Início » Mindfulness entre racionalidade empreendedora e violência epistêmica: entrevista com Ronald Purser Interviews Mindfulness entre racionalidade empreendedora e violência epistêmica: entrevista com Ronald Purser Ronald Purser, professor de Administração da San Francisco State University, publicou em julho deste ano o livro McMindfulness: How Mindfulness Became the New Capitalist Spirituality, em que conta o encontro do mindfulness com a racionalidade empreendedora e a ideologia do Vale do Silício. Outras entrevistas com o autor em português podem ser conferidas aqui e aqui. Em entrevista à DigiLabour, Purser, que é budista, falou sobre capitalismo hispter, gramática do capital, aplicativos de mindfulness e violência epistêmica em relação ao budismo. DIGILABOUR: Como o mindfulness se relaciona à racionalidade empreendedora e ao mundo do trabalho, especialmente em contexto de capitalismo hipster? RONALD PURSER: O mindfulness tornou-se uma ferramenta utilitária e instrumental para os indivíduos atingirem seus objetivos. O empreendedorismo tem tudo a ver com esforço individualizado e fazer as coisas quase de uma maneira heroica. O mindfulness entra nessa retórica empreendedora dizendo às pessoas que elas podem se sustentar com suas próprias “orientações” e se elevar acima do ambiente social por conta própria. O empreendedorismo também significa o espírito do capitalismo, glorificando o trabalho como um chamado e quebrando as regras da ortodoxia. É assim que o mindfulness também é visto como cool e moderno nas empresas do Vale do Silício. Os titãs da tecnologia no Vale do Silício – Google, Facebook, Twitter, Yahoo, Salesforce, Apple, Zygna – adotaram com entusiasmo o mindfulness como uma nova ferramenta brilhante para promover sua marca de “capitalismo cool”. Nessa forma de espiritualidade, somos lembrados a “procurar por si mesmos”, aconselha o ex-fellow do Google Jolly Good e o czar do mindfulness, Chade-Meng Tan, pois lá – não nas estruturas de uma cultura orientada para o mercado – está a fonte dos seus problemas. Aplicada dessa maneira, o mindfulness se torna uma prática perfeitamente adequada ao que Jim McGuigan chamou de “self neoliberal”. A maioria dos funcionários de empresas como Google e Facebook são engenheiros homens. Existe uma masculinidade hegemônica oculta associada ao ícone do empreendedor. De fato, um dos valores corporativos do Calm, um dos aplicativos de meditação mindfulness mais lucrativos, é a crueldade. O mindfulness é visto pelo Google, como diz um engenheiro, “como uma espécie de WD-40 organizacional, um lubrificante necessário entre funcionários ambiciosos e motivados e a exigente cultura corporativa do Google”. O mindfulness apela à natureza altamente competitiva do capitalismo moderno. De fato, ele vê indivíduos como empreendedores gerindo suas próprias empresas em concorrência com outras. DIGILABOUR: Entender o mindfulness como um jogo de linguagem e propaganda corporativa, como você afirma, significa compreendê-lo como parte de uma gramática do capital que funciona como um “mantra”? Como isso se relaciona com a linguagem do coaching? PURSER: A maioria dos estresses e ansiedades no ambiente de trabalho corporativo está ligada a condições estruturais e sistêmicas. O estresse não é meramente uma patologia individual, mas ligado a forças sociais, econômicas e políticas que são maiores que o indivíduo. O “coach de vida” baseia-se na indústria americana de autoajuda que promove uma forma de pensamento mágico a partir do qual todas as mudanças e todos os sucessos vêm de dentro. Procurar dentro de si o chamado “eu autêntico” faz parte desse jogo de linguagem. Também é interessante que o rótulo seja “coach de vida” quando se trata realmente de extrair mais do trabalho. DIGILABOUR: Como você vê o papel dos aplicativos de mindfulness? PURSER: Os aplicativos de mindfulness são o epítome do McMindfulness. Os empreendedores espirituais adotam práticas de mindfulness minadas para se adequar à sua abordagem instrumental e com fins lucrativos – remodelando-as como técnicas de “auto otimização” para melhorar a produtividade e o desempenho. A prática do mindfulness, antes de ser apropriada pelas empresas, não tem nada a ver com soluções rápidas de curto prazo. Os aplicativos de meditação representam a McDonaldização do mindfulness – produzindo em massa uma técnica eficiente, escalável e quantificável e uma mercadoria globalizada e comercializável. Há uma ironia peculiar ao recorrer a um aplicativo para aliviar o estresse de problemas que geralmente são agravados ao se olhar para os telefones. O Headspace, assim como seus rivais, tem interesse em manter os usuários ativos. A expressão “Pessoas meditando agora” aparece em sua página inicial e mostra uma contagem em tempo real. Quando verifiquei, havia 20.996 outras pessoas usando o aplicativo. Por que não participar quando é tão fácil e divertido? A gamificação do mindfulness é o epítome de uma atenção narcísica e egocêntrica – uma tecnologia de si – que insinua um senso neoliberal de si mesmo – que deve ser constantemente monitorado, disciplinado e aprimorado. Esses aplicativos supõem que somos maus monitores de nossos próprios comportamentos e estados internos. Enquanto isso, nos dão a falsa sensação de que precisamos de tecnologias externas como uma maneira de exercer controle executivo sobre nossos próprios corpos e mentes. Esse automonitoramento obsessivo é impulsionado por um imperativo moral de estar sempre atento, apto e saudável, mas isolado dos outros. É preciso ser um bom “eu neoliberal” que esteja determinado a atualizar e aprimorar seu capital mental e emocional no mercado. DIGILABOUR: Como é o processo de violência epistêmica em relação ao mindfulness? PURSER: O que geralmente é esquecido é como o