Início » Microtrabalho no Sul Global, o motor do capitalismo de plataforma: entrevista com Phil Jones Interviews Microtrabalho no Sul Global, o motor do capitalismo de plataforma: entrevista com Phil Jones Nos últimos anos, diversos livros e pesquisas têm se debruçado sobre plataformas cujos trabalhadores treinam dados para inteligência artificial. No Brasil, sabe-se que há aproximadamente 50 plataformas desse tipo. Elas são conhecidas como plataformas de “microtrabalho”, categoria que tem sido questionada. Os primeiros estudos sobre Amazon Mechanical Turk datam de 2010 e tem Lilly Irani como uma das principais expoentes. Nos últimos dois anos, ficaram bastante conhecidos os trabalhos de Mary Gray e Siddhart Suri, Sarah Roberts, Antonio Casilli, Hamid Ekbia e Kate Crawford. No Brasil, há pesquisas publicadas de Renan Kalil, Bruno Moreschi e Gabriel Pereira, Matheus Viana Braz, e Rafael Grohmann e Willian Fernandes Araújo. Há também pesquisa do Fairwork com plataformas desse tipo, incluindo trabalhadores brasileiros. Na semana passada, mais um livro foi lançado sobre o tema, Work Without the Worker: Labour in the Age of Platform Capitalism, de Phil Jones, pesquisador do think tank Autonomy. A obra argumenta que olhar para esses trabalhos mal pagos – que tornam nossa vida digital possível – tem muito a dizer sobre o estado do capitalismo global. E o autor faz isso baseando-se em perspectivas da economia política e da sociologia do trabalho. O chamado Sul Global tem protagonismo no livro. Para Jones, “o microtrabalho realmente representa não a fênix do Sul, mas uma reviravolta em nossa crise planetária de trabalho. O microtrabalho é a soma dos mesmos processos de crescimento lento, proletarização e declínio da demanda de trabalho que inflaram os setores informais de países como Índia, Venezuela e Quênia”. O Brasil também aparece na obra, a partir de um exemplo de drones em Paraisópolis que são monitorados por trabalhadores – geralmente do Oriente Médio e da América Latina – logados na plataforma Scale. Esses trabalhadores, via de regra, não sabem o real propósito da tarefa, e ajudam a alimentar tecnologias de reconhecimento facial e redes neurais. Phil Jones também destaca o trabalho de refugiados nessas plataformas, e o esforço de ONGs como intermediárias ativas nesse processo. Um trecho do livro pode ser lido gratuitamente em “Refugiados ajudam a impulsionar os avanços do aprendizado de máquina em Microsoft, Facebook e Amazon”. Ele também especula futuros do trabalho sem a centralidade do salário. Leia a entrevista de Phil Jones ao DigiLabour. DIGILABOUR: Nos últimos anos, surgiram alguns livros sobre as chamadas plataformas de microtrabalho ou crowdwork, ainda muito focados no Norte Global. Seu livro corrobora com outros estudos mostrando uma geopolítica no trabalho por plataformas. Qual o lugar do chamado Sul Global no seu livro? E como ir além da “precariedade” e da “ausência” na compreensão sobre o Sul? PHIL JONES: O Sul global é o motor do capitalismo de plataforma. É onde é realizada a maior parte do trabalho para impulsionar o aprendizado de máquina. Facebook, Google, Amazon, TikTok e Microsoft contam com grandes quantidades de tarefas curtas de dados para alimentar suas capacidades de inteligência artificial. Como elas agora representam as empresas mais poderosas do mundo, isso significa que microtrabalhadores em países como Índia, Filipinas e Venezuela – países para os quais grande parte desse trabalho é terceirizado – estão em uma posição contraditória. Por um lado, eles têm um imenso poder potencial para causar sérios distúrbios a essas plataformas, organizando-se e entrando em greve. No entanto, eles também estão fazendo um tipo de trabalho altamente fragmentado, em que muitas vezes estão sozinhos em suas casas ou em lan houses, frequentemente prejudicados por cláusulas de sigilo nos contratos e pela ameaça de encerramento de contas. Portanto, é realmente muito difícil organizar os trabalhadores. DIGILABOUR: Noopur Raval critica noções como “trabalho invisível”, “trabalho oculto” e “trabalhadores fantasmas”, pois acredita que são conceitos que carregam um olhar do Norte Global, entre outras questões. Como seu livro lida com essas questões conceituais? PHIL JONES: No livro, eu mantenho a posição de que a maior parte do trabalho sob o capitalismo está oculta. O objetivo do livro é definir as condições concretas do microtrabalho. O microtrabalho é propositalmente opaco, em parte para que as