Enda Brophy, professor da Escola de Comunicação da Simon Fraser University, tem pesquisado questões de trabalho nas indústrias midiáticas e a organização coletiva do trabalho. Um de seus projetos de pesquisa, em parceria com Greig de Peuter, Nicole Cohen e Marisol Sandoval, é o Cultural Workers Organize, sobre respostas coletivas à precarização do trabalho dos comunicadores. É autor do livro Language Put to Work sobre call centers e formas de organização coletiva além dos sindicatos tradicionais. Brophy chega a falar em “locais de trabalho comunicativos”. Um de seus últimos artigos publicados chama-se The Internet’s Factory Floor: Political Economy for an Era of Communicative Abundance, em que discute a noção de “capitalismo comunicativo” a partir de Jodi Dean. Confira a entrevista de Enda Brophy à DigiLabour:
DIGILABOUR: Você tem pesquisado há mais de dez anos as condições de trabalho, o trabalho precário e a organização coletiva em empresas de tecnologia e mídia. O que mudou de lá pra cá?
ENDA BROPHY: As mudanças ocorridas entre trabalho e tecnologias digitais, à sombra da crise financeira global de 2008, foram profundas e angustiantes. O mais importante é a inovação tecnológica que foi imposta de cima para baixo sobre a força de trabalho, o que podemos chamar de plataformização do trabalho. Um número crescente de trabalhadores nas franjas precárias do mercado de trabalho está envolvido em atividades governadas remotamente por algoritmos via plataformas. Os novos negócios puderam aproveitar a posição tremendamente difícil na qual muitos trabalhadores se encontraram após o derramamento de sangue pós-2008, com o caso paradigmático da Uber, que tem conseguido contratar trabalhadores que perderam empregos durante a crise ou trabalhadores mais jovens cujas chances de ter empregos bem remunerados estão se tornando cada vez mais raras. Pesquisas anteriores têm demonstrado que um número cada vez maior de pessoas complementa seus parcos rendimentos com trabalho de plataforma, seja por meio do Amazon Mechanical Turk, alugando um quarto por meio do Airbnb ou entregando alimentos por meio de aplicativos. Em outros lugares, indústrias como call centers reorientaram-se para aproveitar as tendências mais novas e mais disciplinares da geopolítica global e a expansão da economia de crédito. Tenho feito pesquisas no México e, em particular, em Tijuana, onde o capital global tem aproveitado a tendência crescente de encarceramento e deportação em massa nos Estados Unidos para estabelecer um call center em expansão que presta serviços às empresas americanas, terceirizando seu trabalho. Ao expandir a máquina de deportação em massa, Obama e, mais tarde, Trump efetivamente manufaturaram uma força de trabalho digitalque pode absorver o trabalho comunicativo extraído dos Estados Unidos. O mesmo processo está ocorrendo em toda a América Latina, onde os call centers estão sendo configurados para atender os Estados Unidos e o Canadá, e são compostos principalmente por deportados. Assim, o contexto geral é extremamente sombrio para os trabalhadores, com novos processos de trabalho e lógicas disciplinares sendo implantados em uma variante do capitalismo que sofreu mutações significativas desde as primeiras iterações do capitalismo “digital” neoliberal teorizado por estudiosos como Dan Schiller, Ursula Huws. e Nick Dyer-Witheford. Há uma financeirização sem precedentes da economia e a expansão de formas parasitas de geração de lucro. A boa notícia é que, pelo menos no caso da plataformatização do trabalho, estamos vendo o surgimento de uma pequena mas significativa onda de luta e recomposição ocorrendo entre os trabalhadores digitais. Os trabalhadores estão rejeitando a mentira descarada, consagrada em seu status contratual, de que são empreendedores autônomos. A greve global dos trabalhadores da Uber e da Lyft no início de maio foi realmente importante nesse sentido, e as lutas dos trabalhadores de delivery no Reino Unido e na Europa também foram inspiradoras. Finalmente, e isso tem um significado estratégico crucial, os trabalhadores de alta qualificação na área de tecnologia também começaram a se engajar em formas embrionárias de organização do trabalho, além de contestar as aplicações das tecnologias que seus empregadores desenvolvem.
DIGILABOUR: Você diz que há uma convergência crescente entre trabalho e comunicação na economia digital. Como isso ocorre?
