Início » Afetos, humor feminista e trabalho digital: entrevista com Susanna Paasonen Interviews Afetos, humor feminista e trabalho digital: entrevista com Susanna Paasonen Susanna Paasonen é professora de estudos de mídia da University of Turku, na Finlândia, e suas investigações relacionam pesquisa em internet, teoria dos afetos, cultura popular, estudos de sexualidade e pornografia. Foi uma das palestrantes principais do simpósio da Association of Internet Researchers (AoIR), que está acontecendo pela primeira vez no Brasil, ainda que online, nos dias 3 e 4 de setembro, com organização de UNISINOS e UFRGS. Algumas de suas publicações também abordam o mundo do trabalho, como Labors of love: netporn, Web 2.0 and the meanings of amateurism e o premiado livro #NSFW: Sex, Humor, and Risk in Social Media, escrito com Kylie Jarrett e Ben Light. Ela lançará em novembro o livro Who’s Laughing Now?: Feminist Tactics in Social Media, com Jenny Sunden. Em entrevista ao DigiLabour, Paasonen fala sobre humor feminista, afetos e mídias sociais e as dimensões do trabalho digital envolvendo o #NSFW (not safe for work). DIGILABOUR: Como você define o humor feminista no contexto online? SUSANNA PAASONEN: Há muitos tipos, desde piadas com a dinâmica do casamento heterossexual, com certa influência retrô, até os memes com artilharia direcionada para certos políticos e partidos. Assim como uma feminista tem diferentes percepções de como uma feminista deve ser, nós temos diferentes percepções do que é algo engraçado e quais tipos de humor podem ser usados para fins emancipatórios. As linhas de humor que eu e Jenny Sundén temos focado giram em torno do absurdo que encontra alegria na tolice, na falta de sentido e na incongruência, muitas vezes por meio do uso de sátira, ironia e paródia. Nosso interesse pelo absurdo tem a ver com sua indisciplina e recusa em ficar confinado a qualquer lógica hegemônica prontamente disponível. O que temos chamados de “absurdidade” é, portanto, ambíguo e até certo ponto errático: isso também significa que é algo aberto, vem com um elemento de surpresa e permanece irreverente em relação ao status quo. O humor absurdo pode ser um meio de apontar o ridículo das percepções e dos fenômenos sociais, de elaborá-los “ad absurdum” ou de inventar algo completamente diferente. O humor é a chave para sabermos como as pessoas se relacionam com as mídias sociais, e uma vez que as pesquisas têm apontado para a onipresença do humor sexista, racista e homofóbico em ambientes online, é crucial olhar para outras formas e meios de rir. E, em geral, devemos prestar mais atenção no humor na pesquisa sobre internet. Seu papel e sua complexidade são facilmente esquecidos ou meio que tomados como certos. DIGILABOUR: Como os movimentos sociais podem usar o humor como tática de resistência e mobilização contra discursos de ódio? PAASONEN: A participação em qualquer manifestação mostra que o humor, da ironia à paródia e trocadilhos, entre outros conteúdos exibidos em banners e locais semelhantes, é fundamental para compreender como as pessoas se reúnem e comunicam seus pontos críticos de protesto. O humor não é contrário à seriedade e certamente não exclui a política, muito pelo contrário. Nas mídias sociais, que têm sido nosso foco com a Jenny, o humor se manifesta de várias maneiras, desde perfis do Instagram zoando de mensagens odiosas até retweets “pegando fogo” e diversas campanhas e hasthags humorísticas. No livro, nós documentamos apenas algumas delas, perguntando em quais condições as táticas feministas funcionam, quando e como podem falhar, e como mobilizam as pessoas. Também há espaço para apropriações semânticas, como um longo histórico ativista feminista e queer, onde os termos que são usados para machucar são reapropriados para usos alternativos, como nos usos de “queer” ou em SlutWalks. Transformar as calúnias em pontos de auto identificação visa destituí-las de seu pretenso poder e impacto, mesmo que as coisas nem sempre