Início » Desigualdades estruturais no trabalho digital: entrevista com Tamara Kneese Interviews Desigualdades estruturais no trabalho digital: entrevista com Tamara Kneese Tamara Kneese é professora da University of San Francisco e pesquisa as tecnoculturas da “extensão de vida”, incluindo a posteridade e a memorialização digital. Uma de suas investigações abordou as campanhas de crowdfunding de funerais. A partir disso, ela tem dado contribuições sobre vigilância no mundo do trabalho e desigualdades estruturais no Vale do Silício Kneese fez parte da Logout Conference, sobre resistência dos trabalhadores à gig economy. A revista Notes From Below publicou dossiê com artigos do evento e elea contribuiu com texto sobre precariedade para além da gig economy. Segue um trecho: “Apesar de os jornalistas de tecnologia e os pesquisadores de comunicação geralmente retratarem os trabalhadores da gig economy separados dos seus colegas de colarinho branco, a precariedade é endêmica para diversas profissões”. Confira entrevista de Kneese à DigiLabour: DIGILABOUR: Como você define a vigilância no trabalho digital? TAMARA KNEESE: Tornou-se quase impossível falar sobre o trabalho de maneira mais ampla sem se referir às tecnologias digitais. As plataformas privadas e as empresas de tecnologia também desempenham um papel nos novos modos de vigilância, já que os empregadores usam essas tecnologias tanto como ferramentas de trabalho quanto como dispositivos de coleta de dados. Considere os canais oficiais do Slack em muitos escritórios, o Google Docs e a obrigatoriedade de perfis no Twitter para pessoas da mídia ou em outros cargos públicos. Além do e-mail, agora há muitas oportunidades para os empregadores monitorarem os trabalhadores no trabalho e em casa. A Amazon tem uma patente para pulseiras que medem a biometria dos trabalhadores. Os programas de condicionamento físico nas empresas acompanham os funcionários por meio de dispositivos portáteis, mesmo durante seu tempo de lazer. As tecnologias digitais permitem que os empregadores “chequem” constantemente os trabalhadores, sujeitando-os a novas formas de vigilância durante a coleta de dados. O gerenciamento de afetos é um aspecto fundamental: enquanto isso sempre fez parte do setor de serviços, do trabalho em call centers e do trabalho doméstico, a vigilância digital amplia o alcance do empregador e permite que eles observem padrões de comportamento, monitorando funcionários mesmo quando estão fora do expediente. O local de trabalho contemporâneo não se limita a uma configuração específica ou até mesmo define um período de tempo. As empresas podem rastrear seus trabalhadores por meio de telefones comerciais ou aplicativos específicos, marcando quais sites eles visitam e com que frequência checam suas mensagens de trabalho ou com qual velocidade eles respondem a essas mensagens. O dia de trabalho vai muito além do horário oficial. Trabalhar como freelancer significa maior flexibilidade e a possibilidade de trabalhar em casa. Mas isso também significa menos estabilidade e maior vigilância. Em um artigo recente que eu escrevi com Michael Palm, discutimos as maneiras pelas quais o varejo é reconfigurado por plataformas como Discogs e Instagram, onde os balconistas vintage devem usar seus telefones pessoais para interagir com os clientes mesmo quando não estão na loja, marcando uma extensão do chão de fábrica. Os empregadores sempre encontraram formas de vigiar e controlar seus funcionários, mas as novas tecnologias e a coleta de dados dão uma nova virada a um antigo diferencial de poder. As formas indiretas de monitoramento e gestão são vistas como neutras e os funcionários podem nem estar cientes de todas as formas de observação e para onde estão indo seus dados. Por sua vez, essas informações fornecem novos tipos de métricas para otimizar o desempenho. DIGILABOUR: Como as desigualdades estruturais podem ser reproduzidas na economia do compartilhamento? KNEESE: A economia do compartilhamento certamente perdeu muito de seu brilho, à medida que os consumidores se tornam mais críticos em relação a empresas como Uber e Airbnb, que originalmente prometeram uma oportunidade para fazer frente a indústrias supostamente quebradas. Em teoria, a economia do compartilhamento é aberta e todos devem ter acesso igual a ela. Mas, ao mesmo tempo, estudos têm mostrado repetidamente que o racismo, o sexismo, o classismo e a homofobia persistem nesses espaços teoricamente igualitários. Os anfitriões negros na Airbnb devem baixar os seus preços para atrair visitantes e os usuários negros do site têm menos probabilidades de serem confirmados pelos anfitriões. Os sistemas de classificação de muitos sites de economia do compartilhamento também estão sujeitos a vieses pessoais dos usuários. Plataformas de crowdfunding como o Kickstarter são baseadas na ideia de que qualquer pessoa pode arrecadar dinheiro para suas necessidades ou desejos. Mas as campanhas de jovens brancos normativamente atraentes dão mais atenção e mais dinheiro do que campanhas para pessoas que são consideradas “menos dignas”, ou aquelas que são idosas, deficientes ou de comunidades marginalizadas. Minha pesquisa sobre funerais financiados por crowdfunding aborda alguns dos problemas da economia do compartilhamento, ao mesmo tempo em que oferece uma crítica aos commons digitais. Os funerais são caros e, para aqueles que não têm seguro ou dinheiro, o crowdfunding oferece às famílias uma maneira de enterrar seus entes queridos com dignidade. Apesar de sua aparência democrática, muitas campanhas de crowdfunding acabam fracassando. Se uma campanha de funeral financiada por crowdfunding estiver conectada