Plataformização da Produção Cultural: entrevista com Thomas Poell

Thomas Poell, professor da Universiteit van Amsterdam, é co-autor do livro The Platform Society (com José van Dijck e Martijn de Waal) e tem pesquisado os impactos da plataformização na produção cultural. Lançará em 2020 pela Polity Press o livro Platforms, Power and Cultural Production, escrito em co-autoria com David Nieborg Brooke Erin Duffy.

Em entrevista à DigiLabour, Poell aborda YouTube, aspectos de dataficação, mundo do trabalho e o papel do jornalismo independente em meio à plataformização da sociedade:

DIGILABOUR: Como a plataformização tem afetado a produção cultural, considerando suas variadas dimensões?

THOMAS POELL: Na minha perspectiva, a plataformização das indústrias culturais envolve mudanças nas relações institucionais e nas práticas culturais emergentes. Vamos pegar o YouTube e a economia dos criadores omo exemplo. Do ponto de vista institucional, podemos observar como o YouTube constitui um mercado multilateral, o que permite que todo produtor de conteúdo potencialmente se conecte a milhões de usuários finais. E quando há um grande número de visualizações e assinantes, os vídeos podem ser monetizados por meio do programa de parceiros do YouTube, além de outros instrumentos de monetização. Essas transações econômicas são, por sua vez, facilitadas pela infraestrutura tecnológica do YouTube, que permite que criadores e anunciantes otimizem conteúdos e serviços e segmentem audiências específicas. Por fim, para que tudo isso funcione sem problemas, os operadores do YouTube controlam as interações na plataforma, desenvolvendo algoritmos de recomendação personalizados, termos de serviço, políticas de publicidade, diretrizes para criadores e procedimentos de moderação. Portanto, do ponto de vista institucional, a empresa da plataforma parece estar muito no controle e a plataformização é entendida principalmente como um processo de cima para baixo. Do ponto de vista das práticas culturais emergentes, no entanto, como ilustram as várias Adpocalypses, a plataforma é um processo muito mais confuso, conflituoso e também de baixo para cima. Diferentes stakeholders lutam frequentemente entre si para defender ou promover seus interesses e a empresa da plataforma é, então, forçada a adaptar suas infraestruturas e seus regulamentos para resolver conflitos. Assombrado por conteúdos extremistas e fugindo de anunciantes, o YouTube, como muitas outras plataformas, ao longo do tempo se tornou muito mais agressivo no controle dos conteúdos e da monetização. Por sua vez, isso desencadeou uma série de respostas e estratégias por parte dos criadores, que afetam o desenvolvimento da plataforma. As mudanças repentinas nas políticas de publicidade e nos programas de monetização mostram a precariedade do trabalho dependente da plataforma, mas também isso estimula os criadores a desenvolverem estratégias alternativas de distribuição e receita. Essas interações entre os diferentes stakeholders também são refletidas nas práticas criativas. Os criadores navegam em um complexo equilíbrio entre autoexpressão, interesses da audiência, necessidades dos anunciantes e governança da plataforma. A organização do equilíbrio entre essas diferentes forças afeta profundamente a natureza do conteúdo cultural. E isso se relaciona a dimensões cruciais da cidadania, moldando processos públicos de identificação, construção e representação.

DIGILABOUR: Você e Van Dijck consideram que “o jornalismo independente precisa refletir não apenas sua independência em relação a forças comerciais e políticas, mas também em relação às plataformas sociais e seus usuários”. Afinal, então, o que é falar em jornalismo independente hoje?

