Início » Uberização e a apropriação monopolizada do modo de vida da periferia: entrevista com Ludmila Costhek Abílio Interviews Uberização e a apropriação monopolizada do modo de vida da periferia: entrevista com Ludmila Costhek Abílio Ludmila Costhek Abílio, pesquisadora do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (CESIT) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), foi uma das primeiras intelectuais a falar de uberização no Brasil a partir do texto Uberização: subsunção real da viração, publicado em fevereiro de 2017. De lá para cá, tornou-se referência obrigatória para quem estuda trabalho digital no país. No segundo semestre de 2018, foi supervisora da pesquisa Trajetórias da Informalidade no Brasil Contemporâneo pela Fundação Perseu Abramo, no âmbito do projeto Reconexão Periferias, cuja questão central era saber quem são, como vivem e o que pensam os trabalhadores e trabalhadoras das periferias do Brasil. Ludmila Abílio chegou a afirmar que “o que estão chamado de ‘empreendedorismo’ nada mais é que uma gestão para garantir a sobrevivência”. Ela também é autora do livro Sem Maquiagem, sobre o trabalho de revendedoras de cosméticos, publicado em 2014 pela editora Boitempo, que fala inclusive de relações de trabalho e consumo no capitalismo contemporâneo. No CESIT, Ludmila Abílio desenvolve pesquisas sobre o trabalho dos motofretistas em São Paulo e as atuais políticas de austeridade em relação com as transformações do trabalho no Brasil. Ludmila Costhek Abilio é uma das principais conferencistas do Simpósio Brasileiro de Trabalho Digital, que acontecerá em abril na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) em Porto Alegre. Em entrevista à DigiLabour, ela falou sobre as mudanças na uberização do trabalho, a importância de pensar as categorias a partir de nossa realidade, o gerenciamento algorítmico, a interseccionalidade no trabalho em plataformas e a generalização produtiva e monopolizada do modo de viver da periferia. DIGILABOUR: O seu texto sobre uberização tem quase três anos, você foi uma das primeiras a falar sobre a questão no Brasil, e de lá para cá o termo se popularizou e o fenômeno também se alastrou. Para você, o que é de fato a uberização e o que mudou de três anos para hoje? LUDMILA COSTHEK ABILIO: Não tinha pensado nisso, que já faz três anos. A uberização, na verdade, trata da transformação do trabalhador nesse trabalhador just in time. Acho que é uma forma de resumir essa história. Mas é uma definição complexa. A ideia do trabalhador just in time é a de que você consegue consolidar uma forma de subordinação e gerenciamento do trabalho que está inteiramente apoiada num lado, em um trabalhador desprotegido. E essa desproteção é mais perversa do que simplesmente a ausência de direitos, de uma formalização do trabalho. É um trabalho totalmente desprotegido em termos legais, transformado nesse nanoempreendedor de si próprio, que não conta com nenhuma garantia associada aos direitos do trabalho. Mas eu acho que isso é uma coisa ainda mais profunda. Não que essa desproteção não seja muito importante já de saída, mas há a ideia de que você constitui uma multidão de trabalhadores disponíveis ao trabalho e que vão sendo recrutados. Você tem meios tecnológicos hoje para organizar isso. Então, eles vão sendo recrutados na exata medida das demandas das empresas ou do capital, se a gente quiser falar de uma forma mais genérica, e que não tem garantia alguma sobre sua própria forma de reprodução social. Ser just in time também trata dessa eliminação, que já estava em curso com a flexibilização do trabalho, das definições entre o que é tempo de trabalho e o que não é, o que é o local de trabalho e o que não é. Então, eu acho que a uberização envolve basicamente a consolidação do trabalhador just in time. Isso tem a implicação de que você não terá mais a garantia sobre sua própria remuneração e sua carga de trabalho. Aí entra um processo também muito importante que é a amadorização do trabalho, ou seja, um deslocamento da figura do Estado como regulador das relações de trabalho e que confere legalmente uma identidade profissional. Não só o Estado, mas as próprias relações de trabalho que constituem essa identidade. E isso vai sendo deslocado para a formação de uma identidade amadora. Ser amador é ser extremamente flexível, polivalente e com novas formas de reconhecimento social. É um deslocamento grande em jogo. Eu venho pensando muito como, de repente, o termo se espraiou. Mas eu acho que ele tem essa raiz comum e talvez ele esteja causando impacto porque existe uma percepção social de que isso é uma tendência que está costurando o mundo do trabalho muito além do motorista Uber ou do motoboy, como se