Início » Trabalho precário na indústria de games: entrevista com Ergin Bulut Interviews Trabalho precário na indústria de games: entrevista com Ergin Bulut Ergin Bulut é professor de Comunicação na Koç University, da Turquia com pesquisas nas áreas de economia política da comunicação, produção cultural e games. É autor do livro A Precarious Game: the illusion of dream jobs in the video game industry, uma etnografia sobre o trabalho na área de games. Bulut pesquisou por três anos um estúdio de games de tamanho médio no Centro-Oeste dos Estados Unidos com o objetivo de compreender como o “amor pelo trabalho” aparecia na indústria. O estúdio produzia jogos AAA (ou Triplo-A), que são os de maiores orçamentos e espera-se de alta qualidade. Em 2013, quando Bulut concluiu a etnografia, a empresa era de capital aberto e, mais tarde, declarou falência. O livro A Precarious Game mostra como apenas poucos trabalhadores podem aproveitar um “emprego dos sonhos”, que é, na maioria das vezes, precário na indústria de games. Para Bulut, a paixão pelo trabalho dos homens brancos da indústria depende de desigualdades materiais que envolvem trabalho sacrificial de suas famílias, trabalho não reconhecido de testadores e marcadores de raça e gênero no trabalho no Sul Global. DIGILABOUR: O que é ludopolítica? ERGIN BULUT: Ludopolítica é um termo que cunhei com inspiração no trabalho de Achille Mbembe e seu termo “necropolítica”. A noção de “necropolítica” em Mbembe é uma crítica construtiva da “biopolítica” de Michel Foucault. O que Mbembe faz é examinar a colônia e as formas de morte, dissecando como a soberania funciona nesses espaços políticos extraordinários por meio da destruição. Obviamente, conectar o espaço colonial à indústria de games parece algo extremo. No entanto, eu queria enfatizar a materialidade e a brutalidade invisível em relação à maneira como o poder opera na indústria de videogames. Por um lado, as práticas de trabalho da indústria de games parecem ser muito efêmeras e imateriais. O trabalho não parece trabalho. É algo divertido. É amor. Por outro lado, as desigualdades que cercam a indústria e sua força de trabalho podem ser bastante destrutivas e excludentes. Então, eu uso o termo ludopolítica para mapear e criticar a política de “quem pode jogar e quem precisa trabalhar” na indústria de games. Eu particularmente uso esse termo para evidenciar a centralidade da desigualdade e da reprodução social como uma lente crítica para compreender a política do trabalho na indústria de games. Quando evidenciamos a desigualdade e a reprodução social como uma estrutura, nós somos capazes de analisar o trabalho fora dos limites formais do local de trabalho e conectá-lo aos espaços urbanos e domésticos. DIGILABOUR: Quais são as desigualdades que estruturam a indústria de games? BULUT: Há vários níveis de desigualdades no setor. Lembro que uma grande empresa de capital aberto possuía o estúdio que eu estava pesquisando. Nesse sentido, se você estivesse trabalhando neste estúdio, isso significaria que a empresa de games de capital aberto possuía seu produto – o próprio game como propriedade intelectual – por meio dos acordos de não divulgação que você assina. Agora, assinar um contrato é algo tipicamente imaginado como uma troca livre, mas isso é um mito. Assinar esse acordo basicamente tira seu trabalho de você por meios não violentos. Quando você trabalha para uma empresa de capital aberto, não tem nada a dizer sobre como eles organizam suas operações atuais e futuras, o que, de fato, tem uma grande influência no processo de trabalho e no futuro dos trabalhadores. Em outras palavras, embora você possa ser criativo no que faz, alguém organiza seu trabalho em termos organizacionais, espaciais e temporais. O estúdio de games que eu estava pesquisando era um estúdio de grande sucesso. Fizeram jogos lucrativos. E, no entanto, as más decisões financeiras tomadas pelo proprietário criaram condições adversas de trabalho para os desenvolvedores de games que pesquisei. Em suas próprias palavras, eles foram quase punidos por seu sucesso. Embora os