Início » Infraestruturas, dataficação e ativismo digital: entrevista com Stefania Milan Interviews Infraestruturas, dataficação e ativismo digital: entrevista com Stefania Milan Stefania Milan é professora de cultura digital da University of Amsterdam e tem pesquisado noções como epistemologias de dados e ativismo de dados. Ela é coordenadora do projeto DATACTIVE, que analisa como movimentos sociais e cidadãos tem usado dados e suas técnicas de análise para promover mudanças sociais e resistir à vigilância. Milan também centra seus estudos nas infraestruturas e materialidades digitais, inclusive da própria “nuvem” e seus impactos no ativismo digital. Alguns de seus artigos mais recentes tratam de Big Data a partir do Sul e dataficação desde baixo, questionando o universalismo de dados e buscando epistemologias alternativas para o ativismo de dados, entendido como nova fronteira do ativismo midiático. Ela também coordenou dossiê sobre desinformação nas redes digitais na revista brasileira Liinc, junto com Arthur Bezerra e Fabio Malini. Milan conversou com DigiLabour sobre novas formas de ação política em relação à dataficação, desafios em relação à descolonização dos dados e práticas de comunicação autônomas e o papel das infraestruturas no ativismo digital. DIGILABOUR: Como a dataficação pode incentivar novas formas de ação e resistências políticas? E o que seriam epistemologias alternativas em relação ao ativismo de dados? STEFANIA MILAN: A informação sempre foi um componente-chave de qualquer luta por mudança social, por exemplo, campanha para mudança de leis ou defesa de políticas. Com o advento do chamado Big Data (e ainda mais com as tecnologias de inteligência artificial), a informação assumiu novas formas e magnitudes. Não é surpreendente que esta evolução na natureza da informação trouxe também oportunidades sem precedentes para a transformação da nossa sociedade. Há muitas maneiras pelas quais a dataficação pode incentivar novas formas de ação e resistência. Por exemplo, ao analisar os dados públicos disponíveis, com os chamados “dados abertos” divulgados pelas administrações públicas, os cidadãos podem identificar contradições e problemas na forma como os fundos estatais são empregados e sugerir melhores formas de alocar subsídios com base nas melhores práticas e em uma análise de dados rigorosa. Tomar os dados como evidência podem ser um bom caminho! Isso é o que chamo de “ativismo de dados”, ou seja, mobilizações com uma perspectiva crítica em relação aos dados e às infraestruturas de dados. Os ativistas de dados, por exemplo, geram seus próprios conjuntos de dados para lançar luz sobre uma dada realidade social: é o caso da coleta de dados sobre a violência de gênero na Argentina, na ausência de dados oficiais sobre feminicídios no país. Na verdade, a informação e, portanto, os dados, têm o poder de criar realidades. Eles contribuem para moldar os modos como nos entendemos e compreendemos o mundo à nossa volta. Podemos imaginar ativistas de dados como geradores de epistemologias alternativas, ou seja, formas alternativas e ascendentes de compreender a realidade social. Isso pode contribuir para mudar a forma pelo qual percebemos problemas como mudança climática e poluição, ou desigualdade social, incluindo violência policial. DIGILABOUR: Quais são os desafios reais para desocidentalizar e descolonizar a dataficação? MILAN: Os desafios para descentralizar, desocidentalizar e descolonizar a dataficação (e nossas formas de interpretá-los, inclusive na academia) são múltiplos. Vou me concentrar em dois aqui, que se destacam por sua influência em nossas atividades cotidianas como usuários e pensadores críticos. Em primeiro lugar, a questão da infraestrutura: as infraestruturas de dados têm raízes em grande parte nos países ocidentais ou simplesmente são propriedade de grandes empresas ocidentais como Google e Amazon. Suas economias de escala tornam a concorrência uma tarefa muito difícil para qualquer empresa que esteja entrando. Em segundo lugar, nossa