Kristy Milland trabalhou na Amazon Mechanical Turk por 13 anos, tanto como crowdworker – executando microtarefas – quanto como “solicitante”dessas atividades. Tornou-se pesquisadora da comunidade “Turker” e fez mestrado na McMaster University, em Toronto. Algumas de suas questões de pesquisa são: quem são os trabalhadores da Mechanical Turk? Por que trabalham lá? Quais formas de ação coletiva dos trabalhadores? Também pesquisou a plataforma do ponto de vista do “solicitante” de tarefas: qual a melhor hora para postar uma tarefa? Dê uma olhada em seus textos acadêmicos (aqui, aqui e aqui) e também em reportagens sobre o tema (aqui, aqui e aqui). Kristy Milland conversou com DigiLabour sobre alguns desses assuntos:
DIGILABOUR: Você trabalhou e pesquisou na Amazon Mechanical Turk. Como é trabalhar lá e quais as condições de trabalho?
KRISTY MILLAND: Trabalhar na Amazon Mechanical Turk é difícil. O trabalho é precário, o salário é baixo e o trabalho em si pode ser perigoso. Para começar, o processo de inscrição parece negar automaticamente os trabalhadores de fora dos Estados Unidos. Com o tempo, alguns podem ser aceitos, mas podem ser semanas, meses ou até anos após a inscrição. Para aqueles que têm a sorte de obter a aprovação, ocorre uma curva de aprendizado acentuada. Não há documentos que te ensinam a usar a plataforma e é um site diferente de qualquer outro que você tenha usado antes. Tem seu próprio vocabulário: mTurk é a abreviação de Amazon Mechanical Turk, Turker é como os trabalhadores se chamam, Requester é alguém que posta um trabalho e HIT é uma atividade trabalho. A plataforma tem seu próprio fluxo de trabalho, desde a competição com os outros para aceitar uma HIT até a pressa para submeter sua proposta, observando rejeições e aprovações. A aprovação significa que você é pago pelo tempo que gastou fazendo o trabalho, enquanto a rejeição ocorre quando um solicitante (requester) decide manter seu trabalho, mas não te paga por isso. Esse é um dos principais problemas com o sistema: roubo de salário. Além disso, quanto mais rejeições você receber, menos trabalho poderá ser feito na plataforma. Na verdade, se o seu índice de aprovação – a porcentagem de trabalho submetido que tem aprovação – estiver abaixo de 98%, você descobrirá que grande parte do trabalho na plataforma estará indisponível para você. Se a sua classificação ficar ruim o suficiente, a mTurk poderá suspender sua conta, embora a Amazon não diga quais métricas usa para escolher contas para encerrar. Não há nada na plataforma para te preparar para esse novo mundo de trabalho, então a maioria das pessoas que entram na plataforma acabam desistindo antes do primeiro mês. Elas enfrentam problemas e não encontram soluções, ou não conseguem entender a plataforma desde o início. Há outros problemas inerentes ao sistema. Por exemplo, o salário médio é de dois dólares por hora. Apenas 4% dos trabalhadores na plataforma, que são chamados de Super Turkers pelos acadêmicos, ganham mais do que o salário mínimo federal americano de US$ 7,25 por hora. O trabalho que eles fazem também causa danos à saúde: há danos físicos por ficar sentado em um computador durante todo o dia, bem como danos à saúde mental. O trabalho de moderação de conteúdo é uma das tarefas mais prejudiciais, com os trabalhadores encarando conteúdo obsceno e violento todos os dias, muitas vezes em troca de alguns centavos. E não há ninguém para os trabalhadores conversarem sobre a situação deles, porque não tem como os trabalhadores se comunicarem pela plataforma. Você tem que trabalhar sozinho, em competição com colegas de trabalho que você não pode ver, em troca de “amendoins”. Felizmente, há muito trabalho além da moderação de conteúdo. A maioria das tarefas é muito simples, de modo que qualquer pessoa, até mesmo alguém que não possui o inglês como primeira língua, pode encontrar trabalho. Por exemplo, a transcrição de recibos ou notas é uma tarefa comum. É uma questão de replicação de símbolos, então qualquer um que tenha um teclado em inglês pode fazer a tarefa. As tarefas variam em dificuldade, incluindo transcrição de vídeo e áudio, tradução, redação, edição e participação em pesquisas. Cerca de metade do trabalho na plataforma vem de acadêmicos. Além disso, os trabalhadores da mTurk estão sendo estudados cada vez mais. O restante do trabalho vem da indústria, como Google e Twitter. Nós freqüentemente treinamos algoritmos de aprendizado de máquina (machine learning), e é por isso que a Amazon nos chama de “Inteligência Artificial Artificial”. Muitas vezes, quando uma plataforma parece fazer algo pela IA, isso está sendo redirecionado para trabalhadores como eu. É chocante quanto trabalho fazemos para alimentar a internet!