sejam tão organizadas na prática. Se as calúnias são um meio de classificar, ridicularizar e possivelmente envergonhar e silenciar as pessoas visadas, trabalhar com essas calúnias não é apenas um projeto individual de resistência, mas também coletivo, considerando a forma como reúnem os grupos a que se destinam. Esta é uma tática semiótica bastante prática e interferem no que um signo significa, mas, como toda produção de sentido, é aberta e não tem necessariamente o impacto pretendido. A questão do humor, portanto, não é de “sucesso” versus “fracasso”, visto que o humor mudae as coisas, as inverte e permite espaços de liberação e alinhamento afetivos. O riso provoca coisas em níveis individuais e coletivos. DIGILABOUR: O que são os circuitos afetivos envolvendo o ódio online? PAASONEN: O ódio online certamente opera no registro negativo do afeto, da raiva à vergonha e medo, e além disso. Sara Ahmed salienta como o racismo assume a forma de amor “pelos seus” e esse ódio também pode respingar em ativistas antirracistas em tons de ressentimento ou decepção, como aqueles que “abandonaram sua própria espécie”. Grande parte do ódio online visa o silenciamento, e isso pode ser por meio de várias formas, desde doxing agressivo até estupro e ameaças de morte, e a ridicularização como tentativa de causar vergonha. Mas é importante notar que, embora o ódio online, por um lado, pareça convicto em seus objetivos e dinâmicas afetivas, ele é diverso, muitas vezes paradoxal e envolve um grande grau de ambiguidade. No nosso trabalho sobre ódio online com a Jenny, a vergonha surge como elemento central nas tentativas de silenciar, embora seja imprevisível e instável em seu funcionamento. Sentir vergonha é assumir seu fracasso aos olhos dos outros (e nos seus próprios). Crescendo em intensidade, ele se expande para uma humilhação ainda mais incapacitante. Para sentir vergonha, precisamos ansiar pelo reconhecimento e aceitação daqueles que nos veem como fracassados e, portanto, inferiores. Se, por exemplo, um neonazista deseja me humilhar, me chamando de vadia idiota, é muito provável que eu não sinta vergonha, visto que não procuro pela aceitação dos neonazistas. A vergonha, como uma tática de silenciamento, está muito relacionada com hierarquias sociais e privilégios de maneiras que não podem ser reduzidas a um binarismo de gênero. Silvan Tomkins observou décadas atrás como uma tentativa de envergonhar não resulta necessariamente em vergonha, assim como a vergonha pode ser revertida e como ela varia de acordo com a pessoa envolvida. Sobre circuitos de ódio online, estamos interessadas em como as intensidades afetivas se espalham, se fixam e se redistribuem nas trocas em rede. Ou seja, não se trata apenas sobre como alguém se sente, mas também, e de forma mais central, sobre como o afeto é mobilizado e como ele mobiliza os corpos nas plataformas. Compreender o afeto como encontro e impacto significa posicioná-lo como algo que se move entre os corpos e os move de um estado a outro. DIGILABOUR: Como relacionar afeto, dados e produção de valor nas redes sociais? PAASONEN: Pergunta complexa! Minha premissa é a de que o afeto é a chave para o modo como prestamos atenção nas coisas, e como as coisas são importantes para nós: sem afeto, as coisas simplesmente não são interessantes, então, não nos importamos. Aqui, eu sigo pessoas como Jodi Dean, que descreve o afeto como o combustível que impulsiona as ações e o envolvimento das pessoas nas redes sociais. Uma vez que as mídias sociais são uma economia de atenção que negocia os dados dos usuários, elas tentam otimizar os graus de atenção das pessoas (na forma de likes, compartilhamentos, comentários, posts, ou tempo gasto em qualquer lugar) e os dados que são gerados com isso (tanto automaticamente quanto pelos próprios usuários). Inserir o afeto nas considerações dessa economia significa considerar a clusterização da atenção como envolvimentos afetivos que as empresas de mídias sociais