todo mundo se soubesse potencialmente uberizável, atravessando as relações afetivas, uma série de formas e esferas da vida que às vezes nem estão se configurando como parte do mundo do trabalho, mas estão postas ali. DIGILABOUR: O que será que é especificamente brasileiro nessa uberização do trabalho? Ou ainda, como não importar acriticamente categorias de análise sobre uberização? ABÍLIO: A uberização vem junto com uma série de desafios que a gente vive permanentemente a partir da periferia. Tem a questão das nossas categorias de análise. A gente sempre constrói nossas categorias a partir do que nós não somos e do que deveríamos ser. Nunca damos conta de escrever de fato o que somos. E isso tem uma capacidade e uma potência de invisibilização social gigantesca. Você invisibiliza a realidade da maioria da população brasileira em nome de categorias que não nos servem. O trabalho formal é um exemplo. Não que isso não nos sirva de horizonte ou que tenhamos que jogar isso fora, mas a forma como a gente vai constituindo nossas categorias de análise reafirmam sempre que aquilo que não cabe na categoria é exceção. Aí é uma regra que nunca se generaliza e você não dá conta de explicar a realidade. E o que eu acho que a uberização faz, assim como outros processos, é mostrar que o que a gente entendeu como exceção, na verdade, é a regra. Se já era assim ou não, é uma discussão: o trabalho informal era um resíduo? Eu acho que nunca foi. O trabalho informal é central no desenvolvimento capitalista, mas há teorias que entendem que ele se configurou como um sinônimo de subdesenvolvimento, como algo a ser superado. E essa ideia se desfez, né? A gente não pensa mais “ah, o trabalho informal vai desaparecer”. Não, até a gente vê o Presidente da República falando “olha, a informalidade é a regra”. A gente vê uma reforma trabalhista que mira na informalidade e traz para dentro do trabalho formal. O que a uberização mostra é uma outra possibilidade também da gente compreender o que é a própria periferia, quando você tem essa tendência generalizante de características que são estruturais da periferia e tomam dimensões também nos países do Norte. Acho que a gente sempre tem que ter muito cuidado com termos como gig economy, economia dos bicos, como se isso fosse uma exceção, uma forma transitória de sobrevivência. Isso é uma coisa estrutural que está tomando novas dimensões e uma nova visibilidade. Acho que esse é um caminho importante para nós pensarmos. DIGILABOUR: E a própria questão da viração, né? ABÍLIO: O termo viração também está se espraiando, mas continua muitas vezes sendo utilizado como sinônimo de bico, do transitório. Quando eu escrevi o texto da uberização como subsunção real da viração, eu estava tentando dizer assim: olha, esse modo de vida que é um trânsito permanente entre o formal e o informal – o empreendimento familiar, os trabalhos que nem são chamados de trabalho, por exemplo, o das revendedoras – não é o transitório, mas o permanente. Isso é um modo de vida que a gente não sabe nem mensurar. Não temos categorias muito fortes de análise para nomear e entender isso. E a uberização se apropria produtiva, racional e monopolisticamente desse modo de vida. Por que choca tanto ver o ciclista, o jovem negro carregando baú com a bicicleta? Isso teve até uma visibilidade social. A gente está vivendo um país tão anestesiado socialmente, e a brutalidade é tão permanente em nossa História que você até pensa: poxa, por que isso teve uma visibilidade? Porque isso é cotidiano. A brutalidade do mundo do trabalho está aí na nossa cara o tempo todo. Mas ganhou visibilidade porque eu acho que, de alguma forma, a gente consegue reconhecer isso. Há uma empresa que está se apropriando produtivamente do modo de vida da periferia, organizando e subordinando esse modo de vida. Essa ideia de viração também não é do transitório, não é do bico, mas também uma ideia de algo estruturante. DIGILABOUR: E aí a gente acabando essencializando noções como precarização e flexibilização… ABÍLIO: É esse problema das nossas categorias. Então, por exemplo, a gente fala em flexibilização. O que é flexibilização nesse mercado de trabalho brasileiro, que se assenta estruturalmente na informalidade, na alta rotatividade, no emprego doméstico não regulado? Faz sentido falar nisso? Faz sentido falar em precarização do mundo do trabalho onde mais da metade da população trabalhadora ganha até um salário mínimo e meio? Do que a gente está falando? Ao mesmo tempo, a gente joga fora esses termos? Porque, de fato, há uma transformação no mundo do trabalho. A Ursula Huws fala algo muito interessante, mais ou menos assim: “a nossa dificuldade em nomear as categorias não é porque as categorias