Nota alta, renda baixa: por que o trabalho por plataformas adora a gamificação

Sarah Mason

Motorista da Lyft, entregadora da DoorDash e doutoranda da University of California, Santa Cruz estudando o trabalho mediado por plataformas.

Texto publicado originalmente na Logic Magazine em janeiro de 2019.

Tradução de Sébastien Antoine (UFPE/UCLouvain)

A gamificação está transformando o trabalho. É um jogo que os trabalhadores não podem vencer.

Em maio de 2016, depois de meses sem encontrar um emprego tradicional, comecei a dirigir para a empresa Lyft. Fui atraída por um anúncio online que prometia aos novos motoristas na área de Los Angeles um “bônus de inscrição” de 500 dólares depois de completarem as suas primeiras 75 corridas. O cálculo foi simples: eu tinha um carro e precisava do dinheiro. Então eu cliquei no link, preenchi o formulário e quando solicitada, dirigi até o Pep Boys[1] mais próximo para uma inspeção de veículo. Recebi meus emblemas “flamingo-rosa” da Lyft quase imediatamente e, em poucos dias, estava na estrada.

Inicialmente, eu me dizia que este tipo de trabalho de bico (gig) era preferível ao trabalho de nove a cinco. Seria temporário, pensei eu. Além disso, eu precisava me matricular em uma aula de estatística e terminar minhas inscrições para a pós-graduação – tarefas que pareciam impossíveis enquanto trabalhava em um trabalho de escritório em tempo integral com uma hora de deslocamento. Mas dentro de meses após assumir esta forma de trabalho prontamente disponível, contudo estranhamente precário, eu era curiosamente absorvida por ele.

Todas as semanas, Lyft envia aos seus motoristas um “Resumo Semanal de Feedback” personalizado. Isto inclui comentários dos passageiros das corridas da semana anterior e uma recém-calculada avaliação do motorista. Também contém um gráfico de barras que mostra como a classificação atual do motorista “acumula-se” em relação às semanas anteriores, e menciona se eles foram “sinalizados” por limpeza, simpatia, navegação ou segurança. No início, aguardava ansiosamente os meus resumos; na sua maioria, foram um estímulo bem-vindo à minha autoestima. A minha classificação variou consistentemente entre 4,89 e 4,96 estrelas, e os comentários diziam coisas como: “Ótima motorista, atitude positiva” e “Obrigado por me levar ao aeroporto a tempo!” Havia também a ocasional crítica, tal como “Ela é estranha” ou apenas “Atitude”, mas no geral os comentários serviram como uma espécie de mecanismo de reforço positivo. Eu me sentia bem sabendo que estava ajudando as pessoas e que as pessoas estavam gostando de mim.

Mas uma certa semana, depois de ter completado o que me parecia como um milhão de viagens, abri o meu resumo de feedback para descobrir que a minha classificação tinha caída de 4,91 (“Incrível”) para 4,79 (“OK”), sem comentários. Atordoada, passei pelo meu histórico de viagens tentando lembrar de qualquer interação incomum ou passageiros insatisfeitos. Nada. O que aconteceu? O que é que eu fiz?

Senti-me mal do estômago.

Como as classificações dos motoristas são calculadas usando suas últimas 100 avaliações de passageiros, uma solução lógica é substituir as classificações antigas e ruins por novas – presumivelmente melhores – tão rápido quanto humanamente possível. E foi exatamente isso que eu fiz.

Durante as semanas seguintes, evitei deliberadamente abrir os meus resumos de feedback. Estoquei o meu veículo com garrafas de água, barrinhas de café da manhã e balinhas para inspirar os passageiros a alcançar aquela quinta estrela. Eu desenvolvi um hábito obsessivo de aspirar e passei a minha rotina de lava-jato de duas vezes por semana a cada dois dias. Eu experimentei com diferentes difusores de aroma e estações de rádio. Eu dirigia, dirigia e dirigia.