tentam monetizar, transformar em dados e, possivelmente, manipular. As opções de reação do Facebook, por exemplo, funcionam como índices de atenção, mas também como índices de qualidade afetiva. Não é nenhum segredo que o site quer encorajar o envolvimento positivo e, fazendo isso, diminuir a visibilidade de mensagens que as pessoas provavelmente teriam reações negativas. Como uma plataforma de publicidade, o Facebook basicamente precisa criar e disseminar espaços positivos para os usuários interagirem com o conteúdo patrocinado. Isso requer tentativas explícitas de transformar dados em afetos a serem analisados para fins de criação de valor. Os dados dos usuários têm valor para as empresas de mídias sociais quando massificados. Enquanto isso, as pessoas podem não ver seus dados como algo valioso (no sentido de se preocuparem com seus usos posteriores) enquanto encontram valor em seus usos de mídias sociais de forma mais ampla. Portanto, temos registros múltiplos e mutuamente incompatíveis de valor e importância deles nos mais variados momentos, assim como temos agentes corporativos com poderes muito diferentes dos usuários individuais. Acredito que devemos prestar atenção para afetar. Devemos entender o apelo das mídias sociais entre os usuários – por quais razões fazemos o que fazemos, mesmo quando estamos cientes das práticas exploradoras e antidemocráticas de uma empresa como o Facebook – além de modelos simplificados de interpelação, por exemplo. Mas, então, estudar o afeto por meios empíricos não é uma questão, por si só, nada fácil de ser respondida. DIGILABOUR: Quais são os aspectos do trabalho digital envolvendo #NSFW – do trabalho pornográfico à moderação de conteúdo? PAASONEN: Como uma tag, #NSFW é tanto um aviso quanto um convite, e ajuda a filtrar e controlar a visibilidade de conteúdo online considerando o que é seguro e o que não é tanto. Os frutos do trabalho pornográfico são aqueles que devem ser classificados como NSFW e há um entendimento comum de que o trabalho pornográfico, ou de sexo comercial em geral, é particularmente arriscado (ou seja, literalmente not safe for work). No livro que escrevemos com Kylie Jarrett e Ben Light, questionamos essa lógica, argumentando que as tentativas de supostamente tornar as trabalhadoras do sexo mais seguras por meio da regulamentação de conteúdo de mídias sociaos estão, na verdade, tornando-as menos seguras, como fica evidente no impacto da legislação SESTA / FOSTA dos EUA desde 2018. Os moderadores de conteúdo são aqueles que tomam decisões sobre o que é aceitável ou inaceitável, em que o NSFW tende a ser um marcador para o inaceitável. Nosso argumento é que a relação entre sexo e risco, inerente ao NSFW, é problemática, e nisso precisamos prestar atenção aos contextos e consentimentos em quaisquer trocas ou exibições sexuais, online ou offline. Se pensarmos no trabalho das mídias sociais, então, a moderação de conteúdo comercial é um trabalho particularmente sujo e arriscado em termos de saúde mental dos trabalhadores. Neste sentido, para uma maior profundidade, nós temos um trabalho realmente muito bom da Sarah Roberts, entre outros. Com o livro, nós queremos alterar o foco do conteúdo pictórico – por exemplo, ver os seios femininos como inerentemente “inseguros” às políticas de conteúdo do Facebook – para as diferentes maneiras pelas quais o trabalho digital é ou se torna inseguro, e como tudo isso se conecta às hierarquias e dinâmicas de gênero e sexualidade em particular. Fazendo isso, defendemos o valor do conteúdo e da comunicação relacionados ao sexo, já que isso atualmente está endo excluídos da sociabilidade permitida nas mídias sociais. Entrevista: Adriana Amaral e Rafael Grohmann Tradução: Stephanie Muller DigiLabour Compartilhar Artigo AnteriorInfraestruturas, dataficação e ativismo digital: entrevista com Stefania Milan Próximo ArtigoMaterialidades da comunicação e crítica da economia política: entrevista com Graham Murdock 3 de setembro de 2020