Início » Crowdwork e Inteligência Artificial: entrevista com Florian A. Schmidt Interviews Crowdwork e Inteligência Artificial: entrevista com Florian A. Schmidt Florian Alexander Schmidt é professor de design e teoria das mídias na University of Applied Sciences HTW Dresden, Alemanha. Entre seus textos mais famosos estão um sobre tipologia de trabalho digital e outro sobre o trabalho das pessoas que treinam dados de inteligência artificial para carros autônomos. Uma de suas descobertas é que a maioria dessas pessoas é da Venezuela. Em entrevista à DigiLabour, Schmidt aborda aspectos dessas pesquisas: DIGILABOUR: O que é crowd-design e como você iniciou as investigações em torno disso? FLORIAN A. SCHMIDT: Antes de me tornar pesquisador, me formei como designer gráfico e trabalhei nesse campo por vários anos. Por volta de 2008, as primeiras plataformas de crowdsourcing para design, principalmente as chamadas “logo-mills”, começaram a mexer com a indústria de design gráfico. Uma das primeiras e ainda provavelmente a mais proeminente dessas plataformas é a 99designs, da Austrália. Em 2018, eles reportaram uma receita de 60 milhões de dólares. Como muitos designers profissionais da época, eu percebi seu modelo de negócios como algo explorador, e ainda acho que é, em resumo, porque as plataformas recebem uma comissão de 35 a 45%, sem praticamente nenhum risco, enquanto, em média, apenas um em cada cem trabalhadores eventualmente é pago pelo trabalho. Isso me levou a analisar adequadamente como esses e outros modelos de plataformas que terceirizam o o trabalho digital são organizados. Fiquei especialmente interessado nas diferenças entre esse crowd work baseado em concursos, em contraste com o microtrabalho, como acontece na Amazon Mechanical Turk. Isso então se transformou em um doutorado sobre o assunto, cujos resultados eu finalmente publiquei sob o título “Crowd Design”. Então, o que para mim começou como um interesse em como o crowdsourcing de design é organizado transformou-se em uma década de pesquisa sobre como o próprio crowdsourcing é projetado, envolvendo as plataformas individuais e sua estrutura global de terceirização. DIGILABOUR: Você mostrou recentemente que o trabalho de treinamento de dados de IA é muito mais complexo na indústria automobilística do que, por exemplo, na Amazon Mechanical Turk. O que isso nos diz sobre as tendências em relação ao trabalho humano por trás da chamada “inteligência artificial”? SCHMIDT: Eu analisei como, desde 2017, a indústria automotiva tem desenvolvido uma alta demanda por dados de verdade para treinar seus carros autônomos. Isso requer uma grande quantidade de trabalho manual na anotação de dados, realizada por trabalhadores em todo o mundo. A demanda das montadoras é excepcional, não apenas no que diz respeito ao grande volume e à expectativa de retorno rápido, mas principalmente no que diz respeito a um grau de precisão sem precedentes nas plataformas anteriores de crowdsourcing. Como as empresas de automóveis tem muitos recursos, isso levou ao surgimento de um conjunto totalmente novo de plataformas de crowdsourcing, projetadas especificamente para atender às necessidades desses novos clientes. Exemplos proeminentes são Mighty AI (comprada recentemente pela Uber), Hive AI, Playment, Scale AI e Understand. Os novos especialistas são muito bem financiados, crescem rapidamente e reuniram grandes “multidões”. Em particular, o ano de 2018 viu centenas de milhares de trabalhadores da multidão (crowdworkers) da Venezuela especializados nessas tarefas. Em algumas novas plataformas, esse grupo agora representa 75% da força de trabalho. Essas recentes mudanças geográficas na oferta de trabalho são um sintoma de mudanças estruturais mais profundas na indústria de crowdsourcing. As plataformas agora se apresentam como empresas de IA, mas continuam a ser extremamente dependentes do trabalho humano. Tudo é mais oculto agora, orquestrado por plataformas em separado em relação às arquiteturas que aparecem para os clientes. As novas plataformas garantem a seus clientes pelo menos 99% de precisão dos dados. Para conseguir isso, eles devem investir em novas ferramentas de produção, muitas vezes aprimoradas pela IA, que apoiam e controlam a força de trabalho, além de investir na pré-seleção e treinamento dos trabalhadores da multidão (crowdworkers), com camadas complexas de gestão da qualidade e de subcontratação. Os trabalhadores da multidão treinam sistemas de IA e são treinados por sistemas de IA. Humanos e máquinas trabalham juntos em estruturas cada vez mais complexas. Embora isso crie uma nova classe de trabalhadores qualificados, a precariedade desse trabalho permanece alta porque tarefas individuais estão continuamente sob ameaça de serem automatizadas ou terceirizadas para uma região ainda mais barata do mundo. DIGILABOUR: Quais são os desafios atuais do trabalho mediado por plataformas? SCHMIDT: Em suma, o maior desafio é, obviamente, a erosão de qualquer poder de negociação para os trabalhadores afetados direta ou indiretamente pelo trabalho em plataformas, porque sempre haverá alguém em algum lugar mais desesperado e disposto a fazer o trabalho por menos dinheiro ou, essencialmente, gratuitamente. É um grande desafio político em todo o mundo defender os sistemas de seguridade social da externalização de todos os riscos do lado do empregador/ capital em relação aos trabalhadores precários/ chamados “autônomos”. Dito isto, existem enormes diferenças entre os vários tipos de trabalho terceirizado por meio de uma plataforma, a estrutura das várias plataformas e a chance de regular esses sistemas. É por isso que acho que um dos objetivos mais importantes é que pesquisadores e formuladores de políticas concordem com uma nomenclatura e uma classificação que sejam precisas para diferenciar os tipos de plataformas. Sem concordar sobre o que estamos falando, e sem evitar termos tristes como “economia do compartilhamento”, nenhum progresso é possível. Duas perguntas cruciais que se deve fazer para estruturar o espaço de milhares de plataformas distintas são: o trabalho é baseado na localização? É baseado em multidão/ crowdwork? Isso dá uma matriz para nortear os maiores desafios políticos. O trabalho que é dado a indivíduos em um local específico (delivery, táxi, limpeza etc.) pode ser regulamentado, organizado por sindicatos ou como cooperativas de forma “relativamente fácil” e atualmente vemos cada vez mais iniciativas promissoras. No entanto, o trabalho realizado independentemente da localização por uma multidão intercambiável em todo o mundo, como vemos atualmente com a indústria automobilística e os trabalhadores da multidão da Venezuela, será muito difícil de organizar e provavelmente se tornará ainda mais explorador no futuro. DigiLabour Compartilhar Artigo AnteriorPlataformização da Produção Cultural: entrevista com Thomas Poell Próximo Artigo"As plataformas não apenas organizam o trabalho: governam a vida". Entrevista com Jathan Sadowski 1 de novembro de 2019