso, no nosso site, publicamos regularmente as chamadas “notas de pesquisa”, que dão ao leitor uma visão da nossa pesquisa em andamento e compartilham “descobertas” experimentais. Eu diria que uma das principais coisas que surgiu da minha própria pesquisa sobre plataformas de entrega de comida e limpeza é que a situação é muito diferente em Nova Iorque e Berlim. Uma das razões é que o custo de vida é muito maior em Nova Iorque em relação a Berlim, especialmente no que diz respeito ao aluguel, enquanto os salários ganhos por meio da entrega de comida e de plataformas de limpeza são relativamente baixos. Isso torna o trabalho de plataforma em Nova Iorque muito mais precário, o que significa que os entregadores e faxineiros dessa cidade costumam trabalhar por mais horas, estando expostos a maiores riscos, ao mesmo tempo em que é mais difícil satisfazer suas necessidades. Mais pessoas em Nova Iorque também dependem do trabalho de plataforma e geralmente trabalham de 30 a 40 horas por semana, se não mais, enquanto em Berlim as pessoas frequentemente têm outros projetos paralelos e trabalham menos horas. Outra conclusão é que o trabalho de plataforma é trabalho migrante e de minorias: a entrega de comida e a limpeza sempre foram serviços feitos por homens e mulheres não brancos, migrantes com poucas oportunidades, e isso não é diferente quando esse trabalho é governado por meio de um aplicativo por uma empresa de plataforma. Embora essas empresas formalizem, de certa maneira, essas econômicas historicamente informais, elas também perpetuam formas de informalização e informalidades existentes – como assimetria de informações, roubo de salário, falta de apoio e nenhum direito trabalhista, sabendo que os trabalhadores migrantes, especialmente os mais precários, não estarão em posição de protestar. Dado que as organizações trabalhistas das duas cidades até agora tiveram pouco sucesso ou interesse em organizar coletivamente os trabalhadores de plataforma, as empresas continuam a se safar. Uma coisa que venho fazendo é organizar fóruns e workshops com trabalhadores em Nova Iorque, como o Cornell’s Worker Institute, e Berlim, como a Fairwork Foundation, que reúnem diferentes grupos de stakeholders para, no mínimo, iniciar um diálogo entre trabalhadores, representantes de plataformas, advogados e formuladores de políticas, forjando potencialmente algumas mudanças locais, ainda que pequenas e provisórias. A questão é que muitos trabalhadores de plataforma me disseram que esse tipo de trabalho é uma grande oportunidade, mesmo que, de fato, não seja. Isso significa que, enquanto tudo estiver correndo bem, haverá um bom dinheiro. Mas quando algo ruim ou inesperado acontece, como um acidente ou lesão, um pneu furado ou uma bicicleta roubada, é quando os trabalhadores percebem que dependem somente deles próprios – e amigos ou familiares, quando disponíveis, pois espera-se que eles absorvam todo o risco de serem um “contratado independente”. E enquanto algumas pessoas apresentam uma grande capacidade de absorção desses riscos, outras são menos capazes de assumir, ou mesmo de entender, todas as responsabilidades.

DIGILABOUR: Você escreveu uma resenha do livro “Uberworked and Underpaid”, de Trebor Scholz, em que faz críticas muito interessantes ao cooperativismo de plataforma. Quais podem ser alternativas à economia do compartilhamento corporativa?

VAN DOORN: Acredito que qualquer alternativa à economia do compartilhamento corporativa ou à gig economy terá que surgir na intersecção entre iniciativas de base da sociedade civil e do apoio do Estado. Isso quer dizer que precisamos de ideias originais, experimentação financiada e, o mais importante, vontade política. Infelizmente, o último está faltando, mesmo em um momento em que os governos estão começando a levar a sério a regulamentação de grandes plataformas corporativas como o Facebook, além do Uber e o Airbnb. Acho que estamos nos aproximando de um ponto de virada. No entanto, a vontade política de reinar no domínio das plataformas corporativas só aumentará nos próximos anos. No entanto, uma coisa é limitar o poder das empresas de plataformas e outra é propor alternativas sustentáveis e equitativas. Aqui eu acho que o trabalho de K Sabeel Rahman é pertinente e inovador, especialmente sua ideia de tratar plataformas como serviços públicos. Mais uma vez, penso que qualquer alternativa viável às economias corporativas de “compartilhamento” terá que envolver as agências públicas, ou seja, o poder do Estado. Embora eu tenha plena consciência da cumplicidade histórica do Estado na perpetuação – e também na criação ativa – das desigualdades de gênero, classe e rala, bem como seu papel fundamental no fortalecimento da exploração e dominação capitalistas, também acredito que os Estados são as únicas formas institucionais poderosas o suficiente para se voltar contra as instituições emergentes do capitalismo de plataformas: empresas de plataformas e “metaplataformas”, como a Softbank. Tudo se resume, a meu ver, à vontade política, o que significa dizer que nós, como cidadãos, temos que levantar nossas vozes e agir para catalisar essa vontade de mudar. Quanto ao cooperativismo de plataforma, continuo a ser um “apoiador cético” dessa ideia e desse movimento, que espero que venha a florescer, mas receio não ser capaz de o fazer sem o apoio estrutural de instituições públicas que podem ser democraticamente responsabilizadas.

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