Em 2019, muito se falou sobre uberização do trabalho, capitalismo de plataforma, vigilância e dados. Também houve muita produção acadêmica sobre o assunto (e você acompanhou tudo aqui na DigiLabour).
Para iniciar 2020, indicamos alguns livros imperdíveis sobre trabalho digital que foram lançados ano passado. E listamos outros mais relacionados à temática. Ah, a ordem das obras abaixo é aleatória, sem lógica de “melhor” ou “pior”.
Sarah Roberts – Behind the Screen: Content Moderation in the Shadows of Social Media
A pesquisadora é pioneira na investigação sobre o trabalho dos moderadores de conteúdo de mídias sociais – que ela chama de moderação comercial de conteúdo. Pesquisa empírica ao longo de oito anos sobre as condições de trabalho no Vale do Silício e nas Filipinas, especialmente terceirizados de empresas como Google e Facebook. Sarah Roberts considera que a novidade está na escala industrial da moderação de conteúdo. São trabalhadores que passam o dia vendo cerca de 1500 fotos e vídeos para decidir o que manter e o que deletar das plataformas digitais. Ela propõe uma taxonomia dos arranjos de trabalho dos moderadores: in-house, boutique, call centers e plataformas de microtrabalho. Para a autora, o trabalho de moderação comercial de conteúdo reforça a Internet como lugar de controle, vigilância, intervenção e circulação da informação como mercadoria. Detalhes no livro, que pode ser baixado aqui, e na entrevista que Sarah Roberts concedeu à DigiLabour.
Callum Cant – Riding for Deliveroo: Resistance in the New Economy
Ex-trabalhador da Deliveroo, principal plataforma de delivery na Inglaterra, Callum Cant é pesquisador do tema e conta as lutas do ponto de vista dos trabalhadores das plataformas, como suas formas de organização e comunicação, incluindo o papel do WhatsApp. Mostra até os brasileiros que trabalham como entregadores no Reino Unido e que apoiaram Bolsonaro. Para Cant, a melhor forma de ajudar os trabalhadores não é boicotando o aplicativo ou mudando a forma de consumo, mas apoiando a organização dos trabalhadores. O autor também considera que o cooperativismo de plataforma seria uma solução apenas paliativa e sugere a expropriação das plataformas por parte dos trabalhadores. Detalhes neste vídeo.
Mary Gray e Siddhart Suri – Ghost Work: How to Stop Silicon Valley from Building a New Global Underclass
O livro retrata o trabalho invisível de humanos que sustentam a inteligência artificial e como a IA reestrutura o mundo do trabalho. Escrito por uma antropóloga e um cientista da computação, a pesquisa envolveu 200 entrevistas, 10 mil questionários aplicados a trabalhadores dos Estados Unidos e da Índia e análises de plataformas de trabalho sob demanda. Para Gray e Suri, há um paradoxo no debate sobre automação: por trás das promessas mágicas da inteligência artificial, há seres humanos treinando máquinas para que sejam substituídos num futuro próximo. Um mundo recheado de micropagamentos, chefes humanos sendo substituídos por processos automatizados para supervisionar uma multidão de trabalhadores remotos. Detalhes no livro, que pode ser baixado aqui, e na entrevista de Mary Gray à DigiLabour e à IstoÉ.
Antonio Casilli – En Attendant Les Robots: Enquête sur le travail du clic
A obra traça um panorama sobre trabalho digital e seus diversos tipos, como plataformas freelancers, de microtrabalho, sob demanda e objetos conectados (na linha da Internet das coisas). Mostra também a diversidade de atividades de trabalho em torno de nomes como trabalho gratuito, hope labor, playbor (play + labor), trabalho por amor, trabalho do consumidor e trabalho amador. Casilli parte da pergunta “os humanos vão substituir os robôs?” e aborda a automação como um teatro de marionetes sem fio, tratando do papel humano na inteligência artificial. Entre os temas, também estão presentes a subjetividade no trabalho, o vetorialismo e a busca por uma perspectiva que vá além da europeia. Entre os possíveis caminhos, o autor mostra o cooperativismo de plataforma e o comum como alternativas. Detalhes do livro na entrevista de Casilli à DigiLabour e nesta palestra. O autor estará no Brasil em outubro para o evento Homo Digitalis, na UNISINOS, em Porto Alegre.
