Início » Masculinidades e trabalho por plataformas na Índia Interviews Masculinidades e trabalho por plataformas na Índia Esta é a primeira de uma série de entrevistas com pesquisadores do projeto The Future of Work(ers) in the global South, uma pesquisa internacional financiada pela Universidade de Witwatersrand (África do Sul). O Laboratório DigiLabour colaborou com a pesquisa Click Farm Platforms in Brazil and Colombia: work conditions and worker organizing. Nossa primeira entrevistada é Sai Amulya Komarraju, pesquisadora de pós-doutorado no Mudra Institute of Communications (MICA). Em maio, ela se juntará ao Indian Institute Of Management-Ahmedabad como professora da área de comunicação. Em seu doutorado, ela se concentrou especialmente nas micropolíticas de gênero em relação à vida cotidiana. Nesta entrevista, discutimos a particularidade das atuais condições de trabalho em seu país, o futuro do trabalho – e dos trabalhadores, o trabalho por plataformas e outros tópicos de sua pesquisa. DIGILABOUR: Você pode apresentar sua pesquisa? Sai Amulya Komarraju: Minha pesquisa de doutorado se concentrou nas micropolíticas de gênero da vida cotidiana. Baseou-se em feminilidades jovens, masculinidades críticas e maternidade feminista. Em retrospectiva, são essas diversas áreas de conhecimento que me prepararam para o trabalho que venho realizando após meu doutorado. Essa construção me ajuda a estudar o futuro do trabalho, da digitalização e das culturas algorítmicas. Atualmente, estou envolvida em três projetos — sou a coordenadora do projeto ‘Digital Creativity’ (Índia), financiado pela Erasmus University, sou a líder de pesquisa em serviços de beleza no FemLab, uma iniciativa feminista sobre o futuro do trabalho financiada pelo IDRC. Eu também sou a coordenadora da pesquisa “Quando a feminização atinge a plataforma: homens no trabalho de cuidado” no âmbito do projeto The Future of Work(ers) in the Global South. Este projeto baseia-se no trabalho que faço no FemLab. O plano inicial era contratar um assistente de pesquisa, mas devido à pandemia e ao cronograma bastante apertado, eu mesma fiz a coleta de dados. Todo esse processo foi incrivelmente significativo para mim. A maioria dos estudos sobre economia de plataformas tende a examinar os desafios que os trabalhadores do sexo masculino enfrentam no trabalho público e visível, como transporte ou entrega de alimentos ou então trabalhadoras envolvidas no trabalho de cuidado que acontece nos espaços ‘privados’ das casas dos clientes envolvendo cuidados corporais ‘invisíveis’. Como feminista, eu estava mais interessada em enfrentar essa dicotomia. Assumidamente, mais mulheres do que homens estão envolvidas em tal trabalho de cuidado, mas o fato é que homens de castas e classes marginalizadas sempre estiveram envolvidos no trabalho de cuidado na Índia, o que eu senti que merecia um exame mais atento – como os homens estão lidando com a feminização e plataformização do trabalho de cuidados – especificamente limpeza de casa e serviços de beleza, quais oportunidades de trabalho esses homens ganham por meio das tecnologias digitais e o que isso significa para as mulheres em suas famílias em termos de acesso às tecnologias digitais e ao trabalho e, finalmente, quais são as experiências de homens envolvidos no trabalho de cuidado. Esse trabalho resulta em um modelo diferente de masculinidade? Devo afirmar em termos inequívocos que este projeto não defende uma perspectiva Men Too. Os projetos que coordeno visam compreender a dinâmica de gênero no futuro do trabalho e de pessoas trabalhadoras. Conversei com trabalhadores do sexo masculino envolvidos em trabalhos de limpezas de casas em serviços de beleza em Hyderabad, na Índia. Nem todos os trabalhadores com quem conversei fazem parte da economia de plataformas. Alguns deles trabalham em salões físicos e outros dependem do boca a boca para serem contratados para serviços de limpeza doméstica. DIGILABOUR: Quais foram suas principais descobertas e contribuições para o projeto? Sai Amulya Komarraju: Na Índia, os Nais (tipicamente homens, pertencentes à casta nai ou mangali) tradicionalmente realizavam e continuam a realizar trabalhos de cuidados com o corpo – desde cortes de cabelo e barba até massagens corporais. De acordo com os trabalhadores do salão com quem conversei, a profissão ainda é dominada por pessoas da casta Nai. Mesmo que aqueles que possuem salões possam pertencer a outras castas, os trabalhadores que eles contratam, na maioria das vezes, continuam a pertencer à casta Nai. Ironicamente, esses serviços são considerados atividades ritualmente purificadoras, mas aqueles que realizam esse trabalho, seus corpos e sua própria presença são considerados ritualmente poluidores. Curiosamente, mesmo entre os muçulmanos, são os