trabalhadores e pesquisadores de comunicação geralmente imaginem que sucesso significa segurança, isso estava longe de acontecer. Meu livro demonstra como o trabalho inovador é intrinsecamente precário. Outro nível de desigualdade surge dentro do próprio estúdio. Por um lado, há a equipe principal de desenvolvimento dos games: artistas, designers e programadores. A maioria deles trabalha em tempo integral e com os melhores salários. Eles têm um maior impacto criativo na direção de um game. Podem desfrutar livremente da política de trabalho flexível implementada no estúdio. Têm espaços de trabalho maiores. Vão a conferências, feiras e, às vezes, desfrutam de viagens internacionais. No entanto, também há os testadores, que sentem que são cidadãos de segunda classe. É esse o caso, porque a maioria deles trabalha por projeto. Em seguida, eles são demitidos ou “liberados”, nas palavras do departamento de recursos humanos, assim que o projeto termina. Eles também gostam da política flexível em relação ao trabalho, mas não tanto quanto a equipe criativa principal. Uma fonte de desigualdade central em relação aos testadores é que não é necessário um diploma universitário para se tornar um testador. Tudo que você precisa é ter paixão por games. Obviamente, esse é um movimento retórico para desvalorizar seu trabalho por causa da paixão por games. E jogar videogames é uma das principais habilidades necessárias. Eu, por exemplo, não tenho mais essa habilidade. Um terceiro nível de desigualdade que eu chamo a atenção no meu livro é sobre a diversão derivada do trabalho criativo e na área de tecnologia. Os desenvolvedores de games adoram o que fazem. São apaixonados pelo trabalho e gostam de ultrapassar as fronteiras da tecnologia. Mas o que eles chamam de “divertido” ou “engraçado” no conteúdo de seus games pode prejudicar mulheres e pessoas não brancas, principalmente porque a indústria de games é composta majoritariamente por homens brancos. Não era incomum o libertarianismo nos desenvolvedores de games que pesquisei. Para teorizar como eles compreendem a diversão em relação à inovação tecnológica e como desconsideram as críticas a conteúdos problemáticos de games, eu propus o termo religiosidade lúdica. A religiosidade lúdica revela como os desenvolvedores de games enquadram o conteúdo problemático do game por meio da “diversão”. Ao fazer isso, eles são capazes de descartar o conteúdo ideológico do que criam. Por exemplo, eles afirmam que não têm como alvo um grupo específico, mas ofendem igualmente a todos. Obviamente, a masculinidade branca está no cerne da religiosidade lúdica como um sistema de crenças, que está relacionada não apenas ao conteúdo dos games, mas também profundamente conectada aos sistemas tecnológicos com os quais os desenvolvedores de games gostam de mexer para fins de diversão. Há momentos em que eles tomam conhecimento de códigos problemáticos de raça e gênero nos games, mas esses momentos são raros, infelizmente. Um quarto nível de desigualdade encontra-se fora do estúdio, especificamente nas casas dos desenvolvedores de games. O espaço doméstico surge como um local de crise de vez em quando. Estamos familiarizados com essas crises domésticas desde o infame caso EA Spouse, que apareceu repetidas vezes em outros estúdios de games. Então, entrevistei as cônjuges dos desenvolvedores de videogames e perguntei o que acontece quando seus parceiros estão trabalhando. Quem cuida da família e do espaço doméstico quando os desenvolvedores de games perseguem seus empregos dos sonhos e trabalham inúmeras horas? Como um pesquisador homem, tenho que reconhecer que isso não estava nos meus planos iniciais quando comecei esta pesquisa e sou grato a várias pesquisadoras como Silvia Federici, Vicki Mayer, Kylie Jarrett e Tithi Bhattacharya. Quando eu estava entrevistando um artista técnico no estúdio, ele me contou como a sua esposa considerava o estúdio de games uma casa de fraternidade. Isso me forçou a ampliar minha pesquisa para além do estúdio, e acredito que essa é uma das alegrias da pesquisa etnográfica, pois você acaba