Início » A refeudalização do capitalismo digital: entrevista com Adam Arvidsson Interviews A refeudalização do capitalismo digital: entrevista com Adam Arvidsson Adam Arvidsson, professor de sociologia na Universidade de Nápoles Federico II, tem se dedicado a pesquisar questões de valor no capitalismo digital. Alguns de seus principais trabalhos são sobre a Lógica social do derivativo, em que relaciona Facebook e finanças, e Capitalismo e o comum (com vídeo). Chegou a investigar também as condições de trabalho na indústria da moda É coautor dos livros The ethical economy: rebuilding value after the crisis e Introduction to Digital Media. Lançou em outubro de 2019 o livro Changemakers: the industrious future of the digital economy, em que argumenta sobre a refeudalização do capitalismo e a emergência de uma “modernidade industriosa” em meio a crise do capitalismo industrial. Esse futuro se relacionaria a um microempreendedorismo que é, ao mesmo tempo, baseado no comum e orientado para o mercado. Confira a entrevista de Adam Arvidsson para a DigiLabour: DIGILABOUR: Por que e como o capitalismo atual está vivendo um período de refeudalização? ADAM ARVIDSSON: Esse é um conceito que eu peguei de Giovanni Arrighi, no livro O Longo Século XX, e ele, por sua vez, tomou a discussão emprestada de Ferdand Braduel, que estava discutindo a natureza cada vez mais avessa a riscos do capitalismo mercantil italiano entre os séculos XV e XVI, uma vez que o “boom” das cidades italianas como Florença, Pisa e Veneza acabou e que o centro da atividade capitalista começou a se deslocar para o noroeste da Europa e também com a abertura do Atlântico. Houve a colonização da África e da Ásia, etc. Essas pessoas que costumavam ser tipo comerciantes empreendedores fervorosos, com o hábito de correr riscos enormes para ganhar muito dinheiro, mas também expandindo e construindo as infraestruturas de um capitalismo comercial emergente, tornaram-se muito menos avessas ao risco e não tinham mais, realmente, capacidade de enxergar além do paradigma do comércio em que haviam desenvolvido suas riquezas. E agora, como estavam sendo superados por outros, estavam cada vez mais inclinados a investir seu dinheiro nos tipos de bens de consumo típicos da aristocracia feudal. Isso significou comprar vilas no campo, ou investir em arte ou consumo de luxo, o que, é claro, contribuiu muito para gerar o Renascimento na Itália. E acho que a situação do capitalismo do Vale do Silício é bastante semelhante hoje, no sentido de que temos várias empresas com uma enorme quantia de dinheiro à sua disposição, mas elas praticamente não têm ideia do que fazer com isso. Portanto, a Apple tem à sua disposição 250 bilhões de dólares em dinheiro e realmente não sabe o que fazer, exceto produzir outro iPhone. Os enormes investimentos que estão sendo direcionados a empresas pouco rentáveis, como Uber, Deliveroo ou até Airbnb, são basicamente bilhões de dólares que são investidos em pequenas melhorias marginais de uma sociedade de consumo do século XX que, de qualquer forma, já teve seu tempo em certo sentido. Portanto, de um determinado modo, parece que a situação é bastante semelhante à italiana do final do século XV e um pouco do início do século XVI, que é uma superabundância de capital e uma ausência de ideias reais sobre o que fazer com ele. É um tipo de mentalidade geral avessa ao risco, em que você prefere acumular dinheiro ou investi-lo em campi corporativos, bônus enormes e o tipo de estilo de vida que alimenta as crianças ricas no Instagram. DIGILABOUR: Por que você considera que o retorno às relações de produção industriosas é a principal contradição do capitalismo – e como isso acontece de diferentes maneiras no Ocidente e na China, por exemplo? ARVIDSSON: Não sei se o retorno das relações de produção industriosas é a principal contradição do capitalismo contemporâneo. Eu certamente escrevi isso, mas às vezes escrevemos coisas no calor do momento. É certamente uma contradição importante do capitalismo contemporâneo. Outra contradição importante é, obviamente, o que estamos vendo agora, que é o tipo de mecanismos de feedback que estão sendo gerados pelo nosso impacto, pela cena capitalista e seu impacto na biosfera. Portanto, deve-se manter, levar isso em consideração também, mas é definitivamente uma contradição importante no sentido de que é um movimento que gerou contradição, em seu sentido marxista, do capital, sendo a contradição em movimento, como diz Marx. É um movimento gerado pelo próprio capitalismo. O sucesso do capitalismo criou as condições necessárias para o surgimento dessas indústrias de massa. Por um lado, é uma socialização do capital na forma de valor de uso, como maquinaria, conhecimento e tudo mais nos termos do novo comum: tudo, desde o conhecimento sobre como criar um iPhone ou um computador decentemente funcional, ou como fabricar um par de tênis que se parece e funciona