da casta ‘Salmani’ que fazem esse trabalho. Há uma continuidade histórica em termos de quem faz o trabalho real. Os achados preliminares sugerem que mudar o trabalho de beleza de um salão para a casa de um cliente traz de volta memórias de discriminação baseada em casta para aqueles da casta Nai. Mesmo até algumas décadas atrás, os Nais deveriam estar à disposição de pessoas pertencentes a classes e castas superiores. Eles foram forçados a ir de uma casa para outra oferecendo serviços qualificados, apenas para serem abusados e discriminados com base na casta. No entanto, a comunidade de castas lutou para mudar essa prática. Eles começaram a operar a partir de um local designado na aldeia, normalmente debaixo de uma árvore, e os clientes tinham que esperar pela sua vez. A partir daí, os Nais conseguiram estabelecer algo chamado “malgi” ou lojas com persianas. Para ser claro, este trabalho era tipicamente realizado por homens. Então, os homens Nai comandariam Malgis. Mais tarde, os ricos conseguiram montar o “salão”, como os Nais gostam de chamar. O que diferencia uma loja de um salão é o ambiente. Os salões atendem aos gostos da classe média a média alta, então a infraestrutura está mais de acordo com a clientela. Alguns dos clientes com quem conversei também sinalizam a transformação que os trabalhadores sofrem quando trabalham em salões de alto padrão. Os trabalhadores, dizem os clientes, são profissionalizados – passam de “ásperos” a “polidos”, em termos de vestimenta, aparência, linguagem e até em termos de habilidade, aprendem novas técnicas e oferecem uma variedade maior de cortes de cabelo, por exemplo. Essa profissionalização também está indissociavelmente ligada às suas soft skills. Com a plataformização, o trabalho que deveria ocorrer em lojas ou salões está sendo transferido para as casas dos clientes mais uma vez, trazendo de volta memórias de opressão baseada em castas. Esse tipo de dano histórico é difícil de se recuperar, embora os trabalhadores digam que a Índia urbana está mudando e os clientes não discriminam com base em casta, os líderes da associação Nai com quem falei sentem uma plataformização do tipo que permite aos clientes aproveitar esses serviços em casa e leva os trabalhadores de volta a se´culos atrás. Esta comunidade de castas não gosta que seu trabalho seja mediado por plataformas ou proprietários de salões que não são os próprios Nais, mas contratam trabalhadores da comunidade Nai. Eles reivindicam o primeiro direito a esse trabalho e questionam por que estão sendo forçados a se tornar “trabalhadores” de empresários que administram suas lojas. Também não há amor perdido entre essa comunidade e os migrantes, que, segundo eles, trabalham por menos dinheiro, contribuindo para uma queda geral nos rendimentos dos trabalhadores. Como também procuro entender modelos alternativos de masculinidades em oposição às masculinidades hegemônicas e tóxicas, os dados até agora sugerem que as masculinidades da classe trabalhadora e das castas marginalizadas são diferentes das masculinidades dominantes/hegemônicas das castas/classes superiores, no sentido de que esses últimos tendem a ser agressivos, altamente competitivos, isolados e marcados pela atitude neoliberal do ‘eu posso fazer isso’. As masculinidades performadas por homens da classe trabalhadora tendem a ser mais solidárias, com uma atitude de ‘podemos fazer se coletivizarmos’. Eles compartilham trabalho e dicas, ajudam outros do mesmo campo/casta a conseguir trabalho para que todos possam ganhar seu sustento. A dinâmica intracasta ou intracomunitária é estratificada com cuidado entre os homens. No entanto, quando se trata da dinâmica de gênero, há uma tendência ou desejo de regular o comportamento das mulheres, uma atitude protetora muito paternalista que as leva a dizer que as mulheres não devem assumir trabalhos por plataformas que as obrigam a ir à casa dos clientes. “Quem pode garantir sua segurança?”, perguntam os líderes da associação Nai. Eles as enquadram em termos de segurança e proteção. Os líderes do Nai Sangham se opõem veementemente à plataformização e citam a incapacidade da plataforma ou da sociedade de proteger as mulheres de danos e assédio como uma das razões para deslegitimar a plataformização dessa profissão. As mulheres trabalhadoras, no entanto, sentem-se de forma diferente. Eles gostam da flexibilidade que a plataformização oferece. Há também um outro lado em toda essa “proteção das mulheres” e o desejo de negar a elas esse tipo de trabalho – eles preferem que as mulheres em suas vidas assumam outros tipos de atividades empreendedoras – sejam donos de uma butique, criem um negócio na área de alimentação que garanta dignidade e respeito. A dinâmica de gênero é certamente interessante – eles sentem que é responsabilidade