maneira de compreender a dataficação é amplamente moldada por pesquisas que surgem nos centros ocidentais de poder epistêmico, incluindo Nova Iorque, Cambridge, Massachusetts, Oxford, Amsterdam, etc. Estamos perdendo nossa capacidade de imaginar diferentes maneiras de entender a dataficação e suas dinâmicas, por exemplo, do ponto de vista das “epistemologias do sul” ou das cosmogonias indígenas. DIGILABOUR: O que são práticas de comunicação emancipatórias? O que vê atualmente como bons exemplos? MILAN: As práticas de comunicação emancipatórias indicam aqueles projetos de comunicação que traduzem em práticas os ideais e valores de autonomia e autodeterminação. Curiosamente, não é apenas uma questão de conteúdo (por exemplo, sobre o que as pessoas falam e como), mas é especialmente sobre infraestrutura independente. Os exemplos incluem, por exemplo, servidores alternativos de Internet e software de código aberto, mas também estações de rádio e “redes comunitárias”. Por exemplo, a Rhizomatica fornece redes móveis locais para cerca de 5.000 comunidades indígenas em cinco estados mexicanos. DIGILABOUR: Você destaca a importância de compreender a “materialidade da nuvem” para saber como as infraestruturas moldam estratégias e táticas. O que você considera infraestruturas autônomas? MILAN: A materialidade da infraestrutura é uma questão um tanto esquecida. A infraestrutura é, em grande parte, invisível. Só a notamos quando ela quebra, e consideramos isso um dado adquirido, visto que não parecemos pagar diretamente por seu uso. No entanto, a infraestrutura, com o que ela traz de disponibilidades e faltas, com sua propriedade e suas características, moldam as atividades e possibilidades dos usuários, incluindo ativistas. O problema da autonomia neste domínio é de difícil solução. Por um lado, as infraestruturas digitais são quase inevitáveis hoje (pense nos sistemas nacionais de identidade digital, que, entre outros, garantem o acesso ao bem-estar social ou subsídios para a redução da pobreza). Por outro lado, as atuais infraestruturas digitais são de alta complexidade e com custos ainda mais elevados, o que torna quase impossível que grupos de base se desenvolvam e administrem infraestruturas por conta própria. Os desenvolvedores progressistas e os ativistas de direitos digitais, no entanto, tentam criar pequenos “bolsões” de autonomia, por exemplo, desenvolvendo softwares preocupados com privacidade (por exemplo, o sistema operacional Qubes) ou construindo infraestruturas locais. Por exemplo, o Ninux.org é uma das muitas “comunidades wireless” que oferecem redes sem fio de código aberto e auto organizadas para comunidades locais na Itália. DIGILABOUR: Quais as potencialidades e os limites do ativismo digital por meio de WhatsApp? MILAN: O ativismo digital via WhatsApp está crescendo em todo o mundo. Entre seus valores agregados estão a grande difusão da infraestrutura (o smartphone), a velocidade das comunicações, a intimidade das relações estimuladas pelo meio (WhatsApp), e o imediatismo da política cotidiana ao se misturar com outros tipos de comunicação (entre amigos e família), onde a política não é relegada a um tempo e espaço específicos, mas “permeia” as atividades e interações cotidianas. Os limites do ativismo mediado por WhatsApp incluem o excesso de confiança em uma infraestrutura privada (atualmente nas mãos do Facebook, conhecido por divulgar informações dos usuários se solicitado pela polícia), e o fato de que interagir (exclusivamente) pelo WhatsApp dificilmente ajuda a criar e exercer uma identidade coletiva, que é um dos ingredientes-chave de um movimento social. Além do mais, estar conectado no WhatsApp pode não criar redes de solidariedade duradouras, capazes de apoiar ativistas em caso de necessidade. DigiLabour Compartilhar Artigo AnteriorTrabalho invisível e lutas de trabalhadores em contextos digitais: entrevista com Winifred Poster Próximo ArtigoAfetos, humor feminista e trabalho digital: entrevista com Susanna Paasonen 30 de agosto de 2020