Administrando agressivamente a liberdade

O repertório de escolha, da liberdade e da autonomia saturam as discussões sobre aplicativos de motoristas. “As empresas de serviço sob demanda estão apontando o caminho para um futuro mais promissor, onde as pessoas têm mais liberdade para escolher quando e onde trabalhar”, escreveu Travis Kalanick, fundador e ex-CEO da Uber, em outubro de 2015. “Em termos simples”, continuou ele, “o futuro do trabalho passa pela independência e flexibilidade”.

Em certo sentido, Kalanick está certo. Ao contrário dos empregados de um local de trabalho espacialmente fixo (a fábrica, o escritório, o centro de distribuição), os motoristas de aplicativos são tecnicamente livres de escolher quando trabalham, onde trabalham e por quanto tempo. Eles são liberados dos ritmos restritivos do emprego convencional ou do trabalho por turnos. Mas essa aparente liberdade representa um desafio único à necessidade das plataformas de prestar um serviço fiável e “sob demanda” aos seus utilizadores – e por isso a liberdade do motorista tem de ser agressivamente, se bem que subtilmente, gerida. Uma das principais formas que estas empresas têm procurado fazer isso é através do uso da gamificação.

A gamificação é a “palavra da moda da Silicon Valley” observou recentemente o pesquisador da tecnologia PJ Rey. Simplesmente definida, a gamificação é o uso de elementos de jogo – pontuação, níveis, competição com outros, provas mensuráveis de realização, classificações e regras de jogo – em contextos externos ao jogo. Os jogos proporcionam uma experiência instantânea e visceral de sucesso e recompensa, e são cada vez mais utilizados no local de trabalho para promover o envolvimento emocional com o processo de trabalho, para aumentar o investimento psicológico dos trabalhadores na conclusão de tarefas que de outra forma não seriam inspiradoras, e para influenciar, ou “cutucar”, o comportamento dos trabalhadores. E foi o que fizeram o meu resumo semanal de feedback, as minhas avaliações e as outras características gamificadas do aplicativo da Lyft. A gamificação também contribui no redirecionamento do conflito, afastando-o do capital, à medida que os trabalhadores são consumidos com a tarefa mais urgente de vencer o jogo.

Há um conjunto crescente de evidências que sugerem que a gamificação das atividades das empresas tem efeitos quantificáveis e reais. Target, o gigante do varejo sediado nos EUA, relata que a gamificação do processo de finalização de venda nos caixas tem resultado em menores tempos de espera dos clientes e filas mais curtas. Durante a passagem das compras, a tela do caixa pisca na cor verde se os itens forem escaneados a um “ótimo ritmo”. Se o caixa for muito lento, a tela pisca em vermelho. As pontuações são registradas e os caixas devem manter uma classificação verde de 88%. Em comunidades online para funcionários da Target, os caixas comparam pontuações, compartilham técnicas e lamentam os obstáculos mais desafiadores do jogo.

Mas telas de caixas com código de cores é um tipo de gamificação padrão Nintendo de primeira geração. No mundo digitalmente mediado do transporte por aplicativo, onde a quase totalidade da atividade de uma pessoa é motivada e guiada pela tela – e onde tudo pode ser medido, registrado e analisado – há poucas limitações sobre o que pode ser gamificado.

“Making Out”

Em 1974, Michael Burawoy, estudante de doutorado em sociologia na Universidade de Chicago e autodeclarado marxista, começou a trabalhar como operador de máquinas diversas na divisão de motores da Allied Corporation, um grande fabricante de equipamentos agrícolas. Ele estava tentando responder à seguinte pergunta: por que os trabalhadores trabalham tão duro assim?