a um movimento social ou a uma história convincente, é mais provável que a campanha atinja ou exceda sua meta. Mas há inúmeras campanhas que não recebem financiamento, seja porque não recebem atenção da mídia ou de ações de mídias sociais, ou porque a morte é considerada uma morte “ruim” – para aqueles que morrem em mortes violentas, essa é uma questão importante. As campanhas para vítimas de tiroteios em massa ou casos famosos no noticiário tendem a ser bem sucedidas, enquanto campanhas para pessoas que são marginalizadas, ou cujas mortes são complicadas, são menos propensas a atrair doadores. Alguém que morre por suicídio ou overdose pode ter menos probabilidade de receber financiamento do que alguém cuja morte foi noticiada. O racismo, o classismo, o sexismo e o preconceito que existem off-line se transferem para esses espaços supostamente igualitários. As plataformas de crowdfunding obviamente lucram com campanhas que são mais bem-sucedidas, já que elas recebem uma parcela das doações. Às vezes, as plataformas incluem uma lista de campanhas que estão fechando em breve, mas não atingindo suas metas, na esperança de incentivar as pessoas a doarem. Mas é mais provável que a plataforma promova campanhas vinculadas a eventos noticiosos ou que já atraiam muitos compartilhamentos, curtidas e doações. Desta forma, a plataforma pode exacerbar as desigualdades sociais existentes. O acesso também é um fator chave. Além das formas de discriminação introduzidas nas próprias plataformas, a economia do compartilhamento tem implicações mais amplas. Por um lado, Airbnb, Lyft, Uber, Caviar e outras empresas reformularam espaços urbanos, afetando inclusive a infraestrutura aeroportuária e a política das cidades. Em um lugar como San Francisco, os efeitos dessas empresas são imediatamente aparentes. Em segundo lugar, as pessoas que realizam esses trabalhos constituem uma classe mal paga de trabalhadores de serviços que não recebem benefícios ou segurança das empresas para as quais trabalham, enquanto os investidores e proprietários de plataformas obtêm os lucros. A economia do compartilhamento contribui para a gentrificação e a crescente desigualdade de classes, aumentando a crise imobiliária. DIGILABOUR: Por que, em sua visão, é preciso confrontar os commons digitais? KNEESE: Devido aos fracassos no compartilhamento da economia de plataforma, alguns ativistas têm defendido um modelo cooperativo de plataforma, que está mais próximo de uma visão utópica dos commons digitais. É importante não romantizar as origens da web ou das tecnologias digitais em geral: a história da computação está inextricavelmente ligada às forças armadas e ao colonialismo. Sempre houve problemas e não houve nenhuma era dourada mágica da internet em que todos eram livres. Mas também é verdade que algumas plataformas conquistaram o controle dos espaços digitais. As interpretações utópicas dos commons digitais ofuscam as desigualdades sociais e as experiências variadas de precariedade. A ajuda mútua não depende de noções como commons digitais ou economia do compartilhamento, mas da produção e manutenção de relações sociais. Silvia Federici adverte contra a celebração de formas digitais de colaboração como um sinal de maior igualdade: “Dizem-nos que a Internet une as pessoas e é o único tipo de ‘comum’ que se expande com o uso, em vez de se esgotar. Mas a Internet não pode substituir o contato face a face, e não pode substituir o acesso a recursos como terra, florestas, águas”. DIGILABOUR: Como combater as desigualdades estruturais nas indústrias de tecnologia? KNEESE: Um segmento da minha pesquisa atual sobre desigualdade estrutural no Vale do Silício analisa as hierarquias baseadas em raça, gênero, classe e imigração nos campi de tecnologia e na indústria de tecnologia. Há uma história de racismo evidente na tecnologia. William Shockley, um dos fundadores do Vale do Silício, era eugenista. Jornalistas como April Glaser detalharam as maneiras pelas quais a supremacia branca ainda corre solta nos círculos do Vale do Silício. Enquanto isso, a indústria de tecnologia é alimentada por extrema desigualdade em escalas locais e globais. Há camadas de exploração: da mineração de cobalto nas fábricas do Congo e da Foxconn na China aos zeladores terceirizados, os trabalhadores da cafeteria… Há fluxos globais de bens, pessoas, serviços e trabalho invisível realizados por moderadores de conteúdo, fabricantes de produtos eletrônicos e assistentes virtuais. Mas até engenheiros de software experimentam precariedade. Trabalhar para o Google ou o Facebook não protege você contra a xenofobia, o sexismo e o racismo. Ativistas que fazem parte de grupos como o Gig Workers Rising e a Tech Workers Coalition estão encontrando um terreno comum em vários setores de tecnologia, especialmente em relação à discriminação e à precariedade. Os trabalhadores de tecnologia estão começando a se reconhecer como trabalhadores comuns. Em minha pesquisa atual, estou estabelecendo conexões entre desigualdades na própria tecnologia e as formas de opressão sistêmicas e mais amplas. Há uma clara falta de diversidade na indústria de tecnologia e hierarquias entrincheiradas em que alguns tipos de trabalho e trabalhadores são mais valorizados do que outros. Muitos não são considerados funcionários “reais”. Como uma plataforma acaba refletindo não apenas os valores de seus criadores, mas também as desigualdades estruturais do mundo do trabalho? DigiLabour Compartilhar Artigo AnteriorTrabalhando na Amazon Mechanical Turk: entrevista com Kristy Milland Próximo ArtigoO trabalho de plataforma é trabalho de minorias: entrevista com Niels van Doorn 14 de junho de 2019