Início » A Retórica da Economia do Compartilhamento: entrevista com Athina Karatzogianni Interviews A Retórica da Economia do Compartilhamento: entrevista com Athina Karatzogianni Athina Karatzogianni é professora de Comunicação da University of Leicester e tem pesquisado temas relacionados às teorias de novas mídias, redes de resistências e políticas globais. Ela é uma das autoras do livro Platform Economics: rethoric and reality in the sharing economy, junto com Cristiano Codagnone e Jacob Matthews. A obra destrincha as narrativas sobre a economia digital e suas alternativas, como a questão do comum e o cooperativismo de plataforma. DIGILABOUR: Você e os coautores do livro Platform Economics identificaram três grandes narrativas sobre a economia de plataforma: utopia social, otimismo em relação aos negócios à economia, e pessimismo social. Do que se tratam? ATHINA KARATZOGIANNI: Nós identificamos esses aspectos discursivos e retóricos e, partir dessas três vertentes, selecionamos e discutimos os temas mais controversos, que contrastamos com as evidências empíricas. Entre a análise da retórica e da empiria, também mostramos como isso foi usado no que chamamos de “lobby como enquadramento”. Além disso, realizamos uma análise da produção ideológica em relação aos atores da economia do compartilhamento – discursos a partir do neoliberalismo, do comum e do cooperativismo de plataforma, a partir do trabalho de campo que realizamos em Barcelona, Paris e Berlim. Cada uma delas pode ser associada a grandes narrativas sobre o futuro: grande transformação (utopia social), globalização orientada para o crescimento (otimismo em relação aos negócios e laissez faire econômico) e barbárie ou uberização (pessimismo social). A primeira é uma visão de mudança inteiramente liderada pela comunidade, pela qual a reinserção social da economia é alcançada inteiramente por causa de mudanças no comportamento e na cultura. No segundo item, os indivíduos e as empresas inovadoras são capacitados de maneira mais competitiva e individualista e, então, as forças de mercado são deixadas descontroladas. O terceiro vê as empresas e o trabalho como sendo desintermediados, descentralizados e desconstruídos em elementos menores, a serem novamente mediados por meio de controle panóptico ativado algoritmicamente. É o mundo do “cognitariado lumpen”, do “assalariado algorítmico” e da “algocracia”. Os trabalhos são substituídos por robôs ou transformados em “robôs” (como na Amazon Mechanical Turk), realizando microtarefas altamente rotinizadas e repetitivas. Isso tem aumentado o desemprego e a desigualdade a níveis sem precedentes e alimentado ainda mais sentimentos antagônicos não apenas em relação aos “grupos externos” (ou seja, imigrantes), mas também aos “grupos internos”. No livro, destacamos cinco temas que desenvolvemos: Cooptação neoliberal da retórica e do movimento da “economia do compartilhamento”; Capital social e ressurgimento da questão da comunidade; Efeitos da estratificação e da distribuição de renda (isto é, desigualdade, discriminação racial e questões trabalhistas); Impactos ambientais (negócios mais ecológicos, menos emissões de CO2…) e socioeconômicos (bem-estar dos consumidores, ganhos de eficiência, impactos em indústrias disruptivas…); Regulação (ou seja, ranqueamentos e classificações como formas de auto-regulação); DIGILABOUR: Vocês também identificaram oito temas retóricos em relação à economia do compartilhamento. Quais são eles? KARATZOGIANNI: O movimento de “compartilhamento” surgiu como uma forma de utopia social a partir de uma narrativa mais ampla acerca da sabedoria das multidões e a criatividade do comum. Depois que o desenvolvimento de plataformas de “compartilhamento” deu uma guinada mais “comercial”, o desencanto trouxe cada vez mais críticas. Outros interesses (de indústrias disruptivas, por exemplo) e preocupações (por alguns formuladores de políticas públicas, especialmente por defensores de consumidores e sindicalistas) mais tangíveis exacerbaram o conflito no debate que envolve atualmente a “economia do compartilhamento”. Isso inclui, além da ativação política das empresas disruptivas, as tensões urbanas relacionadas às externalidades negativas causadas por serviços de transporte e hospedagem. O fato de as plataformas de “compartilhamento” operarem em uma “área cinzenta” onde não são legais nem ilegais, mas às vezes violam as leis locais, também levanta preocupações genuínas ou instrumentais em relação à proteção dos consumidores e aos direitos dos trabalhadores “independentes” ou “sob demanda”. Combinando uma análise geral com uma análise do trabalho digital, identificamos oito temas retóricos: 1) Plataformas que ajudam a ressurgir a questão das comunidades, fortalecendo o capital social e aumentando a confiança generalizada; 2) Queda nos benefícios, especialmente para os mais necessitados; 3) Promessas de consumo verde (efeitos ambientais positivos) e ganhos de bem-estar socioeconômico; 4) Retórica de um mundo que permita a migração do trabalho digital