Trabalho digital e trabalho gratuito em uma perspectiva feminista: entrevista com Maud Simonet

Maud Simonet é professora da Universidade de Paris-Nanterre, no laboratório Instituições e Dinâmicas Históricas da Economia e da Sociedade. É autora de livros sobre trabalho gratuito e trabalho associativo (alguns textos podem ser conferidos aqui e aqui) como Travail Gratuit: la nouvelle exploitation? (que pode ser baixado aqui).

Simonet conversou com a DigiLabour sobre as intersecções entre trabalho digital e trabalho gratuito a partir de uma perspectiva feminista.

 

DIGILABOUR: Como acontecem as dinâmicas de trabalho gratuito no trabalho digital?

MAUD SIMONET: A questão do “trabalho gratuito” está presente desde as primeiras reflexões sobre o trabalho na Internet, como evidenciado pelo texto pioneiro e fundador de Tiziana Terranova, publicado em 2000. O artigo é escrito em inglês e insiste no duplo significado de “free” no termo “free labor”: isso pode significar “livre” e, portanto, opor-se ao trabalho forçado, mas também significar “gratuito” no sentido de não remunerado. “Criar sites, modificar softwares, ler e participar de listas de discussão, construir espaços virtuais” são todas ilustrações desse trabalho, que é livre e gratuito, oferecido de forma voluntária, não remunerada e explorada. Terranova, ao relatar o desenvolvimento da internet, enfatiza a ambivalência do termo. Há alguns anos, fiz uma curta pesquisa de campo nos Estados Unidos que ilustra essa dinâmica do trabalho gratuito no trabalho digital. Ela se concentrou na mobilização de blogueiros do Huffington Post que ocorreu em 2011, após a venda do jornal à AOL por 315 milhões de dólares. Na época, o jornal on-line trabalhava com centenas de funcionários e cerca de 9.000 blogueiros não pagos. A venda do jornal levou a uma dupla mobilização: primeiro, uma chamada para a greve de blogueiros lançada por um site da Califórnia que costumava contar com os artigos do Huffington Post, e depois uma ação coletiva lançada por dois jovens advogados e cinco blogueiros em Nova Iorque. “Somos essencialmente nós que criamos o valor desse jornal que você vendeu por 315 milhões de dólares: reivindicamos uma parte desse valor”, disseram os blogueiros. Eles perderam a batalha jurídica, mas essa mobilização permaneceu nas mentes das pessoas como um modelo de mobilização contra o trabalho gratuito na internet.

DIGILABOUR: Você mostra que a análise feminista já aborda a questão do trabalho gratuito/não pago há muitas décadas. O que significa entender o trabalho gratuito a partir de uma perspectiva feminista hoje?

SIMONET: Grande parte das pesquisas sobre trabalho digital colocam questões de trabalho gratuito, exploração, alienação de uma forma fascinante, mas muitas vezes ignora a contribuição das análises feministas sobre trabalho doméstico. Há 40 anos, as feministas faziam todas as perguntas que poderiam ser feitas sobre o trabalho gratuito: qual é o valor do trabalho gratuito? Por que e como medir isso? Quem se beneficia? As pensadoras feministas debateram essas questões e não estavam necessariamente de acordo sobre as respostas a serem dadas. Mas é precisamente por meio de seus debates e controvérsias que elas trouxeram reflexões com um grande poder teórico e que constitui uma perspectiva real de análise do trabalho gratuito hoje, nas diferentes formas que ele pode assumir, seja fora da casa, trabalho gratuito na internet, mas também trabalho voluntário ou em serviços públicos, estágios ou trabalho voluntário. A partir desses debates feministas sobre o trabalho doméstico, é possível extrair pelo menos três lições para analisar essas formas cívicas e digitais de trabalho gratuito. A primeira lição é que o trabalho gratuito não deve ser pensado como uma subtração – trabalho menos remuneração – mas como uma negação do trabalho, um não reconhecimento do trabalhador como trabalhador e, em nome de determinados valores: em nome do amor (não é trabalho, é amor!), em nome da “cidadania”, mas também em nome da “paixão” pelo trabalho gratuito na internet. A segunda lição dessas análises feministas do trabalho doméstico é convidar-nos a nos afastarmos do mercado para pensar sobre a exploração, mostrando que ela é realizada e também se operacionaliza em “nossas cozinhas e em nossos quartos”. Para citar Silvia Federici e Nicole Cox, também em nossos chamados espaços de “lazer” ou “engajamento”. Finalmente, por meio de vários debates, entre feministas marxistas e materialistas sobre a relação entre capitalismo e patriarcado,  pelo feminismo negro sobre a pluralidade das relações sociais de sexo, classe e raça, as análises feministas do trabalho doméstico, de alguma forma, forçaram-nos a pensar sobre a pluralidade de formas de exploração das mulheres e a des-homogeneizar suas experiências. Elas colocam as relações sociais no centro da análise do trabalho. Como Kylie Jarret enfatiza com vigor e raiva diante de todos aqueles que consideram que seriam novas todas essas formas de exploração na internet, baseadas no íntimo e nas emoções dos trabalhadores: “Sim, claro, quando isso interessa aos homens brancos, heterossexuais, cis, de classe média ou de classe alta, isso pode parecer novo. Para todos os outros, é o que acontece há tempos”.