como um par de Nikes; que costumavam ser conhecimentos específicos acumulados nas fábricas e zelosamente guardados, agora são basicamente socializados nas cadeias de suprimentos. E junto com outros tipos de digital commons, como software colaborativo, software livre e os tipos de habilidades que agora residem em diversas comunidades de práticas. E, por outro lado, há o triunfo do capitalismo que se livra dos trabalhadores, com a exclusão e o êxodo de várias partes substanciais da classe trabalhadora global, ambos no nível mais baixo do que você poderia chamar de “capital humano” ou “conjuntos de habilidades”, mas também em um nível mais alto, no sentido de que mesmo as pessoas de classe média com formação universitária no Ocidente têm cada vez mais dificuldade em encontrar o tipo de carreira corporativa para a qual teoricamente teriam se preparado. Portanto, a combinação disso com uma abundância e disponibilidade de capital – no sentido de meios de produção – e uma grande massa de indivíduos altamente qualificados que essencialmente não têm outra escolha senão se engajar em algum tipo de atividade empreendedora, é uma espécie de contradição resultante do triunfo do próprio capitalismo global neoliberal. Isso se desenrola de maneiras muito diferentes em lugares distintos. Até agora, o modelo ocidental tentou contê-lo em noções como “indústrias criativas “ou startups ou inovação social. Mas isso se mostrou insuficiente e o que você vê no Ocidente é uma mobilidade social descendente bastante rápida por parte de trabalhadores com conhecimentos e educação formal, e uma espécie de uma possível fusão com o tipo de economia informal ou pirata que está proliferando e crescendo nos últimos anos. A China parece estar adotando mais uma espécie de caminho controlado para isso. O que a China parece estar fazendo é, em certo sentido, habitar novamente a antiga e esquecida noção de um modo de produção asiático, que é a combinação de, por um lado, ênfase e estímulo à inovação em massa e ao empreendedorismo em massa – essas são, de fato, políticas de inovação social da China – e, por outro lado, um controle muito restrito, de cima para baixo e despótico por meio de algoritmos, mecanismos de vigilância e outras coisas para que você consiga, em certo sentido, integrar esse tipo de indústria ao ressurgimento de um modelo de Estado chinês despótico ou mesmo absolutista. E isso é, de fato, muito parecido com o que a China era antes do capitalismo. Parece muito semelhante ao modelo de economia política da dinastia Ming, que acompanhou o que muitos pesquisadores consideram a revolução industrial da China dos séculos XVII e XVIII, ou seja, um aumento gradual, mas constante e importante da atividade de mercado, no comércio, no artesanato, no início das fábricas, etc. Por outro lado, um poder imperial do Estado fazia questão de que essa sociedade de mercado nunca se tornasse capitalista. Na Europa, uma sociedade de mercado emergente poderia se tornar capitalista porque não havia poder centralizado para resistir ao interesse da classe capitalista, enquanto na China, é claro, a existência de um poder imperial consolidado assegurava que quaisquer comerciantes que se tornassem muito bem-sucedidos ou poderosos demais fossem imediatamente esmagados, de forma a não criar nenhuma alternativa. Então, talvez o que estamos vendo agora –com o pivô direcionado à China, o que provavelmente acontecerá após o colapso ocidental com o coronavírus – seja talvez o retorno de um modo chinês de gerenciar isso. Então, por um lado, várias políticas que estimulam o empreendedorismo em massa, a facilitação de mercados digitais como Alibaba e Taobao, sistemas de pagamentos digitais, crédito, que é um aspecto importante do desenvolvimento social chinês, um fundo enorme para investimentos em empresas de pequena escala, as famosas “aldeias de Taobao”, etc. E, por outro lado, dados e algoritmos controlados de maneira muito rígida, despótica e de cima para baixo garantem que essa liberdade não se desvie do que se entende como socialmente desejável. DIGILABOUR: Você coloca que as startups refletem uma padronização da inovação. Fale-nos mais sobre isso. ARVIDSSON: As startups não servem realmente para gerar inovação. O objetivo do sistema de startups é gerar veículos para investimento financeiro. As incubadoras de startups são como uma cadeia de transmissão que faz mediação entre, por um lado, uma intelectualidade de massa e a disponibilidade de um número de pessoas que estão preparadas e dispostas a trabalhar longas horas por salários muito baixos e assumindo níveis muito altos de risco empresarial com, por outro lado, uma abundância de capital. Mas não devemos esquecer que a maior parte do boom das startups e, em particular, a existência de unicórnios ridículos como WeWork ou Uber devem-se, na verdade, a mais de dez anos de flexibilização quantitativa, em que dinheiro é essencialmente liberado nos