Nos tempos de Marx, a resposta a esta pergunta era simples: coerção. Os trabalhadores não tinham proteção e podiam ser demitidos à vontade por não cumprirem suas cotas. A capacidade de se obter um salário de subsistência estava diretamente ligada à quantidade de esforço que se aplicava no processo de trabalho. No entanto, no início do século XX, com a emergência das proteções laborais, a eliminação do sistema de remuneração por peça, o surgimento de sindicatos industriais fortes e uma rede de segurança social mais robusta, o poder coercivo dos empregadores enfraqueceu.

No entanto, os trabalhadores continuavam a trabalhar duro, observou Burawoy. Eles cooperavam com a aceleração e excediam as metas de produção. Eles assumiam tarefas extras e procuravam formas produtivas de usar seu tempo parado. Eles trabalhavam horas extras e fora do horário de trabalho. Eles se tornavam capachos. Depois de 10 meses na Allied, Burawoy concluiu que os trabalhadores consentiam de bom grado e até entusiasticamente a sua própria exploração. O que poderia explicar isto? Uma resposta, sugeriu Burawoy, era “o jogo”.

A história da gamificação não é clara. Ross Smith, da Microsoft, a rastreia até o antigo Egito, quando construtores de pirâmides organizavam trabalhadores em gangues que competiam por cerveja e pão, vendo quem poderia esculpir e transportar a maior quantidade de pedra. Em meados do século XX, o sociólogo industrial Donald Roy observou que os trabalhadores da fábrica jogavam uma série de jogos no trabalho como uma forma de “não enlouquecer” diante da monotonia. Alguns trabalhadores iriam gerar seus próprios sistemas de incentivo: quando montassem mil matrizes de aço, eles poderiam tomar um copo de água; se montassem dois mil, eles se recompensariam com uma pausa no banheiro.

Para Burawoy, “o jogo” descrevia a forma pela qual os trabalhadores manipulavam o processo de produção a fim de recolher várias recompensas materiais e imateriais. Quando os trabalhadores eram bem-sucedidos nessa manipulação, dizia-se que eles estavam “making out” (ver nota sobre a tradução na edição portuguesa de Burawoy). Tal como os níveis de um videogame, os operadores precisavam vencer uma série de desafios consecutivos a fim de “making out” e vencer o jogo.

No início de cada turno, os operadores encontravam seu primeiro desafio: assegurar a tarefa mais lucrativa por parte do “agente de programação”, a pessoa responsável por distribuir as tarefas diárias dos trabalhadores. O seu próximo desafio era uma viagem ao “berço” (crib) para encontrar o esquema do projeto e as ferramentas necessárias para realizar a operação. Se o responsável pelo berço demorasse a distribuir os esquemas, ferramentas e acessórios necessários, os operadores poderiam perder um tempo considerável que, caso contrário, poderia ser utilizado para realizar ou superar sua cota. (Burawoy ganhou a cooperação do atendente do berço ao presenteá-lo com um presunto de Natal). Após enfrentar os transportadores, responsáveis por trazer o estoque para a máquina, e os inspetores, responsáveis por fazer cumprir as especificações do esquema do projeto, o operador era finalmente deixado sozinho com sua máquina para lutar contra o relógio.

De acordo com Burawoy, a produção na Allied foi deliberadamente organizada pela direção para encorajar os trabalhadores a jogar o jogo e então “to make out”.Cotas foram estabelecidas e o pagamento de incentivos era dado àqueles que excedessem as metas de produção. Mas os trabalhadores também tentaram driblar o jogo, certificando-se de não ultrapassar consistentemente as metas estabelecidas pela gerência, para que esta não elevasse as metas.

Quando o trabalho tomava a forma de um jogo, observou Burawoy, algo interessante acontecia: a principal fonte de conflito dos trabalhadores já não era mais com o patrão. Em vez disso, as tensões foram dispersas entre os trabalhadores (o programador, os transportadores, os inspetores), entre os operadores e as suas máquinas, e entre os operadores e as suas próprias limitações físicas (a sua resistência, precisão de movimento, foco).

