Início » Por que as plataformas devem seguir princípios de trabalho decente Interviews Por que as plataformas devem seguir princípios de trabalho decente Fairwork é um projeto liderado pela Universidade de Oxford e presente em 10 países com a finalidade de pressionar as plataformas digitais por melhores condições de trabalho, a partir da noção de trabalho decente, ligada à Organização Internacional do Trabalho. A pesquisa-ação analisa documentos e ouve trabalhadores e plataformas em relação aos cinco princípios Fairwork: remuneração decente, condições de trabalho decentes, contratos decentes, gestão decente e representação decente. Esses princípios são desdobrados em um total de 10 indicadores. Desenhada desde o início em parceria da equipe de pesquisadores com instituições interessadas – como associações de trabalhadores e órgãos públicos – a investigação pretende intervir no cenário do trabalho em plataformas, como demonstram os relatórios já publicados. O Fairwork começou há pouco no Brasil e conversamos com três pesquisadores do projeto baseados em Oxford: Mark Graham, diretor do Fairwork, Kelle Howson e Funda Ustek-Spilda, pesquisadoras de pós-doutorado, que têm auxiliado na interlocução com a equipe brasileira. Eles falaram com DigiLabour sobre a importância de as empresas das plataformas seguirem os princípios Fairwork, alguns resultados já alcançados em outros países e as expectativas para a pesquisa no Brasil. DIGILABOUR: Por que é importante que as plataformas sigam os princípios Fairwork? MARK GRAHAM: Uma das características definidoras da gig economy é a maneira como as plataformas se apresentam não como empregadoras, mas como intermediárias que simplesmente conectam consumidores que desejam um serviço até trabalhadores que podem prestar esse serviço. Ao fazer isso, elas evitam grande parte da legislação trabalhista existente no sentido de proteger os trabalhadores de condições de trabalho injustas. Quer as plataformas sejam ou não empregadoras, é importante reconhecer que o trabalho das pessoas na gig economy é trabalho. E todo trabalho deve ser definido por padrões mínimos de justiça. Embora as plataformas possam não ser legalmente empregadoras, elas ainda têm o poder e a capacidade de moldar as condições de trabalho. Como elas têm esse poder, não basta ignorar a situação dos trabalhadores que ganham abaixo do salário mínimo ou que trabalham sob condições perigosas. Os princípios Fairwork foram desenvolvidos tendo em mente esses fatos simples: todo trabalho deve ser justo, e o trabalho injusto é uma escolha que as plataformas fazem e podem desfazer. KELLE HOWSON: Para aproveitar a resposta de Mark, como a maioria das plataformas não é legalmente obrigada a atingir padrões mínimos de justiça, vemos com frequência que as plataformas ficam muito abaixo dos padrões de trabalho decente. Isso significa que os trabalhadores enfrentam baixas remunerações (geralmente baixas demais para cobrir seus custos e sobreviver), a consequente necessidade de trabalhar muitas horas (sem limite legal) e em condições de trabalho perigosas. Os trabalhadores das plataformas enfrentam incertezas e insegurança cotidianas. Se eles perdem sua renda ou ficam doentes e não conseguem trabalhar, geralmente têm muito pouca proteção. Eles também enfrentam uma gestão injusta, com decisões sobre desativação ou rescisão às vezes sendo tomadas arbitrariamente e sem aviso prévio ou sem chance de recorrer. Os trabalhadores muitas vezes não conseguem se comunicar com um representante humano da plataforma, se necessário. Portanto, é importante que as plataformas sigam os princípios Fairwork porque eles são um padrão mínimo de trabalho decente e também porque muitas plataformas atualmente não o fazem, o que significa que os trabalhadores são forçados a condições inaceitáveis e injustas. Na ausência de padrões legais mínimos, o Fairwork fornece uma referência para o que é justo na economia de plataforma. FUNDA USTEK-SPILDA: Seguindo o que os colegas falaram, podemos dizer que a escala de