do marido ganhar a vida, mas também estão cientes das exigências de manter uma família, garantir uma boa educação para seus filhos e, portanto, não se importam se as mulheres assumirem trabalho, desde que seja sua escolha. Eles são muito particulares sobre como nomeiam isso, enfatizando a palavra “escolha”. DIGILABOUR: Há alguma particularidade na Índia em relação às condições de trabalho atuais? Sai Amulya Komarraju: Falta qualquer lei abrangente que possa salvaguardar os interesses dos trabalhadores por plataformas O Código de Previdência Social de 2020 ainda está em construção e tem sido alvo de muitas críticas, com razão. Algumas leis devem ser implementadas por estados individuais, alguns estados impõem regulações, outros não, então isso também é problemático. Está sendo dito que os Quatro Códigos Trabalhistas também garantirão benefícios de previdência social aos trabalhadores por plataformas, mas não sabemos quando será implementado com certeza. Algumas plataformas, como a Urban Company, deixaram de ser um modelo agregador de plataforma para um ‘modelo full-stack’, construindo um ecossistema autônomo, padronizando todas as suas operações – fornecimento de produtos, construindo agilidade do parceiro para padronizar o tempo gasto em um determinado serviço, qualificação de trabalhadores, financiamento. Essa é a maneira deles de disciplinar os trabalhadores – ditando quais produtos escolher, quantos produtos comprar, quantos serviços devem ser prestados, descontos oferecidos aos consumidores. Como a Urban Company é um gigante do mercado no setor de serviços domiciliares sob demanda e, à medida que mais parceiros se registram na plataforma (excedente de mão de obra), a plataforma agora pode dizer aos seus trabalhadores que eles são bem-vindos a deixar o plataforma sem abordar questões de comissão, expansão de hubs (o raio dentro do qual trabalhadores devem operar) ou oferecer descontos aos clientes sem consultar seus “parceiros”. Eu também diria que a cultura de servidão, a discriminação baseada em castas e a apatia pública pelos desafios que os trabalhadores enfrentam é um golpe triplo para os trabalhadores dessas atividades. Precisamos construir uma campanha robusta de conscientização do cliente/público para que os trabalhadores possam realmente experimentar a dignidade do trabalho. A ideia de que os trabalhadores que realizam trabalhos de cuidado – seja limpeza de casas ou cuidados corporais são “escravos” ou “servos” precisa mudar. Há um trabalho que precisa ser feito pelo Estado, pelas plataformas e também pelos clientes. As leis e a a mudança baseada em normas sociais são necessárias para que os trabalhadores vivam uma vida digna. DIGILABOUR: Quais são as principais táticas dos trabalhadores para lidar com o futuro do trabalho? Sai Amulya Komarraju: Os trabalhadores do sexo masculino com quem conversei, particularmente aqueles pertencentes à comunidade Nai, ingressaram no trabalho por plataformas porque seus negócios foram atingidos durante a pandemia. Para esses trabalhadores, parece que o trabalho por plataformas é uma medida provisória, que eles idealmente gostariam de desistir assim que os clientes se sentissem seguros o suficiente para visitar salões ou “salões”, como gostam de chamar. Os trabalhadores do sexo masculino definitivamente valorizam os esforços de coletivização e a exortação à coletivização baseada em castas também é algo que está acontecendo neste espaço. A situação é dinâmica e é preciso esperar e observar se a mobilização baseada em castas contra a plataformização do trabalho em salão de beleza Nais em Hyderabad se transformará em um fenômeno estadual e nacional. Utilizar as tecnologias digitais, em especial o WhatsApp, para coletivizar e protestar contra a Urban Company, colaborar, compartilhar conhecimentos e dicas diante das assimetrias de informação são algumas das principais táticas. Outra tática que os Nais usam é invocar a identidade de casta, lembrar a comunidade do legado de figuras históricas que pertenciam à comunidade Nai, lembrá-los de que a comunidade já foi hábil em diversos campos – música, medicina alternativa como Ayurveda, obstetrícia. Uma vez que agora estão associados apenas ao trabalho “mangali” ou trabalho que envolve cuidados corporais, eles lutam para criar dignidade para esse trabalho e, no processo, tentam reunir a comunidade de castas de forma mais eficaz. DIGILABOUR: Você realmente acha que as plataformas são o futuro do trabalho? Sai Amulya Komarraju: A Índia é um país diversificado, então algo que é verdade para um Estado pode não ser verdade para outro. Por exemplo, em Delhi e Gurgaon, os homens acompanham as trabalhadoras de beleza ao local de trabalho para garantir sua segurança. Seria difícil encontrar algo assim acontecendo em Hyderabad. Ambas são