A batalha para vencer a cota também transformava um trabalho monótono e esmagador de alma em uma saída excitante para os trabalhadores exercer sua criatividade, velocidade e habilidade. Os trabalhadores atributavam noções de status e prestígio à sua produção, e o jogo apresentava-lhes uma série de escolhas ao longo do dia, dando-lhes uma sensação de relativa autonomia e controle. O jogo aproveitava do desejo de autodeterminação e auto expressão do trabalhador. Depois, dirigia esse desejo para a produção de mais valia para o seu empregador.

Como Marx observou nos Grundrisse, “não são os indivíduos que são libertados pela livre competição; é, muito mais, o capital que é libertado”.

Desafio aceito

Todos os domingos de manhã, recebo um “desafio” gerado algoritmicamente pela Lyft que é algo parecido com isto: “Complete 34 viagens entre as 5 da manhã de segunda-feira e as 5 da manhã de domingo para receber um bónus de 63 dólares”. Eu rolo a tela, preocupada com o valor decrescente dos meus bônus que antes andavam em torno de $100-$220 por semana, mas caíram agora para menos da metade. “Clique aqui para aceitar este desafio”. Eu toco na tela para aceitar.

Agora, sempre que eu logar no modo motorista, aparecerá um medidor de status mostrando meu progresso: apenas mais vinte e uma corridas antes de eu atingir meu primeiro bônus. Lyft não revela como seus desafios semanais de corrida são gerados, mas o valor parece variar de acordo com a demanda antecipada e o comportamento do motorista. Quanto maior for a demanda antecipada, maior será o valor do meu bônus. Quanto mais eu atingir minhas metas de bônus, ou cotas de corrida, mais altas serão as metas subsequentes. Às vezes, se já faz algum tempo desde a última vez que me conectei, me será oferecido um bônus estranhamente lucrativo, chegando até os 100 dólares, embora isso esteja acontecendo cada vez menos ultimamente.

Cientistas do comportamento e designers de videogames estão bem cientes que as tarefas são susceptíveis de serem concluídas mais rapidamente e com maior entusiasmo se se pode visualizá-los como parte de uma progressão rumo a um objetivo maior e pré-estabelecido. Tal como a interface dos jogos de tiro em primeira pessoa, o medidor de status da Lyft está sempre presente, mostrando-lhe sempre qual é a sua taxa de aceitação, quantas viagens completou, até onde tem de ir para atingir o seu objetivo.

Além de seduzir os motoristas a aparecerem quando e onde a demanda surge, um dos principais objetivos desta gamificação é a permanência do trabalhador. De acordo com Uber, 50% dos motoristas deixam de usar o aplicativo nos primeiros dois meses, e um relatório recente do Instituto de Estudos de Transportes da Universidade da Califórnia em Davis sugere que apenas 4% dos motoristas de aplicativo sobrevivem a seu primeiro ano.

A permanência é um problema em grande parte porque o modelo econômico do transporte por aplicativo é muito ruim. Os pesquisadores têm lutado para estabelecer exatamente quanto dinheiro os motoristas ganham, mas com o lançamento de dois relatórios recentes, um do Instituto de Política Econômica e outro do MIT, parece estar surgindo um consenso sobre o salário dos motoristas: os motoristas ganham, em média, entre $9,21 e $10,87 por hora. O que estes resultados confirmam é o que muitos de nós no jogo já sabemos: na maioria das grandes cidades dos EUA, os motoristas estão recebendo salários que ficam abaixo dos requisitos locais de salário-mínimo. De fato, de acordo com um slideshow interno obtido pelo New York Times, a Uber identifica a McDonald’s como sua maior competição na atração de novos motoristas. Quando comecei a dirigir pela Lyft, fiz o mesmo cálculo que a maioria dos motoristas fazem: é melhor ganhar 9 dólares por hora do que não ganhar nada.

