Mark Deuze, professor da University of Amsterdam, autor de livros como Media Work e Media Life, acaba de lançar uma nova obra, em parceria com Tamara Witschge, professora da University of Groningen. Beyond Journalism é a concretização de projeto de pesquisa realizado desde 2013 sobre a diversidade e complexidade das práticas jornalísticas, concentrando-se em 22 coletivos e startups de jornalismo de 11 países diferentes.
Alguns argumentos de Deuze e Witschge já haviam sido antecipados em textos publicados em português: Além do Jornalismo, de 2015, e O que o jornalismo está se tornando, de 2016. Para eles, os estudos de jornalismo ainda apresentam uma centralidade excessiva em redações tradicionais e tentam espremer teorias “coerentes” e “universais” sobre o trabalho jornalístico.
Para eles, a partir da investigação com iniciativas de jornalismo independente e alternativo, é preciso contar novas histórias sobre a profissão, com práticas dinâmicas e dispersas, como um trabalho de fronteiras. Como dizem na introdução de Beyond Journalism, “as fronteiras entre jornalismo e outras formas de comunicação pública – de relações públicas e marketing até práticas de autocomunicação de massa (geralmente não pagas) – são porosas e frequentemente sem sentido, principalmente para os usuários das mídias”.
Nesse trabalho de fronteiras, entre o que o trabalho jornalístico pode ser e o que está se tornando, Deuze e Witschge consideram quatro fatores centrais: a) reorganização do ambiente de trabalho; b) fragmentação das redações e do trabalho jornalístico; c) emergência de uma sociedade redacional; d) ubiquidade das tecnologias midiáticas.
Este é o contexto para que os autores afirmem: o jornalismo está além do que os estudos em jornalismo dizem que são jornalismo. Muito além de sua definição tradicional. Como mostram no livro, “os jornalistas de startups que entrevistamos e observamos não estão sozinhos no que eles fazem: são repórteres e editores em novas entidades jornalísticas, estão começando coletivos editoriais, construindo um negócio jornalístico do zero”.
Confira a entrevista de Mark Deuze sobre Beyond Journalism:
DIGILABOUR: Você defende uma visão mais ampla dos estudos de jornalismo para abarcar uma “compreensão mais inclusiva e diversificada sobre as práticas jornalísticas”. O que você diria a quem insiste em ver o jornalismo e suas teorias de maneira fechada frente aos desafios que temos no mundo do trabalho?
MARK DEUZE: Nós estudamos jornalismo porque nos preocupamos com a qualidade de nossas notícias e o papel que desempenha na sociedade. Esse produto – a notícia – é produzido por uma ampla variedade de profissionais, sendo que a maioria não é contratada em período integral (incluindo todos os benefícios e proteções que isso traz) nas principais organizações jornalísticas. Além disso, mesmo aqueles com esses contratos experienciam precariedade – como demissões, cortes no orçamento e reorganizações administrativas tornaram-se uma prática padrão em todo o setor jornalístico tradicional. Portanto, se você não está estudando jornalismo de maneira ampla, está de fato ignorando a maioria das instâncias, configurações e práticas que faz o jornalismo funcionar/trabalhar efetivamente, fechando os olhos para aquilo que informa e inspira seu campo de estudos.
DIGILABOUR: O que a pesquisa sua e da Tamara Witschge mostra sobre o perfil do jornalista “além do jornalismo”?
DEUZE: No centro dos jornalistas que estão “além do jornalismo” encontra-se uma noção de jornalismo como uma forma de trabalho afetivo. Precisamos compreender plenamente o papel da “pessoa como um todo” (incluindo corpo, emoções, paixões e frustrações) ao considerar o jornalismo, pois a profissão claramente não pode sobreviver apenas a objetivos estrita e exclusivamente democráticos ou econômicos. Em outras palavras, os jornalistas tendem a não estar na profissão para serem cães de guarda da política e do governo ou para ganharem dinheiro. Suas ambições são, de fato, muito mais fortes. E tem que ser. Caso contrário, não há como você sobreviver nessa indústria.
