Raça e classe no trabalho digital em perspectiva não eurocêntrica: entrevista com Sareeta Amrute

Sareeta Amrute é professora de Antropologia da University of Washington e diretora de pesquisa do Instituto Data & Society. Pesquisa implicações do capitalismo nas formas de trabalhar, especialmente como ocorrem reapropriações de raça e classe na chamada “nova economia”, buscando mostrar as materialidades do trabalho em uma economia chamada por muitos de “imaterial”. Ela é autora do premiado livro Encoding Race, Encoding Class: Indian IT Workers in Berlin, sobre o trabalho de programadores indianos entre aspirações de classe média e questões de raça e migração.

Amrute conversou com a gente sobre conceitos e dados de sua pesquisa, relações entre raça, gênero, classe e geografia e perspectivas descoloniais para compreender o trabalho digital.

DIGILABOUR: Como relacionar raça, classe, gênero e geografia para compreender o trabalho digital?

SAREETA AMRUTE: A geografia é uma consequência das práticas materiais. Por muito tempo, dizia-se que o “digital” era a mesma coisa que “sem espaço” ou “sem lugar” e não se mencionava questões de gênero e raça. É mais preciso dizer que o digital costura lugares e que o digital significa algo que é construído e se move pelo espaço. Em outras palavras, o trabalho digital, as linhas de programação, os tipos de vigilância, obtêm propriedades, assumem formas sociais, e alcançam um status legal à medida que aterrissam em localizações específicas e se desdobram em histórias particulares de raça, gênero, idade, entre outros. Ao mesmo tempo, essas categorias muito específicas são constituídas por meio de seus vários emaranhados com processos e produtos digitais. O “digital” aqui significa as tecnologias que tratam principalmente da coleta de dados juntamente com aquelas que medeiam relações humanas, incluindo relações de trabalho, por meio de telas e especialmente tomada de decisão por meio de algoritmos. Uma questão adicional à história é que, enquanto essa especificidade de lugares e categorias está sendo produzida, as tecnologias digitais e as economias políticas que as produzem se apresentam como naturais, neutras e iguais para todas. Grande parte dessa ideologia global em relação ao digital pode ser vista nos termos usados para descrever as próprias relações sociais: usuário, plataforma, rede, seguidor, moderador, em vez de empregador, trabalhador, população, formação política, ideologia, infraestrutura ou relações de produção. A tarefa de análise é, então, dobrada. É preciso, ao mesmo tempo, descobrir como mutuamente se constituem trabalho digital e raça, gênero e geografia, e compreender quando isso é discutido como uma batalha política, social e econômica, e quando é descrito como algo inevitável para entender o que essa descrição sobre inevitabilidade produz nesses mundos.

DIGILABOUR: Ao longo do seu livro, você fala em corporalidade, soberania e “glitch” como um olhar para o trabalho digital.

AMRUTE: Sim, corporalidade, soberania e problemas são três caminhos para falar sobre transformação a partir de um recente trabalho meu sobre ética e trabalho digital. Nos Estados Unidos e na Europa, a ética nas empresas de tecnologia é um grande assunto no momento. No entanto, a maior parte desses trabalhos trata a ética do ponto de vista de uma lista de verificação que os CEOs e outras pessoas na liderança de empresas podem ou não fazer. Uma ética da tecnologia do ponto de vista dos trabalhadores, no entanto, deve começar pelas condições materiais de seu trabalho. Penso em casos que vão além da lista de verificação para mostrar como os corpos são construídos no local de trabalho e o seu potencial para uma ação, ou até mesmo liberação, transformadora, que resulta da falta de adequação entre os ambientes de trabalho e os corpos (com diferenças de raça e gênero, por exemplo). Penso também no trabalho digital como um local onde a soberania é entendida como o modo com que os trabalhadores digitais são distribuídos diferencialmente ao redor do globo como corpos protegidos ou desprotegidos. Uma cautela é necessária: essa não é exatamente uma história sobre aumento de justiça. Às vezes, uma falta de adequação que é percebida pode tornar esses locais de trabalho um lugar para o estabelecimento de uma ideologia conservadora. Pode ser uma maneira de decretar uma soberania e decidir que outros órgãos que foram historicamente excluídos do trabalho de colarinho branco não cabem no escritório. Enfim, vejo a noção de glitch como uma falha em um programa que também pode ser celebrada e transformada como uma maneira de fomentar uma crítica ao capitalismo. Em conjunto, essas três perspectivas de corporalidade, soberania e glitch são maneiras de falar, a partir da teoria feminista do afeto, em sintonia, que é uma forma de aflorar a solidariedade entre trabalhadores que pode surgir no trabalho digital.

