Início » A gig economy é a versão millennial do trabalho precário? Entrevista com Alexandrea Ravenelle Interviews A gig economy é a versão millennial do trabalho precário? Entrevista com Alexandrea Ravenelle A partir de uma pesquisa com 80 trabalhadores de plataformas como Uber, TaskRabbit, AirBnB e Kitchensurfing, Ravenelle traça três perfis: os que contam as histórias de sucesso na área, os que não conseguiram sobreviver e os que usam as plataformas como renda extra. Algumas das provocações da autora são que a gig economy é a versão millennial do trabalho precário e que ela é, ao mesmo tempo, opressora e salvadora da classe trabalhadora. Professora de Sociologia da University of North Carolina at Chapel Hill, Ravenelle está preparando agora está preparando seu próximo livro, After the Hustle, sobre os “bicos de plataforma” com alto status social. Confira a entrevista de Alexandrea Ravenelle à DigiLabour: DIGILABOUR: Você classificou os trabalhadores da chamada “economia do compartilhamento” em alguns “tipos ideais”. Quais são os seus perfis? ALEXANDREA RAVENELLE: O perfil de “histórias de sucesso” usam a gig economy para criar a vida que eles – e muitos de nós – desejam. Eles são seus próprios chefes, controlam sua rotina e o céu parece ser o limite em termos de quanto dinheiro podem ganhar. A flexibilidade da economia do compartilhamento significa que eles não estão presos a uma mesa ou mesmo a uma cidade. Eles podem administrar suas empresas via aplicativo enquanto descansam na praia em um bar. No outro extremo do espectro, estão os lutadores (strugglers). São os trabalhadores que se voltaram para a economia do compartilhamento em um gesto de desespero. Eles fazem parte dos desempregados de longa data ou são trabalhadores sem documentos que lutam para encontrar trabalho graças à importância crescente do E-Verify, um programa federal dos Estados Unidos para confirmar a elegibilidade ao emprego. Em alguns casos, eles simplesmente estão sem sorte: uma perda de emprego ou uma crise pessoal causou um grande revés e suas economias pessoais já tensas não conseguiram lidar com o aumento da pressão. Esses trabalhadores com formação superior encontraram-se lutando para pagar aluguel, comprar comida e até contando as moedas para poder lavar as roupas. Por fim, alguns tiveram sucesso razoável – até mesmo acreditando serem “histórias de sucesso” – até a plataforma para a qual trabalhavam fazer um “pivot”, palavra técnica para dizer uma mudança da missão e revisão de políticas da plataforma. Assim como a automação levou a demissões por atacado dos trabalhadores da indústria automotiva, os “pivots” levam os “lutadores” a tentarem se reinventar. Porém, diferentemente de quem trabalha na indústria automotiva, os trabalhadores da economia do compartilhamento geralmente recebem pouco ou nenhum aviso prévio sobre as principais mudanças no local de trabalho e não têm uma rede de segurança em relação ao desemprego. O apelo do perfil das “histórias de sucesso” é inconfundível. O medo da situação dos “lutadores” é avassalador. No entanto, esses dois extremos são apenas parte da história da economia do compartilhamento. Há também uma terceira possibilidade para os trabalhadores da gig economu. Os “esforçados” (strivers) são aqueles que têm bons empregos e vidas estáveis e que recorrem à economia do compartilhamento para obter dinheiro ou emoção adicional. Diferentemente das histórias de sucesso, eles não pretendem lucrar 40 mil ou 70 mil dólares com a economia do compartilhamento. Eles não falam sobre algo ser “escalonável”, por exemplo. Embora alguns discutam sobre tornar essa atividade um trabalho em período integral, eles permanecem hesitantes em deixar os principais benefícios da estabilidade e do local de trabalho ou então usam a gig economy enquanto fazem a transição para uma nova carreira ou iniciam um negócio. Ao contrário dos “lutadores”, eles não precisam necessariamente desse dinheiro para sobreviver, embora possa proporcionar maior segurança financeira e férias ocasionais. DIGILABOUR: Como raça, gênero e classe estão relacionados em sua pesquisa? RAVENELLE: Raça, classe e gênero estão intrinsecamente ligados na gig economy. Para os “lutadores” – trabalhadores de baixa renda, sem documentos ou parte de desempregados de longa data – a gig economy é uma espécie de último refúgio. Eles não possuem capital econômico ou cultural para manter um império no AirBnB. Portanto, o trabalho que realizam é frequentemente trabalho manual e geralmente apresenta níveis de risco mais altos. Embora plataformas como TaskRabbit geralmente digam aos trabalhadores que, se se sentirem inseguros em uma tarefa, poderão encerrá-la e não serão penalizados, a verdade é que, depois de passar trinta minutos se comunicando com um cliente via chat, agendando uma tarefa de várias horas e viajando uma hora até o local, muitos trabalhadores continuarão a fazer isso, embora a situação pareça questionável. O custo financeiro de ficar sem um trabalho – pago, diga-se de passagem – com o qual estava contando é muito alto. Com isso, esses trabalhadores se encontram em situações questionáveis ou mesmo prejudiciais fisicamente. Embora todos os trabalhadores estejam expostos a um alto nível de risco na gig economy, aqueles com baixa renda são mais vulneráveis a essas situações de exploração por causa do componente financeiro. Há também um aspecto de gênero. Muito do trabalho encontrado nessas plataformas é de serviço ou da