em lugares nos quais nunca havia pensado antes. Decidi entrevistar os cônjuges dos desenvolvedores de games. Dada a demografia dominante, isso significava que eu conversaria com mulheres. Assim, minhas conversas revelaram como as chamadas indústrias criativas estão longe de erradicar as desigualdades de longa data em relação ao trabalho doméstico. Ao mesmo tempo, as mulheres que entrevistei apresentaram críticas profundamente embasadas em relação às práticas de trabalho e do discurso sobre o amor na indústria. Na verdade, elas foram muito mais expressivas sobre os problemas que surgem do trabalho apaixonado do que seus companheiros. DIGILABOUR: Você se pergunta “o que significa a precarização de empregos glamourosos de classe média em relação ao trabalho em geral, especialmente no contexto de debates sobre o futuro trabalho”. Como assim? BULUT: As discussões sobre precarização têm sido, de forma geral, limitadas – e com razão – a empregos informais e com baixos salários. Especialmente na grande imprensa, essas discussões tendem a normalizar a precariedade principalmente porque são os trabalhadores “pouco qualificados”, na maioria mulheres e pessoas não brancas, que experimentam isso. Portanto, temos a impressão de que a precariedade é inevitável. É normal porque, segundo o argumento, essas pessoas são menos instruídas e não possuem habilidades suficientes para negociar em um mercado supostamente neutro. A partir da perspectiva da pesquisa crítica, tem sido dada muita atenção aos trabalhadores precários da gig economy. Nessas perspectivas, parece-me que, às vezes, há um entendimento implícito que coloca em cena novamente a questão das habilidades (skills). Meu objetivo no livro é enfatizar como o capitalismo produz estruturalmente a precariedade, não importa qual seja. É um sistema que funciona por meio do desemprego, seja como realidade ou fonte de medo e ansiedade. Obviamente, a indústria de games parece diferente da gig economy. Os trabalhos parecem glamourosos. A tecnologia é de ponta. Os locais de trabalho são divertidos. Há também a falsa impressão de que a indústria de games é imune a crises econômicas. Isto está completamente errado. A indústria de games caiu em 1983 devido à ganância e ao mau planejamento em relação aos consoles e cartuchos de games no caso da Atari. A indústria sofreu outras quedas após períodos de grande crescimento. O momento mais recente foi a crise financeira de 2008, que causou redução e fechamento de estúdios de forma sistêmica. O advento de novos modelos, como o free-to-play, exacerbou ainda mais as incertezas industriais. Portanto, os empregos de classe média na indústria glamourosa de games são precários. Reconheço que o nível de precariedade não é o mesmo que trabalhadores imigrantes ou dos trabalhadores essenciais no contexto atual da pandemia de Covid-19. Ainda assim, é importante destacar que o discurso tecnofílico na indústria de games e as discussões mais amplas sobre “trabalho por amor” devem nos alertar sobre como esses discursos operam como uma tecnologia de distração. DIGILABOUR: Como as relações de raça e gênero estruturam a indústria de games? BULUT: Como comentei antes, o setor, especialmente o segmento AAA, é predominantemente branco e masculino. Neste sentido, a indústria de games não é diferente da ecologia high-tech em termos de relações de gênero e raça. No nível representacional dos games, houve algumas melhorias, mas novamente, que foram sujeitas a críticas acadêmicas em termos do significa a inclusão e em quais termos. A diversidade de trabalhadores é, de fato, um grande problema no setor. As pessoas não brancas ainda são minorias na América do Norte e no Reino Unido. Conforme revelado pelo caso mais recente da Riot Games, a “cultura dos brothers” e o sexismo são dominantes na indústria, causando divergências entre os trabalhadores. No meu livro, eu discuto essa questão problematizando o termo “diversidade”. Talvez a diversidade não seja o enquadramento correto. Talvez a questão da diversidade não seja um bug, mas uma característica da indústria. Com base no trabalho