POELL: A alegação de que o jornalismo precisa proteger sua independência de plataformas e seus usuários aponta para o papel cada vez mais central dos dados das plataformas nos processos jornalísticos contemporâneos. As métricas dos usuários tornaram-se vitais nesse processo, não apenas porque elas são circuladas e influenciadas pelas plataformas, mas também porque as empresas jornalísticas organizam ativamente sua produção e distribuição em torno dos dados das plataformas. Da mesma forma, os modelos de negócios no jornalismo mudam porque o surgimento de plataformas leva a uma reorganização fundamental das relações econômicas em torno de plataformas como mercados multilaterais. Os mecanismos de plataforma transformam as organizações jornalísticas à medida que são forçadas a desenvolver novas estratégias de monetização em rede. À luz dessas observações, argumentamos que o jornalismo independente hoje é uma forma de jornalismo que não é primariamente informada pelos dados das plataformas ou pelos interesses comerciais e políticos, mas que gira em torno da tomada de decisões editoriais profissionais, informada por valores públicos chave. Para isso, é vital que as organizações jornalísticas encontrem fontes de receita on-line que não dependam principalmente de publicidade. Como a publicidade digital é dominada por plataformas, qualquer organização jornalística ou outro tipo de produtor cultural que dependa de publicidade precisará adaptar seu conteúdo às arquiteturas das plataformas e aos interesses em constante mudança dos usuários, conforme indicado pelos dados das plataformas. Assim, o difícil desafio é encontrar formas “alternativas” de receita. Atualmente, duas estratégias alternativas importantes de receita parecem viáveis ​​para as organizações jornalísticas. O primeiro são as assinaturas on-line, que funcionam especialmente bem em combinação com paywalls “rígidos”, que limitam a quantidade de conteúdo que os usuários podem ler ou visualizar gratuitamente. O New York Times foi especialmente bem-sucedido na busca por essa estratégia. A segunda estratégia está focada em solicitar doações de usuários ou fundações. Nesse cenário, o jornalismo independente é apresentado como um bem democrático crucial, que requer apoio público. O Guardian e o ProPublica são exemplos proeminentes dessas estratégias. Embora ambas as estratégias garantam às organizações jornalísticas uma independência econômica em relação às plataformas, o desafio ainda é alcançar o público on-line, o que, de alguma forma, necessita do envolvimento por meio das plataformas. Além disso, deve-se observar que uma estratégia só funciona para as organizações jornalísticas quando os usuários percebem o jornalismo como algo que agrega valor e, portanto, estão dispostos a pagar ou doar.

DIGILABOUR: Como pensar a agência em relação ao processo de dataficação?

POELL: Embora a dataficação – a transformação em dados de muitos aspectos do mundo que nunca foram quantificados antes – possa ser entendida como uma estratégia tecno-comercial implantada pelos proprietários das plataformas, ela também pode ser considerada uma prática dos usuários. As plataformas coletam e analisam sistematicamente os dados dos usuários. Eles também circulam constantemente esses dados por meio de APIs para terceiros e por meio de interfaces de usuário, permitindo rastrear as atividades de amigos e colegas, acompanhar eventos públicos e participar da economia digital. Por fim, o impacto social da dataficação depende de como usuários finais, organizações e instituições integram os dados das plataformas em suas rotinas e práticas cotidianas. Os jornais e sites de notícias organizam a seleção e a produção de notícias em torno de trending topics ou os julgamentos editoriais independentes continuam sendo o princípio norteador? As plataformas educacionais promovem a dataficação em todas as etapas do processo de aprendizagem ou esse processo é controlado principalmente por professores e escolas? E como os governos das cidades estão utilizando a dataficação para o desenvolvimento de aplicativos para cidades inteligentes? Eles usam dados de tráfego de plataformas comerciais como Uber ou coletam seus próprios dados? A resposta a essas perguntas determina como os valores públicos são minados ou percebidos em um ambiente de plataformas.

DIGILABOUR: Como aparece a questão do trabalho em sua pesquisa sobre plataformização?

POELL: Eu olhei especialmente para essa questão no contexto das indústrias culturais. A plataformização parece envolver uma transformação geral no trabalho cultural, desde players mais formalizados da indústria cultural – organizações jornalísticas, redes de televisão, gravadoras, empresas de games – até redes mais informais de produção e distribuição organizadas em torno de plataformas. Nesse processo, o trabalho está claramente se tornando mais individualizado e precário. No entanto, quando estudamos indústrias e práticas de trabalho específicas com mais detalhes, precisamos qualificar essas observações gerais. Na maioria dos setores culturais, os operadores do setor ainda estão vivos e agitados, ocupados em se adaptar ao ambiente das plataformas. Simultaneamente, podemos ver uma formalização das práticas trabalhistas on-line, pois as empresas de plataformas estão cada vez mais desenvolvendo recursos para apoiar e moldar a produção cultural. Surgiu uma indústria inteira de intermediários de dados e agências de talentos para orientar os trabalhadores culturais na produção, distribuição e monetização de conteúdos. Assim, em vez de uma mudança clara rumo a formas de trabalho informais baseadas em plataformas, podemos ver configurações híbridas de práticas de trabalho informais, institucionalizadas e emergentes em plataformas e empresas do setor. A crescente literatura sobre plataformas e trabalho pode nos ajudar a examinar essas configurações. Esta literatura mostra que os trabalhadores culturais experimentam uma série de tensões em relação às plataformas em termos de suas práticas de trabalho.

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