Início » Questionando o universalismo por trás dos dados: entrevista com Ulises Mejias Interviews Questionando o universalismo por trás dos dados: entrevista com Ulises Mejias Ulises Mejias é o coautor do livro The Costs of Connection, com Nick Couldry. É professor de Comunicação da State University of New York at Oswego. O mexicano também é autor do livro Off the Network: Disrupting the Digital World, de 2013. Recentemente, publicou texto com Couldry sobre a noção de dataficação na revista Internet Policy Review. Em entrevista à DigiLabour, Mejias aborda maneiras de resistir e “descolonizar” os dados, além de suas experiências (des)coloniais como professor mexicano nos Estados Unidos. DIGILABOUR: De que maneiras é possível falar em “descolonizar” os dados? ULISES MEJIAS: Antes de falar sobre descolonização, devemos falar sobre colonização. Nos perguntam (Nick Couldry e eu) com frequência: “não é muito forçado chamar o que está acontecendo hoje em relação à coleta de dados de uma nova forma de colonialismo, dada a violência e a especificidade histórica do colonialismo histórico?”. Em nosso trabalho, tentamos argumentar cuidadosamente que sim. Não nos concentramos tanto na forma ou no conteúdo do colonialismo europeu, mas na função histórica, que era de desapropriação. Em vez de recursos naturais ou trabalho humano, o que essa nova forma de colonialismo expropria é a vida humana, por meio de dados digitais. Portanto, definimos o “colonialismo dos dados” como uma ordem emergente com relação à apropriação da vida humana, de modo que os dados possam ser continuamente extraídos com a finalidade de obtenção de lucros. Essa forma de extrativismo vem com suas próprias formas de racionalização e violência, embora os modos, intensidades e escalas sejam diferentes daqueles que vimos durante o colonialismo europeu. Então, como descolonizamos os dados? Bem, da mesma maneira que descolonizamos a História, o conhecimento e a cultura. DIGILABOUR: Quais etapas para começar esse processo? MEJIAS: Penso em pelo menos três etapas iniciais. Primeiramente, questionando o universalismo por trás dessa nova forma de apropriação. Durante o colonialismo europeu, os colonizados foram apresentados a uma justificativa para a desapropriação que girava em torno de grandes narrativas como progresso, desenvolvimento e supremacia da cultura e história europeias – de fato sobre a supremacia da raça branca. Essas narrativas eram universalizantes, na medida em que procuravam aniquilar quaisquer coisas que as desafiassem (os valores europeus eram os “únicos” padrões a serem reconhecidos). Hoje, as narrativas que justificam a extração de dados são igualmente universalizantes e totalizadoras. Dizem-nos que a expropriação da vida humana por meio de dados representa progresso, que é feita para o benefício da humanidade, que traz conexão humana, novos conhecimentos, riquezas distribuídas, etc. Além disso, somos informados de que, embora sejam “nossos” dados, não temos o conhecimento e os meios para utilizar esse recurso, por isso é melhor “sairmos da frente” e deixar as corporações fazerem por nós, como fizeram durante o colonialismo. O primeiro passo para descolonizar os dados é perceber que esse é o mesmo truque que os poderosos exercem com a gente há 500 anos. Não há nada natural, normal ou universalmente válido em relação ao modo como a vida humana está se tornando um mero fator na produção capitalista, e devemos rejeitar as novas narrativas empregadas para justificar essa forma de desapropriação. A segunda maneira pela qual os dados podem ser descolonizados é recuperando os mesmos recursos que foram roubados de nós. Em outras palavras, precisamos resgatar o espaço e o tempo colonizados: o espaço que foi preenchido por dispositivos que monitoram todos os nossos movimentos; o tempo (geralmente na frente de uma tela) que dedicamos à produção de dados usados para gerar lucro para as empresas. Nossos espaços e horários não estão vazios, passivamente disponíveis para extração. Precisamos reinvesti-los em valor, como forma de protegê-los da apropriação pelas corporações. Sim, em um nível básico, isso pode significar simplesmente a exclusão de determinadas plataformas. Mas acho que é mais profundo do que isso. Descolonizar nosso espaço e nosso tempo significa reposicionar conceitualmente nosso papel no capitalismo, que se estende além das relações de dados. Isso se estende ao meio ambiente, ao local de trabalho e ao que devemos exigir de nossos governos em termos de saúde e educação. Estou inspirado ao ver que movimentos ambientalistas, trabalhistas, por justiça social, por paz, e o