Midiatização profunda, infraestruturas e novas formas de organização: entrevista com Andreas Hepp

Andreas Hepp, professor do Centro de Pesquisa em Mídia, Comunicação e Informação (ZeMKI) da Universidade de Bremen, lançou em dezembro de 2019 seu mais novo livro, Deep Mediatization (o primeiro capítulo pode ser lido aqui), sobre as reconfigurações da sociedade a partir das mídias digitais e suas infraestruturas.

O conceito central é o de midiatização profunda, que ele e Nick Couldry já haviam trabalhado em The Mediated Construction of Reality (em breve em português pela editora UNISINOS). Em sua visão, esse é “um estágio avançado de um processo no qual todos os elementos do nosso mundo social são intrinsecamente relacionados às mídias digitais e suas infraestruturas subjacentes”.

Ao longo do livro, Hepp mostra a importância da pesquisa em midiatização dialogar com os estudos de plataformas e apresenta as noções de “comunidades pioneiras” e “coletividades de plataforma”. Também chama a atenção para a compreensão da mídia como processo, envolvendo também os algoritmos.

Por fim, o autor argumenta que o capitalismo de vigilância e o colonialismo de dados não devem ser encarados como consequências “naturais” da midiatização profunda e apresenta a emergência de novas formas de organização. Todos esses assuntos em entrevista exclusiva à DigiLabour:

 

DIGILABOUR: Em seu último livro, Deep Mediatization, você fala sobre a necessidade dos estudos em midiatização se aproximarem dos estudos de plataformas, materialidades midiáticas e infraestruturas digitais. Como seria esse diálogo?

ANDREAS HEPP: A midiatização profunda é um estágio avançado da midiatização, no qual todos os elementos do nosso mundo social estão profundamente relacionados às mídias e suas infraestruturas. Se entendermos isso como uma característica da midiatização no estágio atual, isso não será apenas mais uma questão de como, por exemplo, certos formatos televisivos ou diferentes perspectivas de organização de uma editora moldam a política ou outros domínios sociais. Fundamentalmente, trata-se de como criamos nossa sociedade por meio das mídias digitais e de suas infraestruturas, além de como elas são reconfiguradas como resultado. Para descrever isso adequadamente, é necessário tanto uma visão histórica da pesquisa em midiatização quanto um embasamento em estudos críticos sobre dados, que se debruçam na análise de fenômenos específicos, mas são menos úteis para traçar um panorama mais amplo. Ao refletir sobre esses pontos fortes e fracos, meu objetivo com o livro Deep Mediatization era integrar essas diferentes tradições de pesquisa. É um diálogo no qual a pesquisa em midiatização proporciona uma ampla perspectiva de interpretação e os estudos críticos sobre dados trazem instâncias empíricas para análise. Na minha opinião, as duas abordagens se complementam muito bem.

 

DIGILABOUR: Eu achei interessante sua noção de “comunidades pioneiras” a partir dos movimentos Maker e hacker. Qual é, para você, o diferencial desta perspectiva?

HEPP: Ao longo dos últimos anos tenho realizado pesquisas empíricas com comunidades pioneiras, como o movimento Maker, o movimento do Self Quantificado e, em relação ao jornalismo, os movimentos hackers. Meu interesse nessas comunidades decorre da ideia de que o “fazer” da midiatização profunda costuma ser pensado de modo muito simplista. Na tradição de uma limitada economia política da comunicação, as grandes empresas de tecnologia como Apple, Facebook ou Google são construídas como as principais forças motrizes de mudança. Sem querer afastar a influência às vezes altamente problemática de tais empresas, acredito que esse quadro seja redutor demais. O terreno para novos desenvolvimentos é frequentemente liderado por comunidades pioneiras, como as mencionadas acima. As empresas surgem realmente apenas na segunda etapa do que é essencialmente um processo. As comunidades pioneiras não são apenas grupos experimentais relacionados a novas formas de mídias e tecnologias, transformações midiáticas e formação de coletividades, mas também demonstram um senso de missão. Os membros dessas comunidades se veem como precursores de desenvolvimentos relacionados às mídias e da transformação da sociedade. como um todo. Os membros individuais se apresentam publicamente nesses termos (e são objeto de uma pesquisa em andamento), seja nos blogs geridos pela própria comunidade pioneira ou em um jornalismo mais mainstream. As comunidades pioneiras não apenas possuem esse senso marcante de missão, mas também desenvolvem ideias de mudanças relacionadas às mídias que podem orientar discursos sociais mais amplos. Estudar as comunidades pioneiras como intermediárias entre o desenvolvimento e a apropriação de novas tecnologias midiáticas nos permite compreender os processos atuais de midiatização do ponto de vista dos atores.

