Imaginar plataformas alternativas: entrevista com Nick Srnicek

Nick Srnicek, professor de economia digital no King’s College, é um dos teóricos relacionados ao aceleracionismo. Junto com Alex Williams, seu companheiro de manifesto aceleracionista, publicou Inventing the Future: postcapitalism and a world without work.

No Brasil, Srnicek é mais famoso pelo livro Platform Capitalism, publicado no fim de 2016. Na obra, trata das lógicas de extração de valor nas plataformas – em seus diversos tipos – e argumenta por uma coletivização das plataformas.

Em 2020, sairá seu novo livro, com Helen Hester, chamado After Work: the politics of free time, em que tratam de automatização do trabalho doméstico e suas implicações para questões de gênero, em direção a um mundo “pós-trabalho”.

Além disso, em setembro deste ano, Srnicek publicou um relatório sobre criação e captura de valor na economia digital, com especial atenção para os países em desenvolvimento.

Em entrevista à DigiLabour, Nick Srnicek fala sobre mudanças na economia digital, inclusive em sua tipologia de plataformas, coletivização das plataformas e seu novo livro.

 

DIGILABOUR: O livro Platform Capitalism tornou-se uma referência e a expressão ficou na moda. De lá para cá, quais mudanças aconteceram no cenário e como isso tem afetado seu diagnóstico?

NICK SRNICEK: Houve algumas mudanças significativas no meu pensamento desde que escrevi o livro. Em primeiro lugar, acho que os principais tipos de plataforma foram reduzidos para três: plataformas de publicidade, plataformas de nuvem – incluindo o que eu chamei de plataformas industriais – e plataformas lean. As de publicidade estão atingindo seus limites de mercado, com empresas como Facebook e Google dominando o mercado (anglófono) de publicidade digital. As plataformas lean têm enfrentado lutas significativas – o preço das ações da Uber tem sofrido impactos expressivos desde sua abertura de capital e outras empresas chamadas “unicórnios” estão cada vez mais cautelosas em enfrentar o escrutínio do mercado de ações. As plataformas de nuvem, por outro lado, têm crescido em tamanho e poder aos trancos e barrancos. A Amazon deixou de ser uma empresa de e-commerce e agora se tornou, de fato, uma empresa de nuvem. A Microsoft ressuscitou dos mortos por meio de sua mudança para a computação em nuvem. E o Google está cada vez mais concentrando seus esforços no desenvolvimento de seu braço envolvendo a nuvem. A fusão com as plataformas de nuvem é o modelo de “inteligência artificial como serviço”, com várias empresas capazes de oferecer serviços corporativos de aprendizado de máquina (machine learning) em escala global. Em nível global, há somente um pequeno número de empresas, que estão cada vez mais poderosas, capazes de fazer isso: Amazon, Google, Microsoft, Alibaba e, sem dúvida, algumas outras. Eu acho que a dinâmica monopolizadora de plataformas está se tornando ainda mais intensa nessas empresas.

Uma segunda grande mudança é que tenho tentado estender minha análise além do foco local. Em outras palavras, o que acontece – e o que é diferente – quando essas plataformas surgem além de suas fronteiras (geralmente americanas)? Eu acho que há uma série de fenômenos notáveis que vêm à tona quando você adota uma perspectiva internacional. Em primeiro lugar, o significado dos acordos comerciais para essas empresas. Em todo o mundo, os últimos acordos comerciais tem incluído seções novas sobre o fluxo livre de dados – e isso significa que, em um mundo tecnológico centrado nos Estados Unidos, o fluxo livre de dados realmente será para os Estados Unidos. As maiores plataformas estão pressionando para que essas ideias sejam incluídas nos acordos comerciais e estão resistindo aos esforços envolvidos na localização de dados (segundo a qual há restrições no fluxo de dados através das fronteiras). Efetivamente, o fluxo livre de dados é um elemento essencial (embora não indispensável) das operações internacionais dessas empresas.