empresas que usam essas plataformas possam fazê-lo sem conhecimento público, mas principalmente para que os trabalhadores não possam se ver, organizar e compreender efetivamente os tipos de projetos em que estão trabalhando. Quem contrata as plataformas não é obrigado a informar aos trabalhadores sobre os tipos de projeto em que estão trabalhando. Uma pesquisa revelou que, quando questionados sobre em qual projeto eles achavam que estavam trabalhando, os trabalhadores muitas vezes não sabiam. Isso significa que os trabalhadores muitas vezes estão na posição de ajudar a criar tecnologias como reconhecimento facial ou drones automatizados, sem nunca terem dado o devido consentimento. DIGILABOUR: Quais relações você traça entre refugiados e essas plataformas de microtrabalho? PHIL JONES: Os refugiados estão trabalhando para grandes empresas de tecnologia por meio de cadeias de suprimentos estendidas. Essas cadeias de suprimentos são mediadas por empresas e organizações de terceirização de impacto, como Sama e Cloud Factory. Essas empresas montam programas de microtrabalho em campos de refugiados, como em Dadaab, no Quênia, e fornecem computadores, banda larga etc. e, em seguida, treinam os refugiados para fazer o trabalho de dados básico, antes de ajudar a conseguir trabalho para eles nas grandes empresas de tecnologia. Na verdade, há muito poucas informações recentes sobre exatamente em quais campos essas empresas estão operando, as condições de trabalho que fornecem, como salários, etc., em parte porque essas empresas pararam de publicar relatórios públicos sobre suas atividades e impacto. Pelos dados disponíveis, parece que algumas dessas empresas têm fornecido trabalhadores refugiados a empresas como o Amazon Mechanical Turk, onde os salários são muito baixos e as condições muito ruins. DIGILABOUR: E o que você tem a dizer sobre essas empresas, em especial em termos de esforços de relações públicas? PHIL JONES: Sem surpresa, as empresas comercializam esses programas como “oportunidades” para refugiados, em vez de oportunidades para as empresas de tecnologia que os exploram. Esses esforços de relações públicas foram engolidos sem crítica por grande parte da imprensa de negócios e de tecnologia, onde essa “terceiriação de impacto” recebeu ampla cobertura. Tem havido muito pouco esforço por parte dessas publicações para criticar suas atividades, relatar o que realmente estão fazendo e responsabilizá-las. O que precisamos atualmente é de uma investigação jornalística mais profunda sobre as condições concretas de quem participa de tais programas. DIGILABOUR: O que você pode dizer sobre os espaços de trabalho desses “microtrabalhadores”/ “crowdworkers”? PHIL JONES: Bem, a maioria dos crowdworkers não tem um espaço de trabalho designado ou centralizado para isso. Eles trabalham em casa ou em cafés. Aqueles que têm locais de trabalho podem estar em prisões ou campos de refugiados, onde é muito difícil obter uma imagem precisa de seus locais de trabalho. Na China, o microtrabalho realmente ocorre em espaços de trabalho que, ironicamente, costumam ser antigas fábricas ou depósitos reformados, potencialmente onde grande parte do trabalho foi automatizado ou pelo menos aprimorado por IA. As condições nesses espaços são, pela maioria dos relatos, bastante terríveis, muitas vezes implicando vigilância excessiva, jornadas longas e trabalho repetitivo. DIGILABOUR: Por qual futuro de trabalho devemos lutar? Quais são as direções para imaginar outros futuros? PHIL JONES: Devemos lutar por um futuro que vá além do salário, em que o valor do trabalho e do tempo de lazer sejam distribuídos igualmente. O mundo pelo qual devemos lutar é aquele em que todos têm mais tempo livre, uma renda básica e a oportunidade de exercer as atividades que lhes interessam, sem exploração ou alienação. De forma perversa, o microtrabalho – e a crise do trabalho de forma mais geral – aponta o caminho para novos horizontes. O fato de essas plataformas muitas vezes não fornecerem um salário de maneira consistente mostra a escassez de nosso sistema atual de remuneração. O fato de os trabalhadores em sites de microtrabalho passarem mais tempo procurando trabalho remunerado do que realmente fazendo isso revela que nosso tempo pode ser usado para atividades fora do trabalho remunerado. DigiLabour Compartilhar Artigo AnteriorInformática do Oprimido Próximo ArtigoEconomia política da indústria de IA: entrevista com James Steinhoff 10 de outubro de 2021