níveis mais altos da economia financeira. E o problema não é a escassez de dinheiro ou de capital, mas a escassez de objetos de investimento. Portanto, as startups são essencialmente uma maneira de transformar a intelectualidade de massa nos tipos de objetos de investimento que podem ser digeridos pela maquinaria burocrática do capitalismo financeiro. E para fazer isso, é claro, eles precisam ser padronizados, precisam ser capazes de enfrentar o velho e poderoso problema de transformar a incerteza em risco. Frank Knight, em seu famoso livro da década de 1920, argumentou que você não ganha dinheiro com riscos, porque, de acordo com a hipótese racional do mercado, o risco é o desconhecido-conhecido e já foi precificado em valores de ativos ou mercados. Você ganha dinheiro com a incerteza, que é um desconhecido-desconhecido. Uma inovação que aponta para o futuro é necessariamente uma incerteza, é desconhecido-desconhecido, e a maneira pela qual você pode transformá-lo em um ativo com potencial de investimento é transformando-o em um risco com alguma garantia do que é e do que pode ser. Isto é, seu risco pode ser quantificado de alguma maneira. Mas, para quantificá-lo, é claro, você precisa validá-lo com certos padrões. E é basicamente isso que está acontecendo, sociologicamente falando, no sistema de incubadoras de startups. Se você entra em uma startup ou uma incubadora, o que você faz é estar sendo treinado essencialmente para realizar a subjetividade do empreendedor de startups, sendo informado que, como no slogan, as ideias são baratas. Sua ideia não importa de verdade. O que importa é como você a executa, e que você a execute de uma maneira que possa ser mensurada pelos vários modelos de avaliação que estão sendo usados pelos capitalistas. Você essencialmente aprende a se conformar a esse modelo, a pensar em sua inovação de acordo com os modelos existentes, mas também a pensar em si mesmo como empreendedor, subjetividade empresarial, de acordo com esses tipos de modelos bem padronizados, rigorosos e pré-determinados, que incluem como gerenciar sua vida emocional, suas relações, seus afetos, seus interesses, seu estilo de vida e outras coisas do tipo. E, é claro, somado a esse tipo fonte de padronização, também há uma dimensão importante de um tipo de rebanho nesses investimentos, que é o que todos sabemos também acerca de outros tipos de mercados financeiros. Ou seja, quando uma tecnologia específica parece promissora, todo mundo se joga nessa tecnologia e, é claro, o mero uso dessa tecnologia se torna uma maneira de adquirir investimentos, de modo que, todos os tipos de projetos que saem do sistema, ou quase todos os projetos que saem do sistema, são variações de algum tipo de capacidade que essa tecnologia possui. O que você pode fazer com um aplicativo? O que você pode fazer com o blockchain? O que você poderia fazer com um site na década de 1990? E talvez não tenha muita importância se os modelos de negócios são realmente sustentáveis. Quase nada do que sai da economia startup é sustentável, de qualquer maneira. Então, o que importa é que o uso dessa tecnologia possa ser estruturado de tal maneira que pareça ser um objeto de investimento atraente, ou pelo menos calculável. DIGILABOUR: Quais são os limites e as potencialidades do aspecto “comum” da economia industriosa? ARVIDSSON: Muito do que é apresentado pelo lado “comum” da economia industriosa é simplesmente uma transposição dos desejos e aspirações políticas de resíduos deixados do século XX em uma nova era. Portanto, há muito pensamento positivo ao acreditar que uma economia baseada no comum seria mais igualitária, ou mais democrática ou mais sensível a preocupações ecológicas. E essas são, obviamente, todas coisas desejáveis. E o fato é que é uma maneira econômica de pensar a economia, que é orientada para tipos de objetivos políticos e ideológicos, e não para valores de uso. O problema com isso é algo parecido que aconteceu com a economia colaborativa. Você cria a economia de compartilhamento porque acha que seria bom compartilhar, mas você não realmente considera o fato de que as pessoas na realidade não querem compartilhar. Quero dizer, todo mundo quer ter sua casa própria e energizada, mesmo que seja racional ter uma que você compartilhe com seus vizinhos, mas isso nunca funciona. Então, no sentido de que há um componente excessivamente idealista, que é bem diferente do que se poderia dizer da versão “bazar” ou “pirata” da economia industriosa, que é muito mais sensível a existir, de fato, nos valores de uso. E isso soa, é claro, como tendo mais sucesso de alcance. Um cenário possível e talvez desejável pode ser uma reunião entre as duas dimensões. Eu acho que isso é muito provável porque os trabalhadores do conhecimento que dão vida ao lado “comum” da economia industriosa são, em grande parte financiados pelo pelos fundos públicos. Na Europa, a Comissão Europeia investiu