estão difíceis de serem nomeadas, mas porque os nossos horizontes políticos não estão claros”. Então, a gente patina, porque, na verdade, o problema não é o nome que a gente dá, é pra onde a gente está mirando quando a gente está nomeando algo. Quais são as nossas referências? Acho muito importante o que ela falou porque a gente patina nessas dificuldades. Eu não acho que a gente tem que jogar esses termos fora. Mas, ao mesmo tempo, você não pode invisibilizar que esse mundo do trabalho é precário e flexível de nascença. Mas há elementos novos. Por isso sempre é muito importante a gente olhar e pensar em termos de subordinação e gerenciamento, que aí você descreve os elementos, e com o horizonte político claro. O que você está querendo enxergar nessa história? Que relação está mapeando sua visão? Mas esse dilema nunca tem fim. DIGILABOUR: Falando em subordinação e gerenciamento, um dos elementos dessas mudanças é justamente o gerenciamento algorítmico. Como você está pesquisando essa questão? ABILIO: Eu estou estudando isso com uma juíza do trabalho, Laura Bittencourt, e em breve vamos publicar um texto sobre o assunto. A gente quer juntar as perspectivas do Direito e da Sociologia para pensar essa ideia de subordinação com participação do algoritmo. Não é simplesmente mais um meio tecnológico de organização do trabalho. Há uma mudança qualitativa acontecendo. Por ora, o que dá para elaborar é que o gerenciamento algorítmico traz a possibilidade de você mapear completamente a atividade de uma multidão de trabalhadores e controlar essa atividade. Ao mesmo tempo que você mapeia e processa o que é essa atividade, você consegue também definir permanentemente as regras do jogo sobre como essa atividade tem que ser utilizada. Daí essa ideia do just in time. É difícil pensar nessa multidão just in time sem pensar no gerenciamento algorítmico porque você tem que ter os meios de processar isso e transformar em regras que são permanentemente cambiantes. Aí é o caminho que eu e Laura estamos pensando: uma nova forma de estabelecer as regras do jogo e a forma de mobilização dos trabalhadores. Há também um processo enorme de informalização que vem com o gerenciamento algorítmico. As regras mínimas não estão pré-estabelecidas. Parece que vira um jogo mesmo, né? DIGILABOUR: Há uma gamificação disso… LUDMILA: Sim, mas é um game em que as regras mudam permanentemente. Aí é o caminho que estou tentando fazer com a Shoshana Zuboff a partir da ideia de um deslocamento da ideia contratual do trabalho. O que está acontecendo é uma coisa nova e a gente tem que elaborar o que é isso. A Zuboff fala dessa possibilidade de você mapear inteiramente o processo de trabalho e como isso o transforma qualitativamente. Ela vai além do mundo do trabalho, entendendo a vigilância como essa possibilidade permanente de transformar todas as nossas atividades cotidianas em dados administráveis. Agora eu acho que a gente precisa aprofundar esse debate especificamente para o mundo do trabalho. O que é essa extração cotidiana e a administração dos dados de uma forma não compactuada? Não é mais uma relação contratual. É uma outra coisa que está acontecendo. Mas, ao mesmo tempo, algumas coisas se ligaram completamente. Porque isso tem a ver também com a amadorização do trabalho, as perdas de formas no trabalho. Na pesquisa com as revendedoras, eu fui enxergar a uberização por um caminho inesperado. Não tinha nada a ver com dados ou plataformas. Era algo da subordinação: como é que se organiza e se gerencia essa relação de trabalho. E quanto menos forma de trabalho isso tem, quanto mais informal é, mais eficientemente administrada é essa relação. É algo que coloniza o que é cotidiano, tempo de trabalho, o que não é trabalho. É muito poderoso. DIGILABOUR: E você já falava em “trabalho de consumo” na pesquisa com as revendedoras, no livro Sem Maquiagem… ABÍLIO: Sim, e naquela época eu nem tinha contato com a ideia de algoritmo. Então, hoje isso toma uma outra dimensão que você tem uma possibilidade de organizar e de gerenciar. Parece que a gente não consegue ainda ter a clareza de qual a profundidade disso, como está travessando nossa vida em todas as esferas. E são novas formas de subordinação e extração da vida que você vai entrar em conversar sobre o que é valor, o que não é, e isso também é uma coisa sem fim. Acho que mais do que se perder em discussões se, por exemplo, Facebook produz ou não valor, é mais interessante pensar as formas de subordinação e extração das nossas vidas que estão acontecendo permanentemente. DIGILABOUR: Falar de trabalho no Brasil, ainda mais trabalho em plataformas, é também pensar questões de gênero e raça. Como essas questões tem atravessado suas