 

DIGILABOUR: O que tem mudado no trabalho gratuito em termos de exploração?

SIMONET: Se o trabalho gratuito pode, à primeira vista, parecer contrário ao emprego, essas formas de trabalho não reconhecidas como tal, invisíveis como trabalho, como os estágios e o voluntariado, estão, na verdade, e de maneira cada vez mais institucionalizada, no cerne do funcionamento do mercado de trabalho hoje, em duplo sentido. Em primeiro lugar, essas formas de trabalho gratuito estão presentes em empresas, associações e serviços públicos. A pesquisa que realizamos com meu colega John Krinsky mostra como os parques da cidade de Nova Iorque desde os anos 1980 são cada vez mais sustentados por trabalhadores invisíveis, que são em grande parte mulheres trabalhadoras, com voluntárias de classe média por um lado, e, por outro, beneficiárias de programas de assistência social, que constituem uma fração racializada e feminina das classes populares. Ao lado delas, sempre há funcionários municipais, sindicalizados e com direitos trabalhistas, mas em número decrescente: eles não representam mais a maioria desse serviço público. No entanto, a manutenção dos parques da cidade ainda está nas mãos do município. Não foi privatizada, mas sustentada pelo trabalho gratuito. Mas o trabalho gratuito, em suas várias formas, também está no centro da lógica dos empregos hoje, no sentido que funciona tanto como prova de que você é um bom jovem procurando um emprego, como uma promessa – “você trabalha de graça hoje na esperança de conseguir o emprego dos seus sonhos amanhã”. O mercado de trabalho desenvolveu verdadeiras “carreiras de status”, trajetórias típicas que vão do trabalho gratuito ao emprego e, assim, constroem um continuum entre os dois. Hoje voluntário, amanhã voluntário, depois de amanhã em um estágio, depois em um contrato precário e, finalmente, depois, talvez… “um emprego de verdade”.

 

DIGILABOUR: Em quais sentidos você conecta essas questões ao trabalho invisível e à invisibilização do trabalho?

SIMONET: Falar em “invisibilização” do trabalho significa continuar as análises feministas sobre o trabalho invisível, dinamizando-os e mostrando como atividades específicas que eram realizadas anteriormente no âmbito do trabalho visível deslizem em direção a formas invisíveis de trabalho. Isso pode ser demonstrado nos parques de Nova Iorque como comentei anteriormente, mas também pode ser visto no trabalho em outros serviços públicos, muito além das fronteiras dos Estados Unidos! Pude mostrar que, na França, algumas cidades criaram programas de voluntariado para beneficiários de assistência social convidando-os a limparem jardins e praias. Nas escolas públicas, há status diferentes de professores: titulares, temporários e também voluntários. Falar em “invisibilização do trabalho”, portanto, nos convida a fazer a ligação entre essas formas de trabalho gratuito realizadas “em nome de algo” (cidadania, engajamento, formação, por exemplo) e as políticas trabalhistas (no mundo associativo, nos serviços públicos, políticas para juventudes e assistência social). De maneira mais ampla, isso nos convida a questionar o papel do Estado no desenvolvimento, na institucionalização e no uso do trabalho gratuito atualmente, e a levar em conta o lado “cívico” – e patriarcal – da neoliberização do trabalho.

 

Veja vídeos de Maud Simonet aquiaqui aqui.

 

 

 

 

 

 

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