DIGILABOUR: O que você mais aprendeu com o projeto Beyond Journalism?
DEUZE: O projeto envolveu 22 coletivos e startups de jornalismo em 11 países. No total, mais de 125 pessoas foram entrevistadas por uma equipe composta por 24 estudantes de pós-graduação, eu e Tamara. Em nossa pesquisa, focamos em jornalistas iniciantes, que por sua própria natureza podem operar fora dos parâmetros tradicionais e desafiar essa estrutura. Esses jornalistas envolvidos na criação de pequenas empresas jornalísticas ou coletivos fora da mídia tradicional podem ser vistos como pioneiros no campo. O que aprendemos com esse projeto é uma compreensão dos paradoxos envolvidos em ser jornalista e fazer jornalismo hoje, sem precisar ou querer corrigir essas contradições. Na verdade, a pesquisa nos mostrou como há muita coisa acontecendo ao mesmo tempo no campo. Vemos, entre os jornalistas que pesquisamos, uma compreensão profunda acerca da natureza paradoxal de uma identidade profissional do jornalista.
DIGILABOUR: Quais as principais contradições envolvendo o trabalho dos jornalistas em coletivos e startups?
DEUZE: Vou destacar as quatro principais contradições que encontramos em nossas explorações – questões que nos forçaram a olhar de forma diferente para o trabalho deles e para o jornalismo como um todo. Primeiramente vemos que, para muitos, ou até mesmo para a maioria dos jornalistas, o jornalismo é um projeto ligado à paixão, que traz consigo uma relação muito específica com a autonomia. Um senso normativo de autonomia é fundamental para sua identidade profissional, enquanto, de todas as formas, a autonomia real (ou percebida) do repórter hoje é reduzida devido a necessidades de mercantilização de si próprio, envolvendo a promoção e a publicação de notícias e informações, não somente a sua produção. Além disso, a autonomia é um tema que pode ser contestado, considerando a isolação social de jornalistas independentes, freelancers ou que estejam em alguma forma “atípica” de trabalho e as realidades sociais de quem trabalha mais frequentemente em equipes, coletivos ou grupos que são apenas temporários. Em ambos os casos, “autonomia” é um conceito relativo e altamente dependente do contexto, por mais que seja uma realidade vivida de forma ambivalente. Em segundo lugar, encontramos uma relação altamente complexa dos jornalistas com outras pessoas dentro do próprio campo. Pesquisamos aqueles que foram para startups ou coletivos por conta própria, mas fazer parte de uma comunidade de colegas e ter um senso de pertencimento é uma parte impressionante para conseguir prosperar nesse cenário. Repetidas vezes nossos participantes falavam dos colegas de trabalho e do apoio deles como sua principal motivação para optar por essa existência precária, às vezes escolhendo isso depois de uma carreira já consolidada em uma redação. Ao mesmo tempo, a sociabilidade dos jornalistas no trabalho pode ser uma luta para muitos, pois o ambiente de trabalho tende a ser, pelo menos em parte, baseado em rivalidade, conflito (criativo) e competição intensa. Esse espírito competitivo é tanto valorizado – como a corrida para publicar uma notícia na capa, sair no telejornal da noite, enviar um breaking news para os usuários on-line – como lamentado, pois isso amplia o jornalismo como uma corrida para ser o primeiro. Muitas das startups que visitamos se afastaram deliberadamente das notícias factuais como uma crítica à rotina diária do jornalismo. A competição é mencionada por eles como uma competição com iniciativas mainstream por atenção, como uma competição com outros empreendimentos pela chance de adquirir financiamento, apoio financeiro e patrocínio, e eventualmente uma competição em nível intrapessoal, pois o desejo de fazer jornalismo precisa ser negociado próximo à necessidade de viver uma vida decente. Em terceiro lugar, descobrimos – ao contrário da falta de atenção das pesquisas e práticas sobre isso – a