sem fronteiras, com uma meritocracia mundial online, o que está presente no mercado de trabalho digital, no trabalho de economistas e em documentos de relações públicas; 5) Dinheiro extra como motivação para as pessoas flexíveis trabalharem no mercado digital (estudantes, aposentados, pais que ficam em casa, etc.); 6) A alegada contribuição da economia digital de trazer de volta ao trabalho os desempregados e os subempregados; 7) Discurso sobre flexibilidade, autonomia e criatividade que supostamente essas plataformas oferecem; 8) Produção ideológica ilusória e otimista de que os avanços tecnológicos e a organização alternativa do trabalho digital baseada em modelos inovadores de produção (comum ou cooperativismo de plataforma) podem “transformar” o capitalismo como modelo rumo à melhoria da comunidade e a uma sociedade mais justa. DIGILABOUR: Como se deu a metodologia da pesquisa? KARATZOGIANNI: A partir de três conjuntos de literatura (economia crítica da plataformização, organização do trabalho e ativismo digital), usamos uma estrutura integrada para analisar a produção ideológica em plataformas digitais, particularmente em relação à economia compartilhada. Analisamos documentos, entrevistas feitas em campo com 28 pessoas e observação de eventos em Barcelona, Paris e Berlim entre 2015 e 2017. Descobrimos que existem três vertentes ideológicas dominantes: “economia compartilhada”, “comum” e “cooperativismo de plataforma”, dentro de um espectro que varia desde legitimar o neoliberalismo e/ou reafirmar um capitalismo reformista e mais humano até visões mais radicais: uma sociedade cooperativa orientada ao comum e resistência à privatização por meio da recuperação do espaço público como comum. Apesar da óbvia diferenciação entre plataformas empresariais da gig economy e pequenas plataformas orientadas para a comunidade, no estilo cooperativista, e as várias modalidades intermediárias, a gestão de trabalho interno e externo não é um mero exercício de produção de valor, pois afeta condições estruturais que atravessam setores industriais, mas também produz discursos ideológicos e culturais particulares, atualmente envolvendo a recuperação dos comum, usado a partir do que Boltanski e Thévenot chamam de “registro de justificativa moral”. Investigamos mais profundamente a produção ideológica e as estratégias agressivas de players intermediários que operam dentro do que Kenney e Zysman chamam de “ecossistemas” baseados em plataforma gerados de forma privada. Também investigamos a produção ideológica de alternativas, como o comum e o cooperativismo de plataforma, em termos de resistência digital ao trabalho e novas linhas de ação possíveis. DIGILABOUR: Quais são as contradições presentes no “comum”? KARATZOGIANNI: Entrevistamos um usuário do Goteo, um artista e ativista de jogos digitais que levantou fundos para a produção de um documentário que ilustra a implementação de redes mesh em comunidades rurais no norte da Grécia, e como isso também contribuiu para a desenvolvimento de processos produtivos mais ou menos autônomos, principalmente nos campos da agricultura e do artesanato. Ele afirma: “achamos que era uma boa ocasião para lançar não apenas essa campanha de crowdfunding para o documentário, mas também, em geral, a ideia de crowdfunding para movimentos sociais gregos”. Vale a pena notar que ele considera que sua própria experiência de financiar um documentário usando o Goteo pode ser transferida para a totalidade dos “movimentos sociais gregos” e que essa coleção de financiamento (e trabalho) baseado em plataformas representaria um remédio contra o esgotamento de grupos sociais e políticos que antes se baseavam na captação de recursos de forma tradicional por meio de doações físicas e organização de eventos. Ele menciona as medidas de controle de capital instigadas pelo Banco Central Europeu e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) em junho de 2015 e aponta para um paradoxo: “Embora os gregos não pudessem usar seus cartões de débito diretamente, eles poderiam usar o Paypal.” Em seguida, ele declara: “Em geral, as pessoas que estão em organizações, campanhas e plataformas de financiamento coletivo apresentam um espírito do que é chamado de ‘tecno-otimismo’. Esse espírito significa que, com as ferramentas certas e o conhecimento certo sobre conexões de redes, podemos resolver problemas. Percebemos que se as elites financeiras internacionais desejam atuar em um país, em uma rede, em um sistema e tomar decisões no nível financeiro, qualquer tipo de plataforma chega a seu limite”. De fato, a equipe do Goteo não enfrentou antes o problema dos controles de capital. Em relação a isso, ele argumenta: “é necessário que a organização política exerça pressão, pois nada pode continuar se não houver um órgão político que funcione fora da nuvem e não dependa da nuvem sabendo pressionar estruturas de poder”. Esse ativista experiente e usuário de crowdfunding continua expressando o que considera um dos principais problemas disso: “Projetos de economia