DIGILABOUR: Quais as possibilidades e os limites da organização coletiva no crowdwork?
MILLAND: Os crowdworkers não podem ver uns ao outros. A plataforma não libera uma lista com os nomes dos trabalhadores. Isso significa que não há como entrar em contato com seus colegas. Também não há como saber quando você pode ter atingido uma massa crítica da força de trabalho geral. Isso significa que seria muito difícil organizar tradicionalmente os crowdworkers. Além disso, as leis na América do Norte e na Europa tornaram os cartéis ilegais. Os freelancers que se unem e definem os preços são, portanto, colocados como fixadores de preços e envolvidos em atividades ilegais. Os poucos sindicatos freelancers que existem não se envolvem em negociações coletivas ou ou estabelecimento de preços, nem em ações de greve. Como resultado, novamente, o modelo tradicional não serve. Toda organização tem que ser a partir da base e do nosso “chão de fábrica”. Por exemplo, os Turkers criaram muitas comunidades onde ajudam uns aos outros a aprender os macetes da plataforma e ganhar mais dinheiro. Essas plataformas dos trabalhadores são usadas para compartilhar tarefas e ferramentas que facilitam o trabalho. Elas também podem ser usados para organização. Algumas pequenas campanhas foram criadas a partir dos fóruns. Por exemplo, quando um solicitante muito ativo rotulava incorretamente as tarefas (tagueavam, por exemplo, alguma atividade como pesquisa, mas era qualquer coisa menos isso), os trabalhadores acessavam sua conta no Twitter, chamando-os e pedindo que mudassem seus comportamentos. Funcionou! Eles pediram desculpas e a empresa parou de marcar os HITs com pesquisa. Muitas dessas pequenas campanhas foram direcionadas aos solicitantes, com níveis diferentes de sucesso.
DIGILABOUR: E sobre o Dinamo e o Turkopticon?
MILLAND: A criação do Dynamo foi resultado de uma grande campanha dos trabalhadores. Essa plataforma anônima permitia que os funcionários criassem campanhas que fossem aprovadas por seus colegas. Se elas fossem votadas o suficiente, iriam ao ar. As pessoas, então, trabalhavam juntas para transformar isso em uma ação real. Por exemplo, os trabalhadores decidiram escrever as Diretrizes para Solicitantes Acadêmicos (Guidelines for Academic Requesters) a fim de criar um conjunto de regras para aqueles que usam a plataforma. Outra campanha, Caro Jeff Bezos (Dear Jeff Bezos), mandou os trabalhadores escreverem para o CEO da Amazon e dizerem a ele quem eram, por qual motivo estavam ali e o que eles gostariam de mudanças na plataforma. A última campanha recebeu muita atenção da mídia e permitiu que os trabalhadores sentissem que poderiam se organizar e mudar suas condições de trabalho. Foi um sucesso. O Turkopticon, por outro lado, foi criado por acadêmicos. A plataforma permitiu que os Turkers classificassem os solicitantes para que os trabalhadores pudessem saber para quem era bom trabalhar. A mTurk em si não mostra nenhuma informação sobre os solicitantes na plataforma, então sempre que você trabalha para alguém que você não trabalhou anteriormente, você está correndo um grande risco. O Turkopticon nivelou o jogo mostrando as classificações na própria mTurk por meio de uma extensão. Depois, foi substituído pelo TurkerView, um sistema privado de classificação por pagamento. Contudo, seu legado está vivo na comunidade.
DIGILABOUR: Você tem enfatizado a necessidade de pesquisadores criarem ferramentas para enfrentar o cenário atual do crowdwork. Que tipo de ferramentas? Em quais direções?
MILLAND: Atualmente, estou fora da academia e da pesquisa. Decidi cursar Direito. Mas eu gostaria de ver as pessoas trabalhando no movimento de cooperativismo de plataforma. Se um grupo de trabalhadores pudesse criar uma alternativa cooperativa à mTurk, sinto que seria uma alternativa mais justa. Se são eles a estabelecerem as regras, isso também pode garantir que os trabalhadores sejam tratados eticamente. Além disso, os trabalhadores poderão construir uma plataforma que tenha todas as ferramentas necessárias para realizar o trabalho de forma eficaz, eficiente e correta. Minha esperança é que os acadêmicos possam ajudar esses grupos a criarem e governarem plataformas.