Jamie Woodcock e Mark Graham – The Gig Economy: A critical introduction
O livro apresenta as características da gig economy, tanto historicamente como uma análise da conjuntura atual, com base em pesquisas dos autores em países como África do Sul, Índia, Inglaterra, Filipinas e Vietnã. Woodock e Graham consideram que há nove precondições que moldam a gig economy: regulação estatal, desejo de flexibilidade por parte dos trabalhadores, relações generificadas e racializadas de trabalho, conectividade massiva e tecnologia barata, atitudes e preferências de consumidores, infraestruturas de plataformas, globalização e terceirização, legibilidade digital do trabalho e poder dos trabalhadores. Uber, Amazon Mechanical Turk e Upwork são consideradas exemplares em cada tipo de plataforma de trabalho, com histórias de trabalhadores. O livro destaca como as plataformas controlam espacial e temporalmente o trabalho. Destacamos no livro a descrição da emergência de resistências e organização coletiva dos trabalhadores. A obra encerra com possibilidades de uma outra gig economy a partir de características como transparência, accountability, poder dos trabalhadores e propriedades democráticas.
Indicamos também outros dois livros de Woodcock e Graham lançados em 2019.
Em Marx at the Arcade: Consoles, Controllers and Class Struggle, Jamie Woodcock aborda a indústria de videogames, suas condições de trabalho e organização dos trabalhadores. O livro pode ser baixado aqui e dá para conferir a entrevista do autor à DigiLabour Woodcock também estará no Brasil neste ano no evento Homo Digitalis.
Mark Graham organizou o livro Digital Economies at Global Margins sobre a geopolítica do trabalho digital, com pesquisas em países como Tanzânia, Chile, China e Quênia. Um dos autores do livro é Jack Qiu, já entrevistado pela DigiLabour (e que também estará no Homo Digitalis), e que contribui com um texto sobre a economia digital em Shenzen. O capítulo de Lilly Irani sobre hackatons e o cultivo de dependência das plataformas comerciais é imperdível. O livro pode ser baixado aqui e dá para conferir uma entrevista de Mark Graham à DigiLabour.
Lilly Irani – Chasing Innovation: Making Entrepreneurial Citizens in Modern India
Vencedor do Prêmio Diana Forsythe por melhor obra de Antropologia Feminista em 2019, o livro mostra a política de tornar um imperativo a “cidadania empreendedora” e a obrigação por ser “inovador” na Índia, incluindo suas contradições. Por que algumas coisas são nomeadas como inovação e outras não? Por que práticas de costura na Índia Rural não são consideradas inovação e o design thinking – considerado pela autora como algo “evangelizador” – sim? Irani pergunta de forma provocativa: “pode o subalterno inovar?”. Para ela, a chamada cidadania empreendedora consome a criatividade do corpo social enquanto socializa o fracasso, invisibilizando críticas e desejos por mundos mais justos, disciplinando o futuro em torno de agendas de viabilidade e sustentabilidade econômicas. O livro pode ser baixado aqui.
Nick Dyer-Witheford, Atle Kjosen e James Steinhoff – Inhuman Power: Artificial Intelligence and the Future of Capitalism
O livro mostra as relações entre capitalismo e inteligência artificial, criticando visões liberais e autonomistas sobre IA, afastando perspectivas minimalistas e maximalistas em relação ao impacto da inteligência artificial. Para os autores, as ambições das grandes corporações é que a IA se estabeleça como “condição geral de produção”, embora haja a possibilidade de não entregar o que o capital espera. Assim como as obras de Casilli e Gray & Suri, Inhuman Power também aborda o “trabalho de IA” e a questão da automação, enfatizando dimensões de gênero e raça. Os autores tratam de uma série de lutas envolvendo capital e IA, como lutas de trabalhadores contra vigilância e pressões advindas da gestão algorítmica, protestos de trabalhadores de tecnologias e ativismo contra discriminação algorítmica. Então, teoriza em relação a uma IA comunista, que tenha como objetivo nem interromper a IA nem acelerar seu desenvolvimento, mas liquidar a dinâmica estrutural do capital que até agora está em sua base. Mais detalhes no livro, que pode ser baixado aqui, e na entrevista de Nick Dyer-Witheford à DigiLabour.