colaborativa são cada vez mais reapropriados pelas instituições privadas, não apenas como métodos e como trabalho de multidão, como dinheiro finalmente, mas também como estruturas linguísticas e semânticas. Por exemplo, há três dias, recebi um e-mail de uma grande organização cultural privada em Atenas que é muito agressiva para o espaço público. Quero dizer que eles estão fazendo uma campanha de financiamento coletivo para um de seus projetos. E eles usam o mesmo idioma, o mesmo vocabulário que usamos na nossa campanha de crowdfunding. Pode até ser “copiar e colar”. Não quero dizer com isso que eles copiam de mim ou de nossa organização. Mas eles copiam e colam o movimento da mesma maneira que o Syriza no governo copiou e colou os slogans usados na Praça Syntagma há cinco anos”. DIGILABOUR: E em relação ao cooperativismo de plataforma? KARATZOGIANNI: A Catalunha, onde ocorreu um número significativo de nossas entrevistas, tem sido historicamente marcada pelo cooperativismo em suas formas anarquistas e libertárias desde a segunda metade do século XIX e, em particular, durante a revolução espanhola do final da década de 1930. A esse respeito, foi interessante observar a apreciação um tanto condescendente de um dos entrevistados, vindo do chamado movimento cooperativista “tradicional”, cuja presença é forte na coalizão de esquerda radical que atualmente governa Barcelona: “o cooperativismo tem sido muito forte nesta região por muitas e muitas décadas, mas de uma forma muito tradicional. Essas pessoas ainda estão ligadas a essa forma muito tradicional de grandes reuniões com baixa tecnologia e grande consenso e agora estão um pouco em conflito com a tecnologia”. No entanto, esse entrevistado afirmou que parte de sua “missão” foi conciliar o que ele afirma ser duas correntes de cooperativismo: “cada um dos grupos pode aprender com o outro. Assim, os capitalistas podem aprender como ter uma melhor governança e uma melhor distribuição de valor nas cooperativas, e as cooperativas podem aprender com os capitalistas a como ter escala e impacto”. Portanto, “quando vou a um movimento cooperativista, sou o capitalista. Quando estou no movimento OuiShare, sou um pouco cooperativista”. DIGILABOUR: Essas contradições te surpreenderam? Como? KARATZOGIANNI: Em primeiro lugar, notamos a importância da produção ideológica nos players que entrevistamos. Podemos argumentar que essa é sua principal atividade, bem como a execução de instrumentos para transação e organização do trabalho. Um elemento chave que encontramos em todos os discursos é a imprecisão e a confusão das formas ideológicas produzidas e, em particular, formas (modelos e termos) usadas para descrever as relações de produção. Simultaneamente, todas essas plataformas são pelo menos parcialmente dependentes da troca de mercadorias. O trabalho continua sendo mercantilizado e nenhum de nossos entrevistados propõe ainda qualquer forma de plano coerente para transformar efetivamente as relações de produção. De fato, a intercambialidade ideológica exibida por esses atores tem uma base objetiva na produção material, e podemos ver em nossas entrevistas que eles estão em uma posição de domínio relativo, em comparação com a massa maior de usuários de redes e plataformas e, em particular, aos trabalhadores manuais cuja atividade é organizada por meio dessas “ferramentas”. Em segundo lugar, esses atores também estão fortemente envolvidos na criação de novos aparatos sociotecnicos, que são, ao mesmo tempo, sobre isso que eles falam, agitam e o que lhes permite tirar alguma renda, ainda que pouca, os processos de exploração do trabalho. Eles são, do ponto de vista material, dependentes desses aparatos e plataformas para sobreviver em sua condição atual. Configurar e administrar plataformas e gastar grande parte do tempo de trabalho em agitação é fundamental para a sobrevivência individual, mas serve a uma meta que é muito mais ampla do que simplesmente servir indivíduos ou mesmo grupos mais amplos (“ativistas digitais orientados ao comum”, “ecossistema colaborativo”). Nossa hipótese é que esses atores estão, de certo modo, inadvertidamente (ou, como diz Marx, como “promoção involuntária”), servindo ao capital comunicativo. Nesse sentido, nossa pesquisa aponta para a natureza intermediária desses atores. Obviamente, isso abre uma nova área de pesquisa, que é precisamente onde essa investigação nos levou: os agitadores da “economia do compartilhamento”, do “comum” e do “cooperativismo de plataforma”, embora com notáveis exceções, parecem ser pontas de lança desse enquadramento de classe, espalhando a palavra para outras membros de sua classe, consolidando a deterioração da classe trabalhadora, mas com alguns “danos colaterais” inevitáveis dentro de seu próprio grupo. DigiLabour Compartilhar Artigo AnteriorTrabalho nas Indústrias Culturais entre Independência e Precariedade: entrevista com David Hesmondhalgh Próximo ArtigoA uberização é uma extensão da racionalidade empreendedora: entrevista com Christian Laval 27 de setembro de 2019