 

DIGILABOUR: Você escreve em seu livro que os algoritmos “amplificaram ainda mais o caráter processual da mídia”. O que isso significa no sentido de pesquisar algoritmos e dados do ponto de vista da comunicação?

HEPP: Estamos acostumados a pensar na mídia como se fosse estática. Mas se os olharmos mais de perto, ela sempre esteve em um estado de constante mudança. A televisão nos anos 1990 era muito diferente da televisão dos anos 1950. Como as mídias digitais de hoje são cada vez mais construídas em torno de algoritmos, as mudanças podem ser realizadas com muito mais rapidez e eficiência do que na mídia mecânica ou eletrônica. Uma plataforma como o YouTube está em constante evolução – em certo sentido, está permanentemente em um estado “beta” – e o fundamental para esse processo é a constante coleta de dados dos usuários e a reiteração contínua da plataforma de acordo com as análises desses dados. Em Deep Mediatization, eu sugiro que as mídias digitais não devem ser pensadas somente como um processo, mas que devemos considerar as maneiras pelas quais a geração e o processamento de dados, de forma contínua, intensificaram a natureza dos processos midiáticos.

 

DIGILABOUR: O que significa falar em “coletividades de plataforma”?

HEPP: Em tempos de profunda midiatização, podemos ver novas formas de formações coletivas. Na pesquisa em comunicação, geralmente nos acostumamos a pensar em coletividades como sinônimo de comunidades. Mas agora houve a emergência de novas formas de coletividades que se formam em torno de plataformas e que, na verdade, não são comunidades no sentido mais estrito do termo. Pode-se pensar em algo como a coletividade dos usuários do Spotify ou AppleMusic que compartilham certos gostos musicais. Essa coletividade é formada pelo processamento de dados dos usuários e os membros dessa coletividade recebem sugestões de títulos semelhantes, a comunicação (automatizada) ocorre em relação a eles, e assim por diante. Outro exemplo seria a coletividade dos motoristas de Uber, que também é formada em torno de uma plataforma, e cujos membros compartilham inicialmente apenas o fato de oferecerem seu trabalho por meio dos recursos da plataforma. Também não é uma comunidade. Tem o potencial de se tornar uma comunidade quando as pessoas reconhecem sua situação compartilhada e formam um “nós” em comum. Isso acontece nos locais de contestação e antagonismos pelos quais os motoristas de Uber fazem exigências por melhores condições de trabalho, condições que são desenhadas pelos designers da plataforma. Curiosamente, outras mídias, como fóruns na Internet, começam a desempenhar um papel nesse sentido. Por meio dessa mídia externa à plataforma, os motoristas são capazes de trocar ideias e desenvolver esse “nós” em comum. Com o conceito de coletividade de plataforma, estou tentando chamar a atenção para essas conexões e incentivar discursos que economizem o conceito de comunidade. Só devemos falar de comunidades se realmente houver esse “nós” compartilhado que se torna aparente nas estruturas sociais permanentes das figurações humanas.

 

DIGILABOUR: Quais são as novas formas de organizar a midiatização profunda de maneira a enfrentar o colonialismo de dados e o capitalismo de vigilância, por exemplo?

HEPP: No final do livro Deep Mediatization, pergunto como a midiatização pode trabalhar para trazer uma “boa vida” para o maior número possível de pessoas. Um dos meus argumentos centrais é que devemos pensar em novas maneiras de organizar as mídias digitais e suas infraestruturas. As mídias digitais e a internet se desdobram em nossas vidas no mesmo momento histórico do pico do neoliberalismo. Parece bastante “normal” para muitas pessoas o fato de as plataformas, por exemplo, serem organizadas como empresas privadas. Mas por que deveriam ser? Algumas plataformas de mídias sociais não seriam melhores como organizações públicas de mídia, especialmente quando se trata do processamento de uma quantidade tão grande de dados? Ou não poderiam outras plataformas que prestam serviços de táxi ou hospedagem por exemplo, ser muito melhor organizadas como cooperativas administradas por usuários ou pelos próprios prestadores de serviços? A maioria das plataformas não pertence muito mais às comunidades que pretendem servir? E como seria uma plataforma de jornalismo local realmente voltada para as pessoas? Meu argumento é no sentido de pensar muito mais radicalmente sobre como organizamos as mídias digitais e não apenas tolerar os mitos e ideologias das grandes empresas de tecnologia. As crises dos últimos anos – de “fake news” ao Coronavírus e as informações falsas sobre a pandemia propagadas nas plataformas digitais – nos mostram que essas empresas são muito mais voltadas para o lucro do que orientadas para o bem comum. Isso dá muito o que pensar.   Enquanto eu penso isso teoricamente em Deep Mediatization, no campo do jornalismo local, uma eu e uma equipe de colegas colocamos a teoria em prática por meio de nossa plataforma experimental local de notícias, molo.news.

Sair da versão mobile