Um dos grandes debates sobre trabalho em plataformas digitais é a questão do valor extraído pelas plataformas. Na primeira metade da década de 2010, a grande questão era se os usuários trabalhavam ou não para as plataformas de mídias sociais – e se há ou não valor envolvido. Nos últimos anos, o debate tem se deslocado para as relações das plataformas com o rentismo e a financeirização, incluindo o papel da extração de dados como capital.
Um ponto de virada nesse debate parece ser o livro Platform Capitalism, do Nick Srnicek, de 2016. Ele tenta nos convencer que o debate sobre as atividades dos usuários não é só uma tediosa discussão sem fim e assume a posição de que as plataformas de publicidade se apropriam dos dados como matéria-prima, considerando que há uma multiplicidade de plataformas, com extrações específicas de valor. Naquele momento, Srnicek falava em outros tipos, como plataformas industriais, de produto, de nuvem e lean ou enxutas. Ele já mudou o diagnóstico e afirmou – em entrevista à DigiLabour – que atualmente só há três tipos: publicidade, nuvem e enxutas.
Confira algumas referências sobre valor no trabalho em plataformas:
- Os usuários trabalham para as mídias sociais? A defesa do argumento do trabalho gratuito/ não pago dos usuários emergiu principalmente na obra de Christian Fuchs entre 2010 e 2015, por exemplo, nos livros Social Media: a critical introduction e Digital Labour and Karl Marx, partindo da ideia de mercadoria audiência de Dallas Smythe;
- No Brasil, uma referência é Marcos Dantas, que cravou a expressão mais-valia 2.0 para falar da produção e apropriação de valor nas redes do capital a partir de noções como trabalho sígnico, semiótico e informacional. Há também um texto sobre ciclo de acumulação de capital no Facebook e no Youtube, com Gabriela Raulino. Em 2019, Dantas publicou artigo na revista tripleC sobre o tempo de rotação do capital no limite do zero como lógica financeira nas plataformas digitais;
- Os usuários não trabalham para as mídias sociais: A resposta mais conhecida aos argumentos acima foi dada por César Bolaño e Eloy Vieira em textos publicados na Television & New Media e na tripleC (em inglês) e na Eptic (em português). Para os autores, as atividades dos usuários não possuem valor de troca e esse conteúdo apenas interessaria às empresas como matéria bruta. Não há, então, trabalho produtivo ou explorado, pois este é realizado por trabalhadores informacionais que transformam as informações coletadas em bancos de dados;
- Outras críticas fundamentais à abordagem de Christian Fuchs foram empreendidas por Rodrigo Moreno Marques e Kaan Kangal. Marques afirma que a perspectiva de Fuchs elimina diferenças entre trabalho e lazer e entre tempo de trabalho necessário e excedente. Assim, propõe uma alternativa que considere as categorias de renda e renda de monopólio, além da diferença entre valor e preço. Já Kangal argumenta que Fuchs interpreta mal a obra de Marx e impossibilita de compreender os potenciais políticos do marxismo para as questões em jogo. Outra crítica vem de Edward Comor, para quem a teoria marxiana do valor é fundamental, mas considera-a mal interpretada por autores como Fuchs e Arvidsson;
- Outro autor que entrou neste debate é Adam Arvidsson, que nega a teoria marxiana do valor, afirmando que ela é difícil de aplicar às ações dos usuários nas mídias sociais. Para ele, a criação de valor em tais atividades não é muito relacionada com o tempo e a extração de valor pelas empresas de mídias sociais ocorre mais nos mercados financeiros em vez da troca direta de mercadorias. Arvidsson considera que o problema do Facebook é justamente não explorar os usuários de forma eficiente e utiliza a noção de “lógica social do derivativo”. Ele detalhou o argumento em entrevista à DigiLabour, em que também afirmou que o capitalismo vive um período de refeudalização;
- Ursula Huws também nega a ideia de trabalho explorado dos usuários, mas faz isso a partir da teoria do valor-trabalho em Marx, e afirma que a lógica por trás das plataformas digitais é a do rentismo. A mais-valia obtida por Facebook e Google, para ela, não vem dos usuários, mas dos trabalhadores que produzem mercadorias para serem anunciadas nesses sites;
- Uma referência brasileira é a tese de doutorado de Jonas Valente, “Tecnologia, informação e poder: das plataformas online aos monopólios digitais”. A partir de análise de Google e Facebook, Valente mostra como as plataformas utilizam seu número de usuários, a base de dados e seu poder tecnológico para ampliarem sua atuação configurando-se como monopólios digitais e criando formas de potencialização da subsunção do trabalho intelectual;
- Jathan Sadowski considera as plataformas digitais como território dos “Senhores de Terra” e refuta a ideia de que o capitalismo contemporâneo seja “refeudalizado”, mas a própria expressão da acumulação capitalista atual, de cunho rentista. Ele argumenta que o rápido crescimento das plataformas está criando relações rentistas, mas que aparecem sob outros nomes. Para ele, as plataformas se inserem nos processos de produção, circulação e consumo, extraindo valor a partir de três principais mecanismos: extração de dados – como forma de capital – , fechamento digital e convergência de capital;
- Niels van Doorn e Adam Badger argumentam que o capitalismo de plataforma é caracterizado por uma produção dual de valor e chamam a atenção para as relações estruturais entre capital financeiro, ativos de dados e precarização do trabalho. O valor monetário é aumentado pelo uso e valor especulativo de dados antes, durante e depois da prestação de serviços. Os autores chamam a atenção para a produção de dados pelos trabalhadores das plataformas digitais, como entregadores e motoristas. A produção de ativo de dados reflete uma distribuição desigual de oportunidades para sua valorização. Os autores ressaltam o papel das “meta-plataformas”, que alocariam a riqueza das nações. Além disso, consideram que, por um lado, o capital financeiro subsidia parte dos salários dos trabalhadores das plataformas, e, por outro, visa tornar seu trabalho obsoleto;
- Os modos de extração do valor do trabalho plataformizado são teorizados por Attila Marton e Hamid Ekbia. Uma dessas maneiras é a heteromação – algo também tratada em entrevista à DigiLabour – que é o oposto da automação e extrai valor de forma invisível com o trabalho por trás da inteligência artificial;
- Valor de qualificação, monetização e automação: Antonio Casilliafirma que o trabalho em plataformas digitais traz uma nova estrutura de criação de valor a partir de um tripo valor: qualificação, monetização e automação. O argumento está no livro En Attendant Les Robots e no artigo Qualifier, monetiser, automatiser : digital labor et valeur sur les plateformes numeriques. Ele também explica em português em entrevista à DigiLabour.
- Arquiteturas do trabalho digital no Youtube: algumas contribuições são um artigo de Hector Postigo na New Media & Society a tese de doutorado de Lucas Hertzog, “Dá um like, se inscreve no canal e compartilha o vídeo: um estudo sociológico sobre o trabalho e as novas tecnologias digitais no Youtube Brasil”; e o texto de Leonardo de Marchi sobre como os algoritmos do Youtube calculam valor, tomando por base a teoria da lógica social de derivativo.
- Feminismo marxista e trabalho digital: as contribuições entrecruzam os papeis do trabalho reprodutivo e do trabalho em plataformas digitais, com uma crítica feminista da ideia de “fábrica social”, vinda do autonomismo italiano. Algumas autoras dessa perspectiva são Kylie Jarrett, que fala em “dona de casa digital”, indo para além da noção de “trabalho de consumidor”, e Gabriella Lukács, que analisa como o trabalho não pago de mulheres blogueiras sustenta a economia digital japonesa.
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