processo de tradução cultural do budismo no Ocidente está sendo moldado por um conjunto complexo de forças que interagem envolvendo relações de poder, redes de interesses e decisões interpretativas – forças culturais que geralmente permanecem submersas e ocultas do discurso público. A retórica entre os cheerleaders do mindfulness é muito problemática, dadas suas atitudes colonialistas não reconhecidas, porém flagrantes. Seus hábitos discursivos são totalmente ofensivos para budistas étnicos e professores e praticantes não-brancos. Essa visão do mindfulness serve tanto para uma função retórica quanto para uma concessão de privilégios brancos em relação a um branding budista. O mantra que eles cantam sem vergonha na mídia é que a tradição budista não passa de um conjunto ultrapassado de acréscimos culturais. Empreendedores que aparecem muito na mídia, como Dan Harris, gostam de criticar o budismo, vendo-o como um recipiente culturalmente arcaico e supersticioso, no qual a prática cientificamente eficaz do mindfulness foi preservada. Dan Harris diz: “Eu sempre pensei que a prática do mindfulness era para pessoas que vivem em Yurts ou colecionam cristais… como se vê, existe toda essa ciência que diz que pode melhorar o sistema imunológico, reduzir a pressão sanguínea e religar partes importantes do cérebro”. Todos esses são os lugares comuns desse movimento mindfulness: o de que a ciência, ao validar a prática do mindfulness, a libertou da metafísica escamosa, estrangeira, irracional, ultrapassada e assustadora da tradição religiosa. Esse tipo de caracterização depreciativa, às vezes hostil, da tradição budista se relaciona a uma terrível falta de compreensão do que significa se envolver significativamente com uma tradição religiosa e também a uma crença ingênua na autoridade inatacável da ciência como sendo o único árbitro da verdade, do sentido e do valor. O hábito de assumir e retirar o rótulo budista no discurso do mindfulness é a violência epistêmica. Porque, ao repetir a retórica de Janus de reivindicar a essência autêntica do budismo para reforçar o próprio prestígio da marca, enquanto proclama que alguém substituiu o budismo, porque a abordagem científica (centrada no Ocidente) permitiu o acesso a uma compreensão ainda mais universal do mindfulness – esse hábito discursivo desempenha uma função epistêmica de controle de fronteiras para marcar e policiar o budismo, os corpos e as vidas marcadas como “budistas” como algo com que se preocupar ou se envergonhar, porque está recheado de bagagem “cultural” ou “religiosa”. No entanto, esse hábito discursivo não tem escrúpulos em exibir o prestígio simbólico do budismo para sua própria conveniência, mas apenas se a essência do dharma do budismo for devidamente expurgada de sua “estranheza” (embora o exótico ainda seja vendável) por ser assimilada por um paradigma científico que não é nativo do budismo. Por que a história do imperialismo ocidental e todos os efeitos vergonhosos da violência (incluindo a supremacia branca) não afetam a maneira como nos relacionamos com heranças não ocidentais? Por que isso não é uma bagagem cultural para carregarmos? Se este é um sinal de uma nova linhagem do dharma em formação, não devemos nos preocupar? Os defensores contemporâneos do mindfulness parecem não estar. Eles têm ignorado e não refletido seus próprios compromissos ideológicos, uma vez que a integração do mindfulness depende de uma versão universalista. As estratégias retóricas usadas por Jon-Kabat Zinn, fundador da “Redução do Estresse Baseada em Mindfulness”, ilustram essa marca budista, com seus danos e consequências não intencionais. DIGILABOUR: Você afirma que cuidar de si mesmo é um ato político radical. Mas para isso é preciso ir além do McMindfulness. Como fazer isso? PURSER: Um olhar mindfulness crítico elimina os obscurantismos que desassociaram o estresse pessoal do sofrimento social. Isso requer novos recursos teóricos e narrativas explicativas que expandam as fronteiras do enfoque individual do paradigma biomédico, que mantém um relato universalista e a-histórico do sofrimento pessoal. Não mais se escondendo atrás da retórica do “dharma universal”, não alegando mais a neutralidade terapêutica ou alegando que a ética é “implícita” ao mindfulness, os praticantes críticos do mindfulness estão dispostos a se posicionar, recusando-se a psicologizar todos os problemas pessoais e a normalizar o estresse. Um mindfulness crítico-cívico ilumina como uma grande quantidade de sofrimento pessoal está ligada a contextos sociais, econômicos e políticos. Isso requer pedagogias críticas que reorientem as práticas para examinar as causas e condições de sofrimento e opressão social, experiências coletivas de trauma cultural, racismo sistêmico e outras formas de marginalização e deslocamentos que não podem ser reduzidas ao psicológico. Isso significa que os currículos de mindfulness não podem ser confinados a espaços privados nem limitados a métodos de gestão de si mesmos. A “Redução do Estresse Baseada no Mindfulness” e outros programas de treinamento em mindfulness foram desenvolvidos como métodos terapêuticos para a gestão de si mesmos, não para a transformação social e a cura coletiva. Tais programas com manuais e scripts não foram projetados para lidar com a natureza emaranhada do sofrimento social. Restaurar a percepção desses vínculos complexos também requer uma maior conscientização de como o poder e os privilégios entre os professores de mindfulness resultaram em uma cumplicidade com uma ideologia neoliberal. DigiLabour Compartilhar Artigo AnteriorDesafios de regulação e organização na gig economy global: entrevista com Alex Wood Próximo ArtigoQuestionando o universalismo por trás dos dados: entrevista com Ulises Mejias 6 de dezembro de 2019