BROPHY: A incorporação em larga escala dos processos comunicacionais na produção de mais-valia foi uma dimensão fundamental da expansão do neoliberalismo a partir dos anos 1970. Isso ocorreu quando a infraestrutura de telecomunicações em todo o mundo foi privatizada e, em seguida, voltada para os fins do setor privado. A expansão das indústrias de computadores e de eletrônicos foi outro passo importante no processo. Mas o modelo de negócios das empresas em toda a economia tornou-se mais comunicacional também, com a expansão de call centers em todo o mundo sendo o exemplo mais evidente da necessidade crescente de empresas que gerenciem um fluxo regular de interação interpessoal com seus clientes. O crescimento das chamadas “indústrias criativas” oferece ainda outro exemplo significativo de como o capitalismo tem buscado estratégias de crescimento que valorizem a capacidade humana de produzir comunicação, conhecimento e cultura, um processo que marxistas autonomistas como Christian Marazzi chamam de “colocar a linguagem para trabalhar”, uma frase que eu tomo emprestada para o meu livro sobre trabalho nos call centers. E, finalmente, há o crescimento impressionante de empresas como Facebook, Google, Apple e Amazon no topo do firmamento econômico. Cada uma delas busca uma combinação de estratégias de negócios, mas todas dependem da produção de lucros a partir de conteúdo produzido pelos usuários, dados e vigilância. O resultado prático disso é não apenas uma expansão significativa do trabalho remunerado que exige a capacidade humana de se comunicar, mas a indefinição entre trabalho e lazer, a ponto de grande parte de nossas vidas serem potencialmente gastas gerando valor para o capital. O trabalho gratuito tornou-se um problema endêmico, seja o trabalho não remunerado que os alunos realizam para ter acesso ao mercado de trabalho, o conteúdo que fornecemos voluntariamente para os gigantes de dados ou o trabalho extra que realizamos para pagar nossas dívidas.
DIGILABOUR: Como reinserir o trabalho na pesquisa em comunicação?
BROPHY: Em uma perspectiva norte-americana e anglófona da pesquisa em comunicação, isso não é um problema. No início dos anos 2000, Vincent Mosco e Catherine McKercher levantaram o problema do ponto cego do trabalho na área de comunicação, que havia sido originalmente identificado por Dallas Smythe em seu ensaio seminal de 1977 sobre o trabalho da audiência. A partir dessa provocação, houve uma notável proliferação de pesquisas sobre o trabalho nas indústrias midiáticas. Talvez a questão chave que enfrentamos neste momento seja a de como criar redes de acadêmicos, ativistas e sindicalistas para gerar conhecimento que sustente e, por sua vez, reforce o ativismo na área de trabalho. Em outras palavras, nosso problema não é simplesmente criar mais conhecimento sobre o trabalho na pesquisa em comunicação, mas colocar esse conhecimento para trabalhar no sentido de construir o poder do trabalhador.
DIGILABOUR: O que você tem encontrado em relação a práticas autônomas de comunicação?
BROPHY: Primeiramente, quero destacar que esse conceito de “práticas autônomas de comunicação” foi desenvolvido por Greig de Peuter em sua excelente tese defendida em 2010. Juntamente com Nicole Cohen, posteriormente expandimos o conceito de comunicação autônoma em um texto de 2015. Lá, identificamos três dimensões de práticas autônomas de comunicação: identidade coletiva, ou a recusa de trabalhadores de individualizar as subjetividades fomentadas pelos empregadores; contra-publicidade, ou criação e desenvolvimento de práticas culturais e midiáticas com o objetivo de circular mensagens resistentes, e solidariedade em rede, ou o desenvolvimento de tecnologias digitais para fins de organização do trabalho. Também deve ser dito que há uma tradição na pesquisa em comunicação que explora tais práticas entre os trabalhadores, uma tradição de décadas que inclui análise de mídias independentes e formas horizontais de comunicação dos trabalhadores. Minha própria pesquisa nos últimos anos envolveu-se com vários exemplos de práticas autônomas de comunicação por trabalhadores, seja ocupação de teatros e outros espaços culturais na Itália com o objetivo de transformá-los em centros culturais comunitários ou o desenvolvimento de plataformas digitais dedicadas à organização do trabalho, como Coworker.org ou Unionbase nos Estados Unidos. Explorar tais práticas é um modo de circular o conhecimento delas como exemplos que podem ser replicados em outros lugares, mas também servem para desenvolver as redes eu mencionei entre acadêmicos e ativistas.