importância da criatividade no jornalismo para quem o pratica. Nossos dados sugerem que o prazer do jornalismo como um ofício e o exercício da criatividade são elementos talvez subestimados, mas isso é expressivo do que significa ser um jornalista profissional, mesmo que geralmente isso esteja ausente no discurso comum entre jornalistas no nível das organizações jornalísticas. Hoje, a criatividade é vista como uma vantagem competitiva essencial, e, particularmente nos círculos de gestão, é apontada como o fator crítico que diferencia as empresas de mídia em geral e as organizações jornalísticas em particular, além de muitas outras indústrias. Mas o que chamou a atenção em nossos dados é o quão isso é necessário para muitos dos entrevistados: é por isso que eles adoram o seu trabalho (fora da mídia tradicional). Um quarto e último paradoxo que encontramos diz respeito a como os jornalistas produzem sentido ao que fazem – qual é a “grande narrativa” sobre a profissão. Os repórteres e editores tendem a idealizar sua profissão, pois esse enobrecimento é uma característica fundamental de sua identidade – mesmo quando a experiência de trabalhar nessa profissão pode ser tudo menos prazerosa. Muito frequentemente nossos participantes discutiam suas experiências de trabalho em organizações jornalísticas tradicionais como desumanizantes, sofrendo em reuniões, sendo julgados por sua produtividade (em vez de qualidade), não sentindo como se estivessem contribuindo para algo significativo. Além disso, eles consideraram o ambiente de trabalho algo inseguro, com rodadas regulares de demissões, projetos de reestruturação e mudanças de gestão. Ainda assim, apesar de tudo isso, eles veem a profissão como algo especial e maravilhoso – o que em parte lhes permite justificar o risco e a incerteza de atacar por conta própria. Talvez seja fácil demais tentar explicar esses paradoxos colocando em primeiro plano a perspectiva que sugere que os jornalistas não podem ter uma visão mais crítica e reflexiva sobre a profissão, pois estão envolvidos demais. Sugerimos aqui que tudo está atuando ao mesmo tempo: muitas narrativas e sentidos coexistem: as histórias que expressam paixão e um zelo quase romântico pela profissão coexistem com um reconhecimento realista e às vezes sombrio da precariedade profunda como uma característica estrutural do trabalho e da carreira. Tais narrativas não se negam ou se contradizem. Na verdade, descobrimos que às vezes elas se reforçam. A história ligada às emoções fornece combustível para os jornalistas se convencerem de que podem trabalhar com isso, especialmente quando confrontados com circunstâncias terríveis. Ao mesmo tempo, quando as coisas ficam difíceis, quando os clientes e contratos diminuem, e o trabalho restante é constantemente mal pago, os jornalistas costumam se culpar, articulando uma paixão cada vez menor. A reflexão crítica e o engajamento apaixonado às vezes se chocam, mas outras vezes coexistem independentemente um do outro, assumindo posições diferentes na hierarquia de táticas e estratégias de sentido dos profissionais da área de comunicação. Como tal, é importante contar e considerar essas histórias separadamente, fornecendo insights sobre os discursos predominantes nas conversas com jornalistas, tomando cuidado para não se juntar ou explicar um pelo outro.
DIGILABOUR: Como pensar a organização coletiva do jornalismo atualmente?
DEUZE: Há formas cada vez mais diferentes de organização além dos sindicatos – em cooperativas e outros tipos emergentes de coletividades. Alguns desses tipos simplesmente estão lá para algum tipo de apoio. Outros estão mais fundamentalmente envolvidos na luta pelos direitos dos trabalhadores como profissionais independentes. As pesquisas nessa área estão crescendo e são desesperadamente necessárias. Da mesma forma, são necessárias as vozes dos acadêmicos não somente como pesquisadores, mas como intelectuais públicos.