Evgeny Morozov e Francesca Bria – A Cidade Inteligente: Tecnologias Urbanas e Democracia
Neste livro lançado em 2019 no Brasil, Morozov e Bria tecem uma crítica às smart cities neoliberais e de keynesianismo privado, incluindo todo o seu vocabulário de “ecossistemas de inovação” e “transformação digital”. O livro, então, busca pensar na retomada da soberania tecnológica das cidades, oferecendo alternativas democráticas e comunitárias, mesmo com seus limites. São relatadas experiências com data commons, dados da cidade abertos, além da sugestão de pautas como o controle das plataformas digitais, na busca pela construção de infraestruturas digitais urbanas alternativas. Os autores também discutem o cooperativismo de plataformas e novas formas de organização coletiva dos trabalhadores da gig economy.
Além destes 10 livros, foram lançados outros sobre trabalho digital em 2019, como Hustle and Gig: Struggling and Surviving in the Sharing Economy (Alexandrea Ravenelle) e Les Nouveaux Travailleurs des Applis (Sarah Abdelnour e Dominique Meda, organizadoras, com entrevista aqui).
Mas o debate sobre trabalho digital não se basta por si mesmo e indicamos mais 5 livros sobre temáticas relacionadas, como raça, dados e vigilância.
Ruha Benjamin lançou dois livros fundamentais em 2019. Em Race After Technology: Abolitionist Tools for the New Jim Code, critica a benevolência tecnológica e os designs discriminatórios em relação à raça e busca construir um toolkit abolicionista como forma de resistência. Uma ótima resenha de Tarcízio Silva sobre o livro pode ser lida aqui.
Em Captivating Technology: Race, Carceral Technoscience, And Liberatory Imagination In Everyday Life, Ruha Benjamin organiza uma coletânea com diversos autores sobre como a gestão, o controle e a “correção” de pessoas empobrecidas e racializadas fornecem a “razão de ser” e investir em desenhos discriminatórios de tecnologias, incluindo um capítulo sobre vigilância dos trabalhadores. Destaque para os capítulos “Employing the Carceral Imaginary: an etnography of worker surveillance in the retail industry” (Madison van Ort), “This is Not Minority Report: predictive policing and population racism” (R. Joshua Scannell), “Racialized Surveillance in the Digital Service Economy” (Winifred R. Poster), “Anti-Racist Technoscience: a generative tradition” (Ron Eglash), “Techno-Vernacular Creativity and Innovation across the African Diaspora and Global South” (Nettrice R. Gaskins) e “Reimagining Race, Resistance and Technoscience” (uma conversa com Dorothy Roberts).
O ano de 2019 também marcou o lançamento de livros sobre dados e vigilância, como o best seller The Age of Surveillance Capitalism: The Fight for a Human Future at the New Frontier of Power, de Shoshana Zuboff, sobre o capitalismo de vigilância. Julie Cohen também lançou Between Truth and Power: The Legal Constructions of Informational Capitalism sobre os impactos jurídicos e institucionais da dataficação. E Nick Couldry e Ulises Mejias (entrevistados pela DigiLabour – aqui e aqui) publicaram The Costs of Connection: How Data Is Colonizing Human Life and Appropriating It for Capitalism, em que desenvolvem a ideia de colonialismo de dados, com uma seção sobre o mundo do trabalho no “Império da Nuvem”, falando em “trabalho não pago”, “trabalho mal pago” e “trabalho vigiado”.
Esperamos que essas obras sejam úteis para você investigar o cenário do trabalho digital e que 2020 seja tão produtivo quanto o ano passado em termos de produção acadêmica. Hoje mesmo será lançado o livro Invisibility by Design: Women and Labor in Japan’s Digital Economy, de Gabriella Lukács, sobre o qual falaremos na próxima semana.