inseguranças e vulnerabilidades que os trabalhadores enfrentam no seu dia-a-dia se tornou mais visível após o Covid-19. Entregadores, trabalhadores de cuidados e motoristas provaram ser a chave para cuidar da sociedade em geral, mas se viram expostos ao risco do vírus e sem muita proteção oferecida pelas plataformas. No entanto, eles enfrentam uma escolha difícil: continuar trabalhando, mesmo com o risco de pegar o vírus, ou não trabalhar, mas enfrentar ainda mais a pobreza. O Covid-19 revelou essas inseguranças, mas os trabalhadores as vivenciam muito antes da pandemia. É por isso que é importante que as plataformas sigam os princípios do Fairwork. Um sistema construído sobre a exploração de seus trabalhadores é insustentável a longo prazo. DIGILABOUR: De que maneira as plataformas e os formuladores de políticas públicas têm respondido ao Fairwork até agora? KELLE: Embora nem todas as plataformas desejem trabalhar com o Fairwork, muitas têm respondido positivamente. Muitas plataformas percebem os benefícios de fornecer condições de trabalho decentes. Isso torna-as mais atraentes para trabalhadores e consumidores. Algumas plataformas fizeram alterações para melhor atender aos princípios do Fairwork. Duas plataformas sul-africanas concordaram em pagar a seus trabalhadores acima de um salário por hora. Outras duas também concordaram em reconhecer e se envolver com um sindicato ou associação coletiva de trabalhadores se um deles fosse formado. Isso mostra que a mudança é possível – e que as plataformas podem trabalhar no sentido de estabelecer padrões mais justos para o trabalho na gig economy. Uma grande parte da missão da Fairwork é reconhecer e recompensar práticas justas na gig economy, o que, por sua vez, pressiona as plataformas menos justas a alcançar os padrões de seus concorrentes. Alguns formuladores de políticas também estão reconhecendo que a estrutura e os resultados do Fairwork podem ajudar a embasar as políticas públicas relacionadas ao trabalho em plataformas. O Fairwork contribuiu para os processos de políticas consultivas na África do Sul e, em colaboração com nossos colegas da área de Direito do Trabalho no Reino Unido e na África do Sul, produzimos recursos para mostrar como nossos princípios podem formar a base para as mudanças legislativas e políticas. DIGILABOUR: É comum observarmos empresas de plataformas que têm profissionais com cargos de liderança focados em políticas públicas. O que isso quer dizer em relação à economia de plataformas? KELLE: O número de plataformas que incluem cargos de “diretor de políticas públicas” ou similares demonstra uma característica fundamental do modelo de negócios das plataformas. Elas são altamente dependentes da percepção positiva dos consumidores e das relações públicas, a fim de estabelecer mercados e legitimidade. Isso também demonstra outra realidade importante: as plataformas sabem que têm um impacto social significativo – sobre seus trabalhadores e nos espaços em que operam. As plataformas precisam investir bastante em comunicação, relações públicas e marketing, a fim de fabricar demandas e combater ameaças ao seu modelo de negócios na forma de ação ou regulação industrial. DIGILABOUR: Quais as expectativas para o projeto Fairwork no Brasil? FUNDA: Como ocorre em outros países, o Fairwork Brasil quer melhorar as condições de trabalho nas plataformas digitais e incentivar plataformas a melhorar a qualidade do trabalho. Também esperamos reduzir as assimetrias de informação entre trabalhadores, plataformas e consumidores, para que os trabalhadores possam escolher, sempre que possível, trabalhar para plataformas que os tratem de maneira justa e os consumidores possam fazer escolhas em relação ao uso de plataformas que forneçam condições de trabalho decentes para seus trabalhadores. DigiLabour Compartilhar Artigo AnteriorO que vem depois da gig economy: entrevista com Juliet Schor Próximo ArtigoTrabalho invisível e lutas de trabalhadores em contextos digitais: entrevista com Winifred Poster 3 de agosto de 2020