de Sara Ahmed, defendo que a diversidade pode nos prender a uma cultura de conversas improdutivas no sentido de não impor reformas e ações institucionais. Proponho que vinculemos diversidade a desigualdades institucionais mais amplas derivadas de ideologias profissionais e culturas industriais da masculinidade branca. Felizmente, os desenvolvedores de games estão se manifestando. Eles não estão apenas se manifestando, mas também, há algum tempo, produzindo games que não se alinham às lógicas de produção dominantes que eu denominei como “criatividade unidimensional”, com inspiração em Herbert Marcuse. As desenvolvedoras mulheres e queer ou simplesmente pessoas que estão cansadas da lógica repetitiva de sequências de jogos AAA estão desafiando as normas do setor no nível representacional. Também estão inovando no modo como o trabalho é organizado no ambiente de trabalho. Finalmente, há um espaço crescente para desenvolvedores de games queer que investem na ideia de repensar e reestruturar a criatividade e a diversão por meio de culturas de design que sejam críticas. DIGILABOUR: Como você relaciona espacialização e financeirização em sua pesquisa? BULUT: Tanto no livro A Precarious Game quanto em minha agenda de pesquisa sobre as indústrias midiáticas, estou interessado em juntar a crítica da economia política e a pesquisa etnográfica. Portanto, por um lado, há grandes questões estruturais de finanças e dinheiro. Por outro, estou interessado em como essas forças estruturais se desdobram na vida cotidiana dos trabalhadores de comunicação e mídia. Quando eu estava entrevistando desenvolvedores de games sobre a história de seu estúdio, aprendi sobre as transformações organizacionais e espaciais pelas quais eles passaram quando a empresa-mãe os comprou no início dos anos 2000. A empresa-mãe queria adquirir o estúdio de games que pesquisei porque estava produzindo jogos de sucesso. Depois que a aquisição ocorreu, a controladora forneceu o dinheiro necessário para contratar os “corpos quentes” a serem explorados para a produção de games competitivos e de alta qualidade para o competitivo mercado AAA. Isso significou um crescimento exponencial da força de trabalho. Agora, quando esse for o caso, você precisa de espaço e, finalmente, precisa se mudar do local da startup para uma nova praça corporativa. Portanto, a cidade em que se encontra o estúdio forneceu o espaço urbano por meio de regulações específicos, porque a prefeitura da cidade estava feliz com o estúdio e as contribuições financeiras de seus trabalhadores para a economia da cidade. O estúdio também trouxe legitimação e valor simbólico na chamada economia criativa. Portanto, a espacialização é uma estrutura fundamental para enfatizar como nossa economia digital não é leve. Requer infraestruturas urbanas específicas para funcionar. A financeirização, por outro lado, refere-se aos processos por meio dos quais o estúdio tornou-se parte dos mercados financeiros assim que a empresa de capital aberto o adquiriu. Antes da aquisição, o estúdio era independente. Precisava de dinheiro, mas não precisava satisfazer os investidores. Com a financeirização, como demonstro no livro por meio de vários acontecimentos, o estúdio fica para sempre em dívida com a empresa de capital aberto. Os preços das ações começam a determinar seu valor como trabalhadores. Assim, embora a aquisição os tenha libertado inicialmente do modo precário de estúdio independente, isso também levou a novas formas de subordinação aos mercados financeiros. A dinâmica de produção perpétua, a cultura competitiva de upgrade e o trabalho sem fim precisam ser compreendidos no âmbito da financeirização, em oposição a uma percepção individualizada e psicológica da paixão e do amor no trabalho. DIGILABOUR: Como é a organização do trabalho no estúdio que você pesquisou, entre desenvolvedores e testadores, por exemplo? BULUT: No estúdio que pesquisei, os desenvolvedores de games são considerados os trabalhadores criativos mais privilegiados. Este grupo inclui programadores, artistas e designers. Os programadores escrevem códigos