Antes da Lyft lançar os desafios semanais, havia o “Power Driver Bonus” (PDB), um desafio semanal que exigia que os motoristas completassem um número definido de corridas regulares. Eu trabalhava às vezes mais de cinquenta horas por semana tentando assegurar meu PDB, que muitas vezes significava dirigir em condições inseguras, em horários irregulares e aceitando quase todos os pedidos de corrida, incluindo aqueles que pareciam potencialmente perigosos (estou pensando mais especificamente em um passageiro extremamente bêbado e visivelmente agitado no final da noite).

Claro que isto era em grande parte motivado por uma real necessidade de um aumento dos meus ganhos semanais. Mas, além de uma esperança de que eu transcenderia de alguma forma o péssimo modelo econômico da Lyft, a intensidade com que eu perseguia meus PDBs também foi o resultado do que Burawoy observou há quatro décadas: um desejo bizarro de vencer o jogo.

Caça-níqueis sobre rodas

Tal como os salários na Allied Corp., os rendimentos por quilometro percorrido pelos motoristas são complementados por uma série de recompensas, tanto materiais como imateriais. Os motoristas Uber podem ganhar “Insígnias de Realização” por completarem um certo número de viagens cinco estrelas e “Insígnias de Serviço Excelente” por deixarem os clientes satisfeitos. O programa “Accelerate Rewards” da Lyft encoraja os motoristas a “subir de nível” ao completar um certo número de viagens por mês, a fim de desbloquear recompensas especiais como descontos de combustível na Shell (nível de ouro) e assistência gratuita na estrada (nível de platina).

Além de oferecer insígnias sem sentido e uma economia escassa no posto de gasolina, as empresas de transporte por aplicativo também adoptaram alguns dos mesmos elementos de design utilizados pelas empresas de jogo para promover um comportamento viciante entre os utilizadores das máquinas caça-níqueis. Uma das coisas que a antropóloga e professora de estudos de mídia da NYU Natasha Dow Schüll descobriu durante um estudo de uma década sobre os caça-níqueis em Las Vegas é que os cassinos utilizam máquinas caça-níqueis em rede que lhes permitem pesquisar, rastrear e analisar o comportamento de cada jogador em tempo real – tal como os aplicativos de motorista o fazem. Isto significa que os casinos podem “triangular os dados de qualquer jogador com os seus dados demográficos, criando um perfil que pode ser usado para personalizar as ofertas de jogo e as solicitações de marketing especificamente para ele”. Assim como estas ofertas de jogo personalizadas, a Lyft me diz que o meu desafio semanal foi “personalizado só para você!”.

Tristan Harris, ex “especialista em ética de design” da Google, também descreveu como o mecanismo de “rolar para atualizar” usado na maioria dos feeds de mídia social imita a arquitetura inteligente de uma máquina caça-níqueis: os usuários nunca sabem quando vão usufruir das gratificações – uma dúzia de novos likes ou retweets – mas eles sabem que as gratificações eventualmente virão. Esta imprevisibilidade é viciante: os psicólogos comportamentais já compreenderam há muito tempo que o jogo utiliza escalas de reforço variáveis – intervalos imprevisíveis de incerteza, antecipação e feedback – para condicionar os jogadores a jogarem apenas mais uma rodada.

Estamos apenas começando a descobrir até que ponto esses programas de reforço são incorporados em aplicações de motorista. Mas um exemplo é o horário nobre ou a subida de preços. A frase “chasing the pink” (a cor da Lyft) é usada em fóruns online por motoristas da Lyft para se referir à tendência de dirigir em direção de áreas de “horário nobre”, denotada por mapas de calor cor-de-rosa no aplicativo, o que significa um aumento das tarifas em locais precisos. Isto é irracional porque a probabilidade de apanhar uma boa tarifa em horário nobre é pequena e o horário nobre é extremamente imprevisível. O rosa aparece e desaparece, deslocando-se de um local para o outro, por vezes em questão de minutos. A Lyft e a Uber têm de soltar somente o suficiente destes períodos de maior remuneração para direcionar as pessoas a dirigirem para áreas onde preveem que serão necessários motoristas. E ocasionalmente – cereja no bolo – funciona: depois do desfile do Rose Bowl no ano passado, fiz em 40 minutos mais da metade do que costumo fazer num dia inteiro de corridas sem parar.