área de cuidados: limpeza de casas, compras de supermercado, cuidar de crianças, espera na fila, condução de pessoas para um lado e para o outro. Isso é geralmente realizado por mulheres, sejam elas “donas de casa” ou como parte do segundo turno, como uma atividade que é realizada após um dia de trabalho remunerado. Embora existam algumas pesquisas que mostram que o trabalho realizado pelas mães “donas de casa” custaria mais de seis dígitos anualmente, esse conceito parece abstrato para a maioria das pessoas. Mas a gig economy coloca um preço real de mercado nessas tarefas. Você pode ver claramente que cozinhar não é só um ato de amor, mas tem um preço de 30 dólares a hora. E cozinhar não é apenas a preparação de alimentos, mas também inclui compras de supermercado e limpeza (28 dólares a hora). Há até calculadoras que usam taxas da gig economy para tornar o trabalho não pago/ não remunerado – geralmente feito por mulheres – mais visível. DIGILABOUR: Por que a economia do compartilhamento está fazendo com que retornemos ao passado, especificamente ao início da era industrial? RAVENELLE: No meu livro, mostro que as lutas trabalhistas quase sempre fizeram parte dos Estados Unidos. Mesmo antes da Revolução Americana, houve greves entre cartmen – entregadores que transportavam mercadorias em cavalos – da cidade de Nova Iorque em 1677 e padeiros em 1741. Os trabalhadores que tentavam se organizar por salários mais altos – como oito sapateiros da Filadélfia em 1805 – eram frequentemente indiciados sob a acusação de conspiração para aumentar os salários. Mas em 1810, menos de vinte anos após o estabelecimento do primeiro sindicato nos Estados Unidos, alguns sindicatos já haviam conseguido negociações coletivas, demandas por salário mínimo, unidade entre trabalhadores qualificados e não qualificados e solidariedade entre sindicatos diferentes. É um truísmo dizer que os sindicatos nos deram o fim de semana e a classe média. Mas não há como negar que muitas das proteções que hoje tomamos por garantidas – como o direito de os trabalhadores formarem e ingressarem em sindicatos, o fim do trabalho infantil, o salário mínimo e uma semana de trabalho de 40 horas – também podem ser registrados na conta de protestos organizados por trabalhadores da linha de frente, incluindo greves e manifestações. Esse “novo” movimento econômico promete inovação, mas é apenas parte de uma tendência maior de remodelar o contrato social entre empregador e empregado e mudar as expectativas em relação ao que os empregadores oferecem aos trabalhadores. A economia do compartilhamento está nos fazendo retornar ao início da era industrial, em que os trabalhadores estavam sem redes de segurança ou qualquer tipo de proteção. DIGILABOUR: Quais são as questões legais e políticas envolvidas na classificação “empregador-empregado” na gig economy? RAVENELLE: Uma das promessas da gig economy era que os trabalhadores ficassem livres para criar seus próprios horários e determinar seus próprios salários. A independência significaria liberdade. Mas a grande ironia é que, se esses trabalhadores fossem considerados empregados, eles realmente estariam em uma posição melhor financeira e legalmente. No momento, a tendência é classificar esses trabalhadores como autônomos. Como resultado, esses trabalhadores estão fora das proteções trabalhistas padrão. Nos Estados Unidos, os autônomos não recebem seguro-desemprego, férias pagas, aposentadoria, horas extras, proteção contra discriminação, nem tem direito de formar sindicatos. A falta de direitos trabalhistas significa que qualquer trabalhador que fique doente no trabalho não é compensado por questões de saúde do trabalho, e os trabalhadores são responsáveis por suas próprias despesas de saúde. Nesse cenário, a única lei que eu recomendaria é que todos os trabalhadores sejam classificados como empregados. Se esses trabalhadores fossem considerados empregados, estariam muito melhor protegidos e não seriam tratados como dispensáveis pelas plataformas da gig economy. DIGILABOUR: Quais são os desafios de entender a economia do compartilhamento em toda a sua complexidade, com nuances e contradições, sem cair em estereótipos ou binarismos? RAVENELLE: Para os trabalhadores que possuem altos níveis de capital cultural e social, a economia do compartilhamento pode ser um emprego dos sonhos, com maior flexibilidade, escolha e controle. Por exemplo, os “hoteleiros” do Airbnb, que podem se dar ao luxo de manter várias propriedades para aluguel, e os chefs do Kitchensurfing com habilidades para manter um serviço de catering, têm mais chances de serem “histórias de sucesso” e de se verem como empreendedores. Porém, para os trabalhadores que não possuem altos níveis de capital, a gig economy oferece apenas trabalho de baixo nível, adiciona um aplicativo e simplesmente aumenta o fator de precariedade. Essa nova indústria não está igualando o campo de atuação do empreendedorismo, mas sim destacando o papel do capital – financeiro e cultural. As forças econômicas na sharing economy continuam a dar retornos mais altos para aqueles que possuem riqueza, assim como o economista francês Thomas Piketty (2014) discute em “O Capital no Século XXI”. DigiLabour Compartilhar Artigo AnteriorTrabalho digital e trabalho gratuito em uma perspectiva feminista: entrevista com Maud Simonet Próximo ArtigoRaça e classe no trabalho digital em perspectiva não eurocêntrica: entrevista com Sareeta Amrute 17 de janeiro de 2020