ou leem códigos escritos por outras pessoas. Eles desenvolvem infraestruturas de suporte. Lidam com lógica e manipulação de números. Por fim, eles contribuem para a produção de um jogo que funcione sem problemas, enquanto simultaneamente satisfazem as demandas de artistas e designers. Os artistas estão envolvidos na estética de um jogo. Produzem o ambiente, os personagens, a interface do jogo etc. No estúdio em que conduzi minha pesquisa, eles tinham uma posição peculiar: parte das artes era produzida na China. Embora isso inicialmente tenha causado inquietação em relação à segurança no emprego, trabalhar com a China preocupava os artistas de outra maneira. Eles se queixavam de se transformar em gerentes e se perderem em planilhas corporativas em vez de se entregarem ao trabalho criativo. Em seguida, há os designers. Eles são as estrelas da indústria. São os responsáveis pelas sensações do jogo. Querem ter certeza de poder comunicar certos sentimentos aos jogadores. Assim, eles se encontravam de vez em quando para cultivar uma cultura de design específica. O apelo da profissão é tal que o design de games é agora um campo educacional emergente – talvez até mais do que emergente – nas universidades ao redor do mundo. Os testadores não fazem parte da equipe principal de desenvolvedores, mas de um grupo de suporte. São o grupo mais vulnerável de trabalhadores no estúdio. O trabalho deles é garantir que o jogo final esteja livre de erros. Eles não têm muita agência no processo criativo. Um diploma formal não é essencial para se tornar um testador. Testar um game também é considerado um trampolim para “invadir” a indústria. Quando esses fatores se unem, o valor dos testadores de games é depreciado, criando sentimentos de uma cidadania de segunda classe. Além desses trabalhadores, há produtores, líderes de equipe e gerentes de projetos no estúdio. Os produtores são responsáveis por lançar um jogo coerente e lucrativo. Eles também são a interface entre o estúdio e a empresa-mãe. Os líderes de equipe (por exemplo, de programadores, artistas ou designers) são a ponte entre o produtor e a equipe. Eles comunicam tarefas, horários de trabalho e demandas entre essas duas partes. Os gerentes de projetos são os que alocam recursos para a equipe e garantem que a equipe esteja dentro do cronograma. No geral, os testadores games são os mais precários do estúdio. Eles são contratados, demitidos e recontratados, a depender do status de um projeto. Como jogar games é parte de sua definição de trabalho, o que eu chamei anteriormente de degradação da diversão, que cada vez mais os testadores jogam de maneira mais seletiva e sentem menos prazer ao jogar. A degradação da diversão também deriva das precárias condições de trabalho e da falta de tempo livre fora do trabalho. Também é seguro enfatizar que, embora existam diferenças ocupacionais entre diferentes tipos de trabalhadores, desenvolvedores de games e testadores são unidos pela maneira como seu trabalho é apropriado por regimes rígidos de propriedade intelectual. DIGILABOUR: Você tanto critica quanto usa os termos “imaterial” e “criativo”. Por que? BULUT: No livro, apresento uma discussão crítica sobre a proliferação de alguns termos na literatura sobre indústrias culturais e trabalho na área de comunicação. Existem vários termos, incluindo trabalho imaterial, trabalho cultural, trabalho criativo, trabalho digital e outros que procuram iluminar as práticas de trabalho dentro e fora das indústrias midiáticas. Entre esses, uso criticamente o termo “trabalho imaterial”. Reconheço as críticas a respeito da negligência do termo no âmbito do trabalho doméstico e do problema da incomensurabilidade. Não entro nos debates históricos se o trabalho pode ou não ser considerado algo irrelevante. No entanto, uso o termo para enfatizar a mudança qualitativa na economia digital. As outras razões fundamentais pelas quais ainda uso o termo são as seguintes. Primeiramente, ele ainda reconhece as tensões e conflitos entre capital e trabalho. O termo ainda torna visível como o capital explora o trabalho por