Não é raro ouvir motoristas de aplicativo comparar até mesmo o ato mundano de operar seus veículos à experiência imersiva e viciante de jogar um videogame ou um caça-níqueis. Em um artigo publicado pelo Financial Times, o motorista de longa data Herb Croakley o descreveu perfeitamente:

“Chega a um ponto em que a aplicação toma de certa forma conta das suas funções motoras. Torna-se quase como uma experiência hipnótica. Você pode falar com os motoristas e vai ouvi-los dizer coisas como, eu só dirigi um monte de Uber Juntos por duas horas, provavelmente peguei 30-40 pessoas e não tenho ideia para onde fui. Nesse estado, eles estão literalmente apenas ouvindo os sons [dos aplicativos do motorista]. Parar quando eles dizem parar, pegar quando eles dizem pegar, virar quando eles dizem virar. Você entra no ritmo disso, e você começa a se sentir quase como um androide”.

Uma paralisação do trabalho à moda antiga

Então, quem estabelece as regras para todos estes jogos?

“Ok, então vamos organizar isto. Às 1:50 todos que quiserem participar, desligue seu aplicativo para que o horário nobre apareça…”

São meia noite e trinta da sexta-feira e o “Lyft Drivers Lounge” – um grupo fechado no Facebook para motoristas ativos – está dividido. O debate começou, como acontece com muitos, com uma asserção sobre o algoritmo. O “algoritmo” refere-se ao sistema opaco e muitas vezes imprevisível de gestão automatizada e guiada por dados empregado pelas empresas de transporte por aplicativo para despachar motoristas, juntar passageiros em Juntos (Uber) ou Lines (Lyft), e gerar tarifas de “surtos” ou “horário nobre”, também conhecido como “preço dinâmico”.

O algoritmo está no coração do jogo do transporte por aplicativo, bem como na cerne da coerção que o jogo oculta. No seu texto fundador “Algorithmic Labor and Information Asymmetries: A Case Study of Uber’s Drivers”, Alex Rosenblat and Luke Stark escreveram: “O papel autoproclamado de Uber como intermediário conectivo desmente as importantes estruturas e hierarquias de emprego que emergem através do design do seu software e da sua interface”. “A gestão algorítmica” é o termo usado por Rosenblat e Stark para descrever os mecanismos pelos quais os condutores da Uber e da Lyft são orientados. Para ser claro, não há um singular algoritmo. Ao invés disso, há uma série de algoritmos que operam e interagem entre si a qualquer momento. Em conjunto, eles produzem um sistema contínuo de tomada de decisão automática que requer muito pouca intervenção humana.

Para muitas plataformas sob demanda, a gestão algorítmica substituiu completamente as funções de tomada de decisão anteriormente ocupadas por supervisores de turno, capatazes e gerentes de nível médio a superior. A Uber na verdade se refere a seus algoritmos como “motores de decisão”. Estes “motores de decisão” rastreiam, registram e esmagam milhões de métricas todos os dias, desde a frequência de viagem até a severidade com a qual cada motorista freia. Em seguida, ele usa estas análises para fornecer informações gamificadas perfeitamente combinadas com os perfis de dados dos motoristas.