O segundo ponto importante está relacionado a isso: muitas dessas empresas estão oferecendo serviços e/ou tecnologias baratas (ou mesmo gratuitas) aos países em desenvolvimento em troca de seus dados. O caso mais claro disso pode ser o da empresa chinesa de inteligência artificial que forneceu tecnologia de reconhecimento facial ao Zimbábue em troca do acesso aos dados que o sistema de vigilância coleta. Mas ideias semelhantes mostram os esforços do Facebook e do Google para fornecer internet “gratuita” ao mundo em desenvolvimento, e há uma variedade de outros mecanismos pelos quais isso também está acontecendo. Em geral, está sendo construída uma relação em que os países em desenvolvimento fornecem dados aos Estados Unidos (e China, cada vez mais) e esses países licenciam ou alugam serviços aos países em desenvolvimento. Como esses países não têm esperança de alcançar os que comandam as plataformas, isso é efetivamente um sistema moderno de subdesenvolvimento forçado em relação aos dados.

Meu último argumento seria o que muitos já falaram: o papel que os paraísos fiscais desempenham na captura e retenção desses lucros. Rastrear como e onde isso está acontecendo é importante, não apenas para compreender, mas também para esboçar uma resposta significativa. Particularmente, as discussões atuais na OCDE sobre tributação digital são muito fracas, oferecendo principalmente gestos simbólicos para reter alguns dos piores excessos, deixando a maior parte do mundo incapaz de cobrar impostos. Portanto, seguir essa linha de pensamento tem implicações importantes sobre o fluxo de capital em relação aos países centrais.

 

 

DIGILABOUR: Em relação ao futuro do capitalismo de plataforma, você afirma que precisamos construir plataformas pós-capitalistas e coletivizar as plataformas. Como?

SRNICEK: Imaginar plataformas alternativas é um problema difícil e que ainda precisa ser melhor resolvido. Mas alguns exemplos podem ser suficientes para apontar para as direções certas. Primeiro, podemos imaginar versões municipais das plataformas populares de transporte. Em vez da Uber explorar demais seus trabalhadores e usar brechas fiscais para desviar as receitas aos seus investidores, poderíamos imaginar um município possuindo a plataforma, pagando bem aos motoristas, dando-lhes direitos trabalhistas e usando qualquer receita excedente para ser reintegrada à plataforma, melhorando-a. Ou, em outra escala, podemos imaginar plataformas de nuvem regionais (como a União Europeia está desenvolvendo) que fornecem aos pesquisadores e outros usuários um poder computacional que não seja dependente do gigante de Bezos. Em geral, a ideia de nacionalizar algo como o Google não faz sentido. Mas, quando analisamos as partes constituintes dessas empresas, podemos começar a imaginar maneiras de criar alternativas de propriedade pública, de propriedade de trabalhadores ou de usuários, evitando todos os problemas que essas empresas estão criando.

 

DIGILABOUR: Em sua visão, é necessário nacionalizar as plataformas?

SRNICEK: Não é necessário, mas em alguns casos pode ser muito útil. O que eu acho importante sobre o Estado é que ele é um dos poucos atores que parece ter os recursos e poderes necessários para assumir o controle das plataformas de primeira linha. Isso pode significar que é taticamente útil nacionalizar algumas plataformas (por exemplo, criar um Uber que seja de propriedade e operação pública), mas também pode significar que é mais uma questão de canalizar recursos estatais para plataformas pertencentes a outros meios (por exemplo, cooperativas ou modelos de código aberto ou baseados em token).

 

 

DIGILABOUR: Quais são as linhas gerais do seu próximo livro, After Work, junto com Helen Hester?

SRNICEK: Meu próximo livro com Helen Hester é uma tentativa de ver como os princípios do “pós-trabalho” podem ser aplicados ao trabalho de reprodução social (por exemplo, limpar, cuidar, cozinhar, etc.). Normalmente, a automação desse trabalho é vista como impossível ou moralmente suspeita – e, portanto, geralmente se pensa que os princípios do “pós-trabalho” não se aplicam realmente a esse tipo de trabalho (ou, pior ainda, o trabalho reprodutivo é considerado algum tipo de atividade virtuosa). Nosso argumento é que as ideias de “pós-trabalho” podem ser aplicadas ao trabalho reprodutivo, mas elas precisam ser modificadas para isso. Em termos gerais – e sem revelar muito do livro – defendemos a coletivização desse trabalho, a reorientação da arquitetura para o luxo público, o desenvolvimento de uma assistência tecnológica liderada por trabalhadores e a gestão consciente dos padrões de expectativas. Cada uma dessas ideias está muito condensada aqui, mas o livro tentará definir o que queremos dizer com cada uma dessas metas.

 

 

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