pesquisas? ABILIO: Eu comecei pelas revendedoras Natura. As características do trabalho tipicamente feminino estão se generalizando pelo mundo do trabalho. Ainda mais as características do trabalho tipicamente feminino negro. Hoje, o ápice da uberização, na verdade, repõe as características do que é o trabalho da mulher negra da periferia. Esse é o primeiro passo. E aquilo que era socialmente invisível, quando começa a se generalizar, e atingir outras classes, os brancos, os homens brancos, quer dizer, os homens brancos europeus, aí as pessoas começam a pensar em uma “tendência”. Ganha uma visibilidade e uma importância política que não tinha. Por exemplo, as revendedoras da Natura não trazem importância política, né? Já os motoristas Uber mexem com o debate nas legislações mundiais. Então é interessante pensar o que tem visibilidade e o que não. O surgimento no espaço urbano dos bikeboys traz muito forte questões de raça, classe, gênero e juventude. Uma compreensão que a gente precisa ter é como essas formas de subordinação e gerenciamento vão se apropriando e organizando uma interseccionalidade de desigualdades que está operando no mundo sempre. E vão fomentando isso de novas formas. Por exemplo, hoje o jovem negro periférico se torna entregador do iFood de bicicleta. Por que de bicicleta? Ele está na ponta mais precária do precário. Ele está mais precário que o cara que é motoboy, que tem alguma condição de investir naquela atividade de outra forma. Então é a energia física dele, permanentemente. Aí há as hierarquias: o sonho do bikeboy é se tornar motoboy. E há reconfigurações. Há uma apropriação produtiva da condição do jovem negro periférico, colocando-o para trabalhar nessa condição. São essas características que possibilitam uma forma de gerenciamento e subordinação especificamente desse trabalho do bikeboy. Por outro lado, há a reconfiguração da profissão do motoboy. No filme GIG – A uberização do trabalho, há um motoboy que diz: “nossa profissão está virando um bico”. E o que ele quer dizer com isso? É algo que pesquisei com os motoboys durante anos. Existe uma identidade profissional muito consolidada do motoboy. A figura do cachorro louco não corresponde à realidade do trabalho dos motoboys, que é feito da loucura do trânsito, e isso não significa que o cara tem o perfil de cachorro louco. Na verdade, há um pai de família, trabalhador, que encontrou no trabalho de motoboy condições melhores de remuneração com a qualificação que ele tem em relação a outros pelos quais ele já passou na vida. O que é virar um bico? É que essa relação profissional da atividade está se desfazendo. Há uma entrada de jovens, de pessoas que estavam desempregadas que não pensam em ser motoboy. Com a entrada de iFood e Rappi, isso amplia a oferta de trabalho. Há também restaurantes e vários estabelecimentos que não trabalhavam com isso. Há clientes que não usavam isso. Ou seja, há uma ampliação de todo esse mercado. E você abre a porta de entrada de uma nova forma que é amadora. Então, o cara do Rappi é muito diferente do que era motoboy, que passava o dia fazendo entrega para uma empresa terceirizada. Isso reconfigura a identidade profissional dos motoboys e isso tem a ver com essas condições de desemprego, idade, raça e classe. Está tudo operando aí, e sendo organizado e apropriado produtivamente. Acho que esse é o grande lance das empresas-aplicativos – seja que nome a gente dê para isso. Mas elas conseguem gerenciar e se apropriar produtivamente dessa condição. Então, são muitas coisas ainda para aprofundarmos: raça e gênero, como os algoritmos vão reproduzindo ou produzindo novas formas de racismo, desigualdades. A gente ainda tem chão para percorrer. DIGILABOUR: E tem o nosso papel como pesquisadoras e pesquisadores. ABILIO: Principalmente se a gente conseguir fazer pesquisas que deem voz aos trabalhadores e consigam expor as suas perspectivas, condições e motivações. Isso não é fácil da gente fazer. Mas eu acho que isso tem uma importância política muito grande em um mundo que está repensando socialmente questões como regulação. O campo da uberização desafia enormemente, por exemplo, a área do Direito, no sentido de como reconhecer a uberização. Desafia também todo esse discurso do empreendedorismo. Não é simples de entender e criticar. Isso tem uma potência muito forte que obscurece todo um processo de eliminação dos direitos. Ainda mais no momento em que a gente está vivendo, isso fica ainda mais desafiador. DigiLabour Compartilhar Artigo AnteriorRaça e classe no trabalho digital em perspectiva não eurocêntrica: entrevista com Sareeta Amrute Próximo ArtigoTrabalho e cultura da fofura no Japão: entrevista com Gabriella Lukács 31 de janeiro de 2020