DIGILABOUR: Quais são as posições contraditórias dos trabalhadores indianos de TI que moram em Berlin?

AMRUTE: Para os trabalhadores de TI indianos, tanto no Vale do Silício quanto em Berlin, suas posições são dobradas. Por um lado, eles fazem parte de uma elite global de classe média. Por outro lado, fazem parte de uma política de migração volátil e em mudança que, muitas vezes, os enquadra como “ladrões de emprego”. Quando adicionamos a isso as restrições à mobilidade que os vistos temporários impõem a esses programadores, eles se tornam sujeitos que beneficiam uma indústria global de tecnologia, oferecendo mão de obra mais barata em trabalhos menos fascinantes, como softwares de depuração, que podem tomar muitas horas. Ao mesmo tempo, eles também são membros da classe média indiana.

DIGILABOUR: Como os trabalhadores que você pesquisou reinventam maneiras de viver e trabalhar no neoliberalismo?

AMRUTE: Uma das coisas mais surpreendentes que descobri durante o meu trabalho de campo foi que esses trabalhadores da área de tecnologia que são sempre descritos como entusiastas da tecnologia que preferem trabalhar longas horas e viver para a programação, na verdade, têm uma ética mais antitrabalho do que pró-trabalho. Ou seja, eles desenvolvem uma crítica das condições de seu trabalho, assumindo, muitas vezes, as formas de piadas, comentários e discussões profundas sobre as condições de trabalho e as estratégias para terem lazer e descansarem para o dia seguinte de trabalho. Esse é um tipo de movimento de vida lenta (slow life), embora não o chamem assim. Essas estratégias, que eu descrevo como eros ou erótico, não correspondem a um movimento organizado contra o neoliberalismo como forma de austeridade estatal, mas apontam um caminho para destruir o neoliberalismo como uma ideologia do empreendedorismo individualizado e do auto aperfeiçoamento sem sim. Eles fazem isso dando primazia ao prazer da vida cotidiana em detrimento do uso do tempo livre para melhoria do eu (self).

DIGILABOUR: Como pensar em alternativas ao trabalho digital de um ponto de vista descolonial e a partir do Sul Global?

AMRUTE: A questão descolonial é um enfoque um tanto comprometido pela maneira como foi adotado por instituições como as universidades como se fosse uma metáfora e não como um movimento vinculado à redistribuição de propriedades. Da mesma maneira, o Sul Global é também frequentemente entendido como uma posição geográfica e não como uma relação. A partir disso, com essas advertências em mente, os projetos descoloniais devem desarranjar as formas hegemônicas de conhecer e construir mundos, na formulação de Yarimar Bonilla e Jonathan Rosa. Para isso, precisamos levar o conhecimento produzido por pontos de vista corporificados para nossas conversas sobre dados e trabalho digital. Com muita frequência, supõe-se que, se entendemos o que está acontecendo com o trabalho digital nos Estados Unidos e na Europa, o restante irá acompanha-los, e que tudo é explicável a partir desse ponto de vista. Porém, essa posição não leva em conta os efeitos do trabalho digital fora da Europa e dos Estados Unidos e ignora a origem dessas soluções. É importante dizer que não concebemos o Sul Global como uma fonte de inovação a ser extraída para o Norte, ou mesmo a partir da retórica do desenvolvimento em que alguns (por exemplo, o “Dia Internacional da Menina”, da ONU) são solicitados a assumir a responsabilidade de salvar o resto de nós. Estou pensando na construção de um movimento. Para mim, a descolonização talvez seja melhor encapsulada em um díptico do artista Kent Monkman, em que ele revisita as histórias da Revolução Americana e a chegada dos europeus na Ilha da Tartaruga. A descolonização será diferente em comunidades distintas. Mas quais histórias podem ser contadas? Quais modelos de trabalho e organização social podem ser revelados se nos recusarmos a nos prender a “terras de ninguém” e mitos de conquista? Essas são questões de descolonização e, como sempre me lembra meu colega Rigoberto Lara Guzmán, que trabalha comigo no projeto #unsettle, projeto de pesquisa sobre tecnologias descolonizadoras: as formas de organização social são tecnologias. As alternativas ao trabalho digital a partir dessas posições teriam que perguntar: quais histórias, conexões e geografias essas perspectivas podem possibilitar?

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