meio de várias estratégias, como prolongar a jornada de trabalho, introduzir ambientes de trabalho flexíveis ou desenhar locais de trabalho divertidos. A noção também aparece na perspectiva da propriedade intelectual como a personificação material da alienação, na qual os desenvolvedores de games são desassociados dos produtos de seu próprio trabalho. Obviamente, pode haver dúvidas sobre como eu defino alienação quando os trabalhadores podem beber álcool no trabalho ou trabalhar de maneira bastante flexível. Sugiro entender o capitalismo como um regime de desejo e pensar na alienação além das dualidades que normalmente associamos na obra original de Marx. Em vez de me ater à definição de alienação como perda de autonomia, proponho reformulá-la como fixação ou “um afeto teimoso”, nos termos de Frederic Lordon, em que ninguém pode pensar em outra coisa senão trabalhar. Nós nos tornamos viciados. Obviamente, isso não nega o fato de que a alienação ainda prevalece em termos legais e contratuais, em que alguém tira algo de outra pessoa. Certamente, o desenvolvimento de um jogo é muito diferente do que a produção de hardware. No entanto, ao mesmo tempo, coisas como assinar acordos de confidencialidade ou o próprio contrato de trabalho, as demandas corporais incessantes, a produção de sequências de games em oposição ao que se gostaria de fazer e a falta de uma palavra sobre o futuro do estúdio atestam como a alienação existe materialmente de várias maneiras. Não me interpretem mal. Eu acho úteis as ideias de “trabalho criativo” e do “trabalho cultural”, pois atendem produtivamente às dimensões subjetivas do processo de trabalho. No entanto, eu discordo do foco deles na justiça, e não na política. Mesmo quando se possui todas as características de um bom trabalho no próprio local de trabalho, ainda pode haver alienação simplesmente porque não há segurança ou clareza em relação ao futuro do emprego. Se procurarmos justiça no local de trabalho na área de comunicação e mídia e preferirmos termos como bom trabalho em relação à alienação, podemos ignorar a natureza política do trabalho. Um estúdio de games, no fim das contas, é uma comunidade política se estivermos definindo uma comunidade política como algo em que o poder se desdobra e é negociado e contestado. Então, minha sugestão é politizar a discussão sobre o bom e o mau trabalho quando é precisamente a alma do trabalhador que as empresas de games desejam. DIGILABOUR: No livro, você fala também sobre renda básica universal e sindicalização, como o Game Workers Unite. Como estão as lutas dos trabalhadores de games e como, a partir disso, reimaginar uma sociedade pós trabalho? BULUT: Quando eu estava fazendo a pesquisa para o livro, uma questão que eu explorei foi a sindicalização na indústria de videogames. Eu estava curioso sobre como os desenvolvedores de games abordam a questão. Alguns eram indiferentes à sindicalização. Eles não haviam pensado nisso. Alguns acreditavam que os sindicatos pertenciam ao passado industrial. Outros pensavam que a sindicalização era como morder a mão que os alimentava. No geral, isso não estava na imaginação deles. Ao concluir minha pesquisa, o publisher do meu local de pesquisa estava com problemas financeiros e logo declarou falência. Então, decidi revisitar esta questão. Pensei que talvez os desenvolvedores de jogos agora pensassem de maneira diferente. Eu estava errado. A posição deles não mudou. A sindicalização era um tema pesado. Um pouco contraditório demais. Eles não pensam que são explorados. Um produtor até disse: “Você não está nesse setor se não é um viciado em trabalho até certo ponto”. Um desenvolvedor de games envolvido na gestão de comunidades chegou a comparar sua posição com a de seus familiares que trabalhavam na indústria do tabaco. Ele enfatizou a “natureza nômade” dos desenvolvedores de games, que geralmente são “criaturas individualistas” que “continuam a evoluir” e “aprendem as melhores práticas”. De acordo com este desenvolvedor, a indústria de games diferia radicalmente das indústrias tradicionais. Ele disse: “Não é como se