muito dinheiro nesses tipos de iniciativas. Provavelmente se tornarão cada vez mais proletarizadas, porque esses tipos de fundos se tornarão cada vez mais escassos, assim como o tipo de margem de manobra que você pode ter. Mas a possibilidade de conseguir se envolver no empreendimento da economia do compartilhamento, porque você tem outro tipo de recursos dos quais poderia se beneficiar – poupança ou família, ou outras coisas assim – vai desaparecer. Então, haverá uma proletarização por parte dos trabalhadores do conhecimento e, ao mesmo tempo, também haverá um empoderamento da economia de bazar ou pirata, porque preencherá muitos espaços deixados em aberto por um colapso gradual e acelerado da economia capitalista globalista, que que vemos claramente agora com a pandemia do Covid-19, que haverá transformações muito concretas em termos de cadeias de suprimentos globais e economia alimentar. E acho que haverá espaço para o tipo de economia pirata ou de bazar preencher isso. Assim, o tipo de mobilidade descendente dos trabalhadores do conhecimento, e talvez a mobilidade ascendente versão mais popular dessa economia, pode levar a um tipo de convergência entre as duas lógicas, onde a atenção para o valor de uso por parte da economia pirata e a atenção aos valores políticos e sociais ou ideais políticos e sociais por parte do comum e também o tipo de conhecimento tecnológico relacionado ao comum podem se unir em novas e muito inesperadas formas. Aparentemente, parte disso já está acontecendo na China, onde em Shanzhai, engenheiros desempregados e pessoas com formação em engenharia estão começando a trabalhar com redes similares a Shanzhai e esses tipos de rede de produção de factoring bem desprezível. Então eu acho que esse tipo de convergência oferece muitas possibilidades interessantes. E também pode introduzir um tipo de posição política mais pragmática na economia do comum. Como, por exemplo, muitos projetos na economia baseada no comum tendem a replicar soluções iguais às do Vale do Silício que eles criticam. Quero dizer, por exemplo, se você ler projetos de blockchain socialmente conscientes ou socialmente orientados, muitas dessas coisas estão, essencialmente, sugerindo que podemos usar blockchain para se livrar do capitalismo, ou podemos usar blockchain para equalizar mercados ou algo assim. E isso mostra, é claro, que há uma completa falta de atenção à complexidade maquiavélica dos processos socioeconômicos. Mas uma atitude mais pragmática por parte da economia pirata pode corrigir isso e tornar também as aspirações políticas mais fundamentadas ou realistas. DIGILABOUR: Por que, em sua visão, o problema do Facebook é justamente não explorar os usuários de forma eficiente? ARVIDSSON: Esta é uma pequena provocação o meu antigo arqui-inimigo Christian Fuchs, [risos], com quem venho debatendo essas coisas há muito tempo. Mas acho que essa perspectiva é a que Giovanni Arrighi disse uma vez: só há uma coisa pior do que ser explorado pelo capital que é não ser explorado pelo capital. Porque se você não é explorado pelo capital, está fora de seus circuitos e está essencialmente morrendo de fome. Minha opinião sobre isso com o Facebook é que a quantidade de valor que o Facebook é capaz de coletar de seus usuários é tão ridiculamente pequena que a quantidade de uso de todas essas tecnologias avançadas, para fazer algo que o Facebook faz – que é reunir os dados de todo mundo para vender xampu e comida de cachorro, com níveis de eficiência limitados – simplesmente não é um uso racional desses recursos.. E não é uma maneira racional de valorizar o capital investido. E, nesse caso, é um capitalismo que carece de racionalidade. Porque se você é explorado, pelo menos segundo uma racionalidade de exploração, você pode resistir ou pode se reapropriar ou pode contornar, ou fazer sua própria plataforma, certo? E, porém, se o capital não é realmente capaz de ganhar dinheiro com a sua exploração, é simplesmente um sistema irracional e não possui nenhuma dialética na qual você possa se agarrar. Portanto, em um certo sentido, não é uma proposta política se um sistema como o Facebook fosse realmente capaz de explorar seus usuários com eficiência. Se eles tivessem algum tipo de racionalidade, ele também poderia se tornar um projeto para algum tipo de resistência ou organização revolucionária. Mas se simplesmente não é. O que quero dizer é: se é algo parecido com uma espécie de economia feudal extrativista agonizante do século XIV que não é mais capaz de realmente ganhar dinheiro, por mais que se aproveite dos camponeses e do sistema tributário – então é apenas, simplesmente, um sistema mais ou menos destinado a murchar. DigiLabour Compartilhar Artigo AnteriorMidiatização profunda, infraestruturas e novas formas de organização: entrevista com Andreas Hepp Próximo ArtigoNão há trabalho ou capitalismo sem comunicação: entrevista com Roseli Fígaro 10 de abril de 2020