cidades metropolitanas, mas há uma visão amplamente difundida de que Hyderabad é relativamente mais segura do que outras cidades. Delhi e áreas próximas são consideradas altamente inseguras para as mulheres. As plataformas são o futuro do trabalho? Os líderes da comunidade Nai não querem que seja se isso os obriga a ir à casa das pessoas para oferecer serviços – esse tipo de trauma histórico não é algo de que se recupere facilmente – memórias de opressão agora fazem parte da memória coletiva passado de uma geração para outra na forma de histórias e canções. Portanto, a plataformização desse trabalho pode enfrentar resistência dos trabalhadores dessa comunidade de castas e, como a maioria dos trabalhadores pertence a essa comunidade de castas, certamente seria algo a ser observado. Se você acrescentar trabalhadores migrantes de outras religiões à mistura, as coisas ficam ainda mais complicadas. Os líderes também não estão interessados no cooperativismo de plataforma. Qualquer coisa que exija que eles se dirijam à casa de um cliente para oferecer serviços não é bem visto pela comunidade. Curiosamente, a comunidade está bem com cadeias de salões de luxo em áreas urbanas onde vivem pessoas de “elite”, já que malgis/lojas são uma raridade nessas áreas. Eles não se opõem aos salões de luxo, pois são contra as plataformas. Dito isto, as plataformas estão aqui para ficar, já que a maioria das pessoas, sejam elas formadas ou não, sem outras oportunidades ou não, acham o trabalho por plataformas atraente principalmente devido à sua flexibilidade. Mulheres, migrantes, aqueles que podem achar difícil conseguir emprego em outros lugares acham as plataformas atraentes, não há como negar. Mas será este o único futuro do trabalho? Não. O futuro é misturado. Por exemplo, apesar da presença crescente da Urban Company, você não vê salões construídos em tijolo e argamassa desaparecendo. A ascensão da economia de creators também é um exemplo interessante. Por exemplo, um dos faxineiros com quem conversei mora em um bairro de baixa renda. Ele me disse que alguns de seus amigos monetizaram suas habilidades na edição de fotos e vídeos. Eles cobram até 100 rúpias (cerca de 6 reais) para editar fotos, vídeos ou criar Reels do Instagram para seus amigos e outras pessoas em sua vizinhança que estejam interessadas em postar um bom conteúdo online, mas não possuam as habilidades digitais necessárias para fazê-lo. DIGILABOUR: O que podemos esperar para o futuro do trabalho além das plataformas? Sai Amulya Komarraju: Específicamente para o trabalho em salões e na comunidade Nai, os líderes desta comunidade de casta em particular querem que o Estado tome uma ação afirmativa, algo que garanta que uma porcentagem significativa desse trabalho seja reservada para os membros dessa comunidade. Eles invocam o precedente estabelecido pela comunidade de pescadores (Gangaputras – outra casta) para argumentar por que eles devem ter direitos primários para o trabalho em salões de beleza. Eles também questionam as intenções dos fundadores da plataforma sobre por que eles querem escravizar aqueles que já foram empresários donos de salões. Podemos esperar que cada vez mais comunidades de castas reivindiquem o primeiro direito ao trabalho. À medida que as categorias se dissolvem, à medida que mais e mais pessoas se envolvem em trabalhos que percebem não ter sido ordenados a eles por sua casta, haverá um esforço para manter essas identidades e trabalhos associados rigidamente. Será interessante ver como isso terá influência no futuro do trabalho além da plataforma. O (micro)empreendedorismo, como eu disse, é altamente desejável e muito atrativo para grupos de baixa renda. A economia de creators também é atraente para grupos marginalizados e de baixa renda da Geração Z. Para citar Sunder Sarukkai, a pandemia levou a Índia (e além) a se tornar uma sociedade de serviços. A crescente feminização do trabalho – e com isso quero dizer a criação de uma classe de trabalhadores que são valorizados por suas “habilidades sociais”, atitudes de “agradar as pessoas”, ou seja, qualidades que são consideradas “femininas” para atender às necessidades e desejos dos privilegiado – é preocupante, mas as alternativas a esse tipo de trabalho como as citadas acima e os esforços do Estado para incentivar o empreendedorismo por meio de empréstimos, a mobilização dos próprios trabalhadores com a ajuda de tecnologias digitais terá implicações significativas sobre como o “trabalho” também (re) moldará o mercado, as condições de trabalho e o futuro do trabalho. — Entrevista realizada por Caroline Govari DigiLabour Compartilhar Artigo AnteriorFábrica digital, migração virtual e gênero: entrevista com Moritz Altenried Próximo ArtigoOs mitos da automação: entrevista com Luke Munn 10 de abril de 2022