movimento crítico de ciência e tecnologia estão convergindo e sendo reconfigurados no processo. Sim, permanecem grandes desafios – especialmente diante de movimentos populistas como os que estamos vendo em torno de Trump, Bolsonaro e Modi – mas pelo menos estamos desenvolvendo a consciência de que ações individuais e desarticuladas (como, por exemplo, sair do Facebook) são sem sentido se isso não acontecer em conexão com outras lutas. Falando nisso, devemos permanecer vigilantes e céticos em relação a “soluções” que legitimam o status quo. Recentemente, o New York Times publicou uma proposta brilhante para “salvar” a Internet, garantindo que somos pagos pelos dados que geramos. Esta é uma solução viável? Imagine que um dia você descubra que câmeras ocultas foram instaladas para rastrear todos os seus movimentos, invadindo sua privacidade para gerar lucro para uma empresa. Você ficaria satisfeito se, em vez de remover as câmeras e combater a injustiça, a empresa prometesse pagar para continuar gravando sua vida? Se você está enfrentando dificuldades econômicas, pode aceitar, mas a conta ainda não fecharia. A única coisa que seria realizada seria a continuação – de fato, a normalização – de um sistema massivo de desapropriação. Redirecionar uma pequena parte da riqueza acumulada gerada pela extração de dados para as pessoas que realmente a geram enquanto deixa intacta a parte do sistema não é um retorno à dignidade, mas o equivalente a colocar um selo de aprovação em um sistema que tem desigualdade em seu núcleo. A última sugestão para descolonizar dados é aprender com outras lutas de descolonização do passado e do presente. Pode parecer que o capitalismo e o colonialismo dos dados são regimes abrangentes dos quais somos incapazes de resistir. Mas as pessoas sempre encontraram maneiras de resistir – seja através de ação física, ou às vezes quando isso não é possível, por meio do trabalho intelectual. Os colonizados empregam sua cultura, sua história e até mesmo as tecnologias e idiomas do colonizador para resistir, para rejeitar. Não estou dizendo que isso seja tão simples quanto declarar que agora estamos todos tão oprimidos quanto os povos nativos nesse novo sistema. De qualquer forma, o legado da opressão colonial continua a exigir um custo mais alto para as populações vulneráveis, que continuam a ser desproporcionalmente discriminadas e abusadas pelo novo colonialismo de dados. Mas estou dizendo que mesmo sujeitos privilegiados podem aprender algumas lições de pessoas que resistem ao colonialismo há séculos. Precisamos desenvolver novas formas de solidariedade que incorporem a luta contra a apropriação da vida humana por meio de dados como parte da luta por um mundo melhor. DIGILABOUR: Você é um mexicano que vive nos Estados Unidos desde 1990. Que experiências de (des) colonização você teve e tem na universidade? MEJIAS: Por onde começar? Primeiro, devo reconhecer que, como um hispânico branco (aquela categoria de censo nos Estados Unidos que significa “parece branco por fora, mas não é branco por dentro”), posso passar por branco e, portanto, não estou sujeito às mesmas formas flagrantes de discriminação que pessoas não-brancas experimentam. Isto é, até que o “interior” se torne evidente e eu abra a boca. E como a educação envolve precisamente o processo de falar, de encontrar a própria voz, eu diria que minhas experiências de (des)colonização pessoal no ensino superior nos EUA sempre refletiram essa tensão. Por um lado, estudar e trabalhar no Norte Global me permitiu obter uma formação “crítica”, pois tive a sorte de aprender e colaborar com outras pessoas do Sul Global ou de pessoas brancas interessadas nessas questões. Foi uma formação rica e diversificada, talvez mais do que se eu tivesse ficado no México. Por outro lado, eu diria que meu trabalho – como estudante e pesquisador – nem sempre encontrou um lugar confortável na academia. As disciplinas acadêmicas em geral têm mais facilidade em reconhecer o trabalho que se encaixa em certos padrões, que vem de certos lugares e é realizado por pessoas com determinadas origens. Por necessidade econômica e curiosidade intelectual, não segui esses padrões tradicionais, o que significa que às vezes meu trabalho não tem sido legível ao mainstream do discurso acadêmico. No geral, porém, eu diria que isso tem sido uma coisa boa, pois forçou meu trabalho a ocupar as margens desde o início. DigiLabour Compartilhar Artigo AnteriorMindfulness entre racionalidade empreendedora e violência epistêmica: entrevista com Ronald Purser Próximo ArtigoOs Brasileiros da Amazon Mechanical Turk 13 de dezembro de 2019