você trabalhasse vinte anos em um local e pronto. Estou trabalhando em um setor em que é perfeitamente possível trabalhar em cinco lugares diferentes em dez anos”. Um testador de games, como um dos trabalhadores mais precários, destacaria a alegria e o valor simbólico de ser empregado na indústria de games: “Especialmente porque é o desenvolvimento de games e quase parece um privilégio apenas por estar na indústria”. Esse caso específico, no entanto, não deve significar que os trabalhadores da indústria de games não estejam se organizando ou sejam apenas engrenagens na máquina. Antes de tudo, quando olhamos para a história da indústria, deparamos com antagonismos expressos pelos trabalhadores ou seus cônjuges em relação à exploração ou ao assédio no local de trabalho. Felizmente, esses antagonismos agora encontraram uma voz coletiva: o Game Workers Unite (GWU). O GWU é um novo sindicato e não o tipo de sindicato dos trabalhadores da indústria de games na França (STJV). Atualmente o GWU é um movimento global, trabalhando para resolver problemas estruturais no setor, incluindo crise, contrato de trabalho, horas extras não remuneradas, falta de assistência médica, culturas tóxicas no local de trabalho, racismo e sexismo no local de trabalho e a ética de trabalho altamente problemática na indústria. Quando você olha para o discurso deles, é muito mais radical que o International Game Developers Association (IGDA). Penso que uma das intervenções mais perspicazes que o GWU realizou é enfatizar que se pode ser, ao mesmo tempo, apaixonado pelo trabalho e pró-sindicatos. Portanto, é uma voz muito importante e uma ação coletiva contra o libertarianismo mais amplo da indústria. Também devemos ver o GWU como parte dos movimentos mais amplos de sindicalização nas indústrias de mídias digitais e o crescente descontentamento contra o sexismo e o racismo dentro e fora da indústria de videogames, como vimos nos casos do GamerGate e do #MeToo. Quando estava para concluir o livro, não havia deparado ainda com discussões sobre renda básica universal ou uma imaginação radical pós trabalho no movimento de sindicalização. Há críticas radicais à renda básica universal entre estudiosos marxistas. Eu posso entender os motivos, mas ao mesmo tempo, a renda básica ainda é uma demanda radical que os trabalhadores de games e trabalhadores em geral podem buscar. Acho que a pandemia do Covid-19 deixou claro como a renda básica universal poderia salvar vidas. Como uma renda baseada na cidadania, ela pode não apenas ajudar financeiramente os trabalhadores, mas também abrir novos espaços (físicos e imaginários) para os trabalhadores explorarem novas maneiras de trabalhar e estar no mundo. Entre essas novas formas de ser está o primeiro plano de uma imaginação pós trabalho. Novamente, como está brutalmente ilustrado durante o Covid-19, a maioria dos empregos neste planeta não é totalmente necessária. Uma imaginação pós trabalho é crucial para nos reinventarmos e, com isso, nossas relações, nossas infraestruturas de atendimento, o modo como nos relacionamos com o tempo, como nos relacionamos com a ecologia mais ampla e com o planeta. Tal imaginação é vital se quisermos reconfigurar o modo como organizamos a sociedade em termos daquilo que priorizamos e destruir “a fantasia da sociedade do trabalho”, nos termos de James Chamberlain. Tal imaginação desencadeia desejos que podem melhorar nossos mundos em direção a uma utopia maior. Como Kathi Weeks argumenta lindamente, uma imaginação pós trabalho não deve ter vergonha de formular utopias. Uma coisa que a sindicalização da indústria de games revela é que a indústria não consegue entregar os futuros lúdicos que promete. Então, por que não ser feliz e resistir à toxicidade emocional que a indústria de games e os discursos autoritários mais amplos de “faça o que você ama” nos impõe como cidadãos e trabalhadores? Podemos realmente começar a construir essa utopia de uma sociedade pós-trabalho por meio de diversões que não sejam mercantilizadas e instrumentalizadas. 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