Como a lógica do algoritmo é em grande parte desconhecida e em constante mudança, os motoristas são deixados a especular sobre o que ele está fazendo e por quê. Tal especulação é um tópico regular de conversa em fóruns online, onde os motoristas postam screenshots de pedidos de corrida sem sentido e comparam oportunidades de bônus cada vez mais fracas, geradas por algoritmos. Não é raro os motoristas acusarem as empresas de transporte por aplicativo de programar seus algoritmos para favorecer os interesses da companhia. Para resolver este alegado favoritismo, os motoristas rotineiramente fazem hipóteses e experimentam formas de manipular ou “driblar” o sistema de volta.

Quando os bares estão se esvaziando após os últimos pedidos às 2 da manhã, a demanda dispara. Os motoristas têm uma maior probabilidade de conseguir tarifas de “surto” ou de “horário nobre”. Não há garantias, mas é por isso que estamos todos lá fora. Para aumentar a perspectiva de aumento dos preços, os motoristas em fóruns online propõem regularmente “log-offs” deliberados, coordenados e em massa, com a expectativa de que uma queda repentina nos motoristas disponíveis “enganará” o algoritmo para gerar maiores picos. Nunca vi nenhum deles funcionar, mas os autores de um artigo recentemente publicado dizem que os log-offs em massa são ocasionalmente bem-sucedidos.

Visto por outro ângulo, no entanto, os log-offs em massa podem ser entendidos como paralização de trabalho à moda antiga. A cessação temporária e propositada do trabalho como forma de protesto é o fundamento da greve, e continua a ser a arma mais afiada que os trabalhadores têm para combater a exploração. Mas a capacidade de sair em massa não tem assumido uma função particularmente emancipatória. Os insights de Burawoy podem nos indicar por quê.

Driblar o jogo, observou Burawoy, permitia aos trabalhadores desempenhar um certo controle limitado sobre o processo laboral, e “make out” como resultado. Por sua vez, essa vitória tinha o efeito de reforçar o compromisso dos jogadores em jogar, bem como o seu consentimento para as regras do jogo. Quando os jogadores não tinham sucesso, sua insatisfação era dirigida aos obstáculos do jogo, não à classe capitalista que estabelece as regras. O antagonismo intrínseco entre o jogador e o jogo substituía, na mente do trabalhador, o antagonismo mais profundo entre patrão e trabalhador. Aprender a operar inteligentemente dentro dos parâmetros do jogo torna-se a única opção imaginável. E agora há outra camada interposta entre o trabalho e o capital: o algoritmo.

Regras do jogo

Depois de semanas a conduzir como uma maníaca para restaurar a minha classificação de condutora superior à média, consegui fazê-lo voltar a uma classificação de 4,93. Embora a sensação tenha sido ótima, é quase vergonhoso e espantoso admitir que a classificação, desde que fique acima de 4,6, não tem nenhuma influência real em nada além do seu próprio senso de autoestima. Você não recebe um bônus semanal por ser uma motorista altamente avaliada. A sua taxa de pagamento não aumenta por ser uma condutora altamente avaliada. Na verdade, eu estava perdendo dinheiro tentando lisonjear os clientes com doces e manter meu carro escrupulosamente limpo. E ainda assim, eu queria ser uma motorista de alta classificação.

E é isto que há de tão brilhante e horrível na gamificação da Lyft e da Uber: aproveita do nosso desejo de ser útil, de ser apreciado, de ser bom. Nas semanas em que sou bem classificada, estou mais motivada para conduzir. Nas semanas em que sou mal classificada, estou mais motivada para conduzir. Isto funciona comigo, embora eu esteja ciente disso.

“É ao constituir nossas vidas como uma série de jogos, como um conjunto de escolhas limitadas”, escreve Burawoy, “que as relações capitalistas não apenas se tornam objetos de consentimento, mas são tomadas como dadas e imutáveis. Não decidimos coletivamente quais serão as regras do jogo; ao contrário, somos obrigados a jogar o jogo, e seguimos a defender as regras”.

Até à data, já fiz mais de 2.200 corridas.


[1] Rede de lojas de autopeças e serviços mecânicos para automóveis nos Estados Unidos.

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