Início » Os mitos da automação: entrevista com Luke Munn Interviews Os mitos da automação: entrevista com Luke Munn Luke Munn é pesquisador de comunicação baseado na Nova Zelândia e acaba de lançar o livro Automation is a Myth. A obra considera a automação um conjunto triplo de ficções: o da autonomia total, o da automação universal e o da automação de todo mundo. Contudo, esses mitos ignoram forças sociais, culturais, políticas e geográficas que moldam as tecnologias em nível local. A partir de diversas histórias de trabalhadores – de supervisores de máquinas na China a selecionadores de produtos em depósitos nos Estados Unidos – Munn fornece uma compreensão nuançada, localizada e racializada em relação ao chamado “futuro do trabalho”. Munn é também autor dos livros Unmaking the Algorithm e Logic of Feeling. Nesta entrevista ao DigiLabour, ele fala sobre o novo livro, envolvendo os mitos da automação, esquerda e automação, trabalhadores e automação, trabalho por plataformas como tipo de parasita e futuros alternativos do trabalho. DIGILABOUR: Em poucas palavras: por que a automação é um mito? LUKE MUNN: A automação é um mito porque é uma grande narrativa com um enquadramento singular e pressupostos equivocados. Essa compreensão de “futuro do trabalho” obscurece as condições de trabalho realmente existentes nos locais e nos distrai das questões em que deveríamos nos concentrar. DIGILABOUR: Você aborda especificamente três mitos em relação à automação: 1) o mito da autonomia; 2) o mito da automação em todos os lugares; 3) o mito da automatização de todo mundo. Você poderia explicar brevemente cada um deles? MUNN: Claro. Existe o mito de “automatizar tudo”, afirmando que as máquinas vão assumir a produção e suplantar os humanos. Mas longe de serem máquinas capazes de fazerem as coisas “por si mesmas”, as soluções técnicas são fragmentadas. Seu suporte e manutenção revelam o imenso trabalho humano por trás dos processos “autônomos”. Há o mito da “automação em todos os lugares”, com tecnologias enquadradas como uma força localizada varrendo o globo. Mas essa ficção ignora as forças sociais, culturais e geográficas que moldam as tecnologias em nível local. E há o mito de “automatizar todo mundo”, a figura genérica do “humano” no centro das pretensões em relação à automação. Mas o trabalho é socialmente estratificado e, portanto, as consequências da automação serão altamente desiguais, afetando mais alguns (imigrantes, negros, mulheres) do que outros. DIGILABOUR: Você acha que mesmo a esquerda sucumbiu aos mitos da automação, como parte dos aceleracionistas? MUNN: O ideal de libertação do trabalho tem uma longa história nas tradições de esquerda e marxistas. Assim, as tecnologias que procuram automatizar o trabalho, remover esse fardo e liberar o trabalhador para outras atividades (políticas, sociais, de lazer etc.) há muito são de interesse desses grupos. Sou solidário a esse desejo. Contudo, eu também penso que qualquer visão de um futuro pós-trabalho precisa ser questionada com cuidado, até o fato de ser tão atraente para muitas pessoas. A tradição da esquerda tem sido muito boa em atender às condições materiais de trabalho: qual é o ambiente, qual é o valor da hora, há quanto tempo você trabalha, qual é a estrutura organizacional, quais tipos de pressões são colocadas no corpo. Este livro e grande parte da minha pesquisa sobre trabalho e tecnologia em geral são inspirados por essa abordagem. E se este é o seu modo analítico – se você está realmente observando as condições de trabalho no chão do depósito, ou trabalho migrante mal pago, ou a precariedade e toxicidade do trabalho de moderação de conteúdo – então os mitos da automação parecem desaparecer bem rápido. Então, eu diria que é quando a esquerda perde esse foco histórico, esse foco material no trabalho “na face do carvão”, e avança para a visão de 10.000 pés do PIB e das estatísticas de emprego e da lei de Moore e da retórica exagerada em relação à tecnologia que eles começam a sucumbir aos mitos da automação. DIGILABOUR: Quais são as novas formas de trabalho introduzidas pelos sistemas “automatizados”? MUNN: O ponto-chave em grande parte desse trabalho é que os sistemas “automatizados” são frequentemente sustentados por imensas quantidades de trabalho humano. Em alguns casos, trata-se de trabalhadores preenchendo as lacunas, os pontos fracos dos sistemas técnicos. Os trabalhadores humanos usam seu trabalho afetivo ou cognitivo em momentos-chave para manter a funcionalidade para os clientes: fazer as coisas funcionarem. Os monitores de máquina são um exemplo aqui; checkouts “automatizados” são outro – e esses tipos de funções introduzem novas funções nos trabalhadores e novos tipos de pressões. Portanto, não é que as tecnologias não mudem o trabalho – elas o fazem -, mas é que a grande narrativa da automação não tem como explicar esse tipo de alteração “por etapas” ou as pressões específicas colocadas sobre pessoas específicas em contextos específicos. Em alguns casos, os chamados sistemas “automatizados” são usados para fornecer um verniz de objetividade e filtrar as condições de trabalho realmente existentes. A moderação de conteúdo é um exemplo chave disso que exploro no capítulo 2 do meu livro. As plataformas de mídias sociais falam sobre o “algoritmo” ao bloquear e sinalizar conteúdo, uma espécie de raciocínio maquínico que muitas vezes é retomado no discurso popular. Mas é claro que esses sistemas são sustentados por milhares de trabalhadores, muitas vezes em cargos precários e mal pagos, que trabalham para empresas terceirizadas que às vezes estão localizadas no Sul Global. Esses trabalhadores são forçados a ler comentários odiosos e assistir a vídeos tóxicos, o que causa um impacto psicológico brutal. Nesses casos, podemos começar a ver como os sistemas automatizados são menos sobre o trabalho em si e mais sobre a embalagem do trabalho – como ele pode ser fatiado e transferido para o licitante mais baixo, alguém que está legal e operacionalmente distanciado o suficiente da empresa original para evitar qualquer responsabilidade. E no livro, defendo que essa é realmente a maneira pela qual a automação “remove” o humano do trabalho. Ele remove o trabalhador pleno, com pagamento integral, com plenos direitos (seguros, benefícios e assim por diante). E são esses tipos de impactos, ao mesmo tempo mais sutis e patológicos, que passam despercebidos pelo mito da automação, mas que devem exigir nossa atenção. DIGILABOUR: Achei muito interessante a história dos selecionadores de produtos em depósitos (warehouses) no seu livro. O que há de “antigo” e “manual”/ “analógico” no trabalho sob demanda envolvendo problemas de automação? MUNN: Gosto de citar Mauss sobre o corpo humano ser nosso primeiro e mais antigo objeto técnico. Então, nesse sentido, o corpo sempre estará no centro do trabalho e da luta trabalhista. E o corpo vem com um conjunto de capacidades, mas também de constrangimentos. As tecnologias digitais, como os sistemas de gamificação usados pela Amazon, tentam otimizar o desempenho do trabalho, acelerar o ritmo e a intensidade do trabalho. Mas o corpo tem dois gumes. Usar suas capacidades também significa enfrentar suas restrições. Isso pode ser exaustão ou dano aos tendões e articulações, ou pode assumir a forma de frustração, e nesse caso vemos atos de sabotagem: arrastar os pés, bloquear sensores, jogar o sistema ou até mesmo sair do trabalho e desistir. Então corta para os dois lados, e acho fundamental entender o potencial do trabalho e do seu corpo. No livro, menciono o sistema de pontos e o sistema de disparo automatizado que a Amazon implementa, mas recentemente vimos notícias afirmando que a empresa está lutando para reter funcionários devido à sua enorme rotatividade. Como respondemos a essa intersecção entre sistemas digitais e o trabalhador “analógico”? No livro, destaco alguns trabalhos sobre automação colaborativa ou “aumentada”, onde os pesquisadores estão tentando entender a dinâmica complexa em ação aqui. Muito disso é impulsionado por pesquisadores de ciência da computação, e, portanto, é muito focado tecnicamente, misturando noções de eficiência vindas da engenharia com ideias mais recentes de bem-estar humano. Mas, em última análise, isso volta a questões muito mais confusas e fundamentais: quem é “o trabalhador”, como deve ser o trabalho e que papel a tecnologia deve desempenhar na elevação da agência e da dignidade humana? Responder a essas perguntas de forma adequada significaria recorrer a correntes mais amplas de erudição: teoria marxista, teoria feminista, teoria decolonial, e assim por diante. E essas perguntas sobre a natureza do trabalho e o bem-estar dos trabalhadores não são apenas “filosóficas”, mas muito urgentes, sendo feitas por trabalhadores e empregadores em nosso contexto pós-COVID. DIGILABOUR: Você fala no trabalho por plataformas como um novo tipo de parasita. Por que? MUNN: O objetivo do trabalho por plataformas não é usar mão de obra, mas extraí-la de forma parasita. Usar mão de obra é convencional: significa reconhecer que uma empresa é a empregadora e que ela tem empregados. Significa um compromisso de pagar um salário digno durante um período de tempo mais longo. Significa apoiá-los com benefícios e seguro de saúde, e ser responsável de alguma forma pelo trabalho que realizam em seu nome. O capitalismo contemporâneo não quer nada disso. É por isso que falo de exaustão ou extração ao invés de uso – e este é um argumento do meu primeiro livro, Unmaking the Algorithm. A exaustão significa obter a produtividade do trabalho, mantendo-se estrategicamente distanciado do trabalhador e de seu mundo da vida, com todos os seus riscos e necessidades. A empresa fica com o trabalho sem o trabalhador, por assim dizer. Do ponto de vista do capital, esse modo de trabalho é uma espécie de “triunfo” que resolve muitas de suas lógicas centrais. Nos últimos dois anos, realmente vimos as organizações de trabalhadores reconhecerem os perigos nisso e responderem por meio de sindicalização, protestos, legislação, e assim por diante. Uber e Amazon são dois excelentes exemplos que vêm imediatamente à mente, e envolvem até mesmo alguns dos trabalhadores como Christian Smalls, que menciono no livro. As vitórias aqui, e a imensa quantidade de organização e ativismo necessários para alcançá-las, não devem ser descartadas. No entanto, as lógicas centrais no coração de nossos sistemas econômicos atuais permanecem e, portanto, o esforço para recriar esse modo extrativo – seja sob um novo nome ou em novos contextos e indústrias – persistirá. Então, eu realmente vejo essa luta como uma luta contínua que requer vigilância constante. DIGILABOUR: Como recusar a automação (ou construir uma automação crítica) para futuros alternativos? MUNN: No capítulo final, falo sobre recusar o “futuro do trabalho” universal oferecido no discurso da automação e começar a desenvolver vários “futuros do trabalho” impulsionados pelas necessidades das comunidades. Falo sobre o Lucas Plan e também cito Data for Black Lives e Maori Data Sovereignty Network como exemplos de organizações que atualmente estão fazendo esse tipo de trabalho importante. Acho que parte da contribuição do livro é enfatizar que não pode haver grandes soluções universais aqui. Precisamos pensar concretamente sobre quem são os trabalhadores, que tipo de trabalho está sendo feito, quais tecnologias estão sendo implantadas e, finalmente, o que uma comunidade deseja alcançar? Como um dos ativistas trabalhistas do livro mencionou, não se trata de recusar a tecnologia, mas de garantir que os trabalhadores tenham um assento à mesa e acesso aos seus benefícios. Dito tudo isso, sinto que este livro é realmente apenas o ponto de partida para essa pergunta. Na verdade, apresentei recentemente uma proposta de pesquisa para financiamento que visa desenvolver esse trabalho. O livro Automation is a Myth estabeleceu uma base mais crítica e, portanto, agora é uma questão de vislumbrar alternativas para esse futuro. A inteligência artificial, a automação e a digitalização moldarão profundamente a forma como o trabalho será realizado nas próximas décadas. E, no entanto, também está muito claro a partir de eventos recentes – sejam seus algoritmos que perpetuam a injustiça histórica ou tecnologias que promovem condições de trabalho racializadas e de gênero – que o chamado futuro do trabalho não funciona para muitas pessoas. Precisamos de mais pesquisas que sejam capazes de entender como esses sistemas técnicos funcionam, mas que também possam incorporar insights profundos de estudos de mídia, raça e cultura, reunindo o técnico com o político. Meu próximo projeto espera fazer isso e começar a imaginar tecnologias baseadas em dados que promovam formas de trabalho mais inclusivas, mais comunitárias e mais sustentáveis. DigiLabour Compartilhar Artigo AnteriorMasculinidades e trabalho por plataformas na Índia Próximo ArtigoO futuro